Espondeilhan, França, 14 Abril 1662 – Lisboa, 1723
Palavras-chave: Farmácia Química, Boticários e Droguistas, Farmácia setecentista, Farmacopeias Portuguesas.
DOI: https://doi.org/10.58277/DBDI3654
O droguista João Vigier (Joam Vigier) (Espondeilhan, França, 14 Abril 1662 – Lisboa, Portugal, 1723), filho de Francisco Vigier e Joana Gaudion, era natural de Espondeilhan, localidade próxima a Béziers e Montpellier. Educado em França, Vigier radicou-se em Lisboa entre os anos de 1677 e 1682, onde inicialmente exerceu a profissão farmacêutica em conjunto com o seu tio, Pedro Donadieu. Na data de estabelecimento em Portugal, seu tio ocupava um importante cargo como boticário da Rainha, além de ser um reconhecido droguista na cidade.
Apesar de sua formação boticária, ele nunca chegou a realizar o exame para o exercício da profissão em Portugal, estabelecendo-se efetivamente como droguista durante seu trajeto laboral. A actividade nesse ramo comercial explica sua elevada condição socioeconómica, sendo sua fortuna avaliada, em 1719, em mais de 40.000 cruzados. Seu êxito comercial era tamanho que conseguiu, inclusive, ingressar um de seus filhos na Ordem de Cristo, feito então impensável a um boticário do período, mesmo os boticários da Casa Real, qual ocupavam o topo hierárquico da profissão.
Ainda que os ofícios de boticário e droguistas estivessem correlatados ao campo médico, as condições socioprofissionais da Farmácia portuguesa durante o século XVII e XVIII delimitavam posições hierárquicas distintas para ambas. O exercício boticário carregava consigo o status servil de ofício mecânico, qual dificilmente permitia que seus praticantes alcançassem ascensão económica ou reconhecimento técnico-científico. Em contraposição, enquanto droguista, Vigier colocava-se entre os homens de negócio e, dentro da hierarquia socioprossional do período, em uma posição mais elevada aos boticários.
Muitos detalhes sobre a vida de Vigier permanecem ainda hoje ignotos. A maior parte do que sabemos sobre sua biografia provém de excertos extraídos das suas obras, seu testamento e detalhes encontrados nos documentos referentes aos seus filhos. As fontes documentais dão conta que o droguista francês instalou-se na Rua das Flores, mudando-se posteriormente para a Calceteria, em frente a Casa da Moeda.
Os registros também apontam que Vigier casou-se por duas vezes. Com sua primeira mulher, Maria dos Santos, uma franco-portuguesa, e deste camasameto teve sete filhos (um deles falecido ainda criança). O mais velho, Luís Vigier, nascido em 1686, foi Familiar do Santo Ofício e também exerceu a profissão de droguista, porém morreu prematuramente em 1716. Com o falecimento desse, coube a Bartolomeu Vigier herdar o negócio do pai. Os quatro filhos restantes tornaram-se membros do clero, sendo dois cónegos na Sé de Coimbra e duas freiras no convento de Santa Marta, em Lisboa. Vigier casou-se por uma segunda vez, por volta de 1705, com D. Francisca Teresa de Jesus. De seu segundo matrimónio, Vigier ainda teve outros três filhos, ainda menores na data de seu falecimento.
A projeção profissional de Vigier, bem como sua própria importância histórica, está directamente ligada à sua relevância para a introdução da farmácia química em Portugal. Assim como seu tio Pedro Donadieu, Vigier era conhecido por vender drogas de origem química às boticas do Reino. A ausência de uma concorrência numerosa no país fez com que o comércio prosperasse suntuosamente. Em 1716 e 1719 são encontrados na Gazeta de Lisboa, não sem destaque, anúncios assinados por Vigier que em sua casa de comércio eram encontradas “toda casta de drogas, ou simples, e químicas, aos boticários desta corte e Reino”.
Também é no contexto de divulgação comercial que muitas de suas publicações podem ser entendidas. Ao introduzir as drogas químicas na literatura farmacêutica nacional, seus livros configuravam-se não somente como expressões científicas do período, mas também como manuais de simples e compostos químicos que poderiam ser comprados em sua casa de comércio. O primeiro de seus livros foi Tesouro apolíneo, galénico, químico, cirúrgico e farmacêutico, ou compêndio de remédios para ricos e pobres, foi publicado primeiramente em 1714, levado a uma segunda estampa posteriormente, em 1745. É notório nas páginas desse tratado de matéria médica a presença e emprego das drogas químicas para a cura e conservação da saúde.
No ano de 1716 foi publicada sua mais importante e reconhecida obra, a Farmacopeia Ulissiponense, galénica e química, que contém os princípios definições e termos gérais de uma e outra Farmácia. Suas páginas configuram-se como a primeira publicação em português onde podem ser encontrados, de maneira organizada e sistemática, as formas de preparação dos remédios de origem química. Também são significativas as ilustrações – que por si só representavam uma inovação na literatura farmacêutica – onde Vigier apresentava os instrumentos necessários para a produção das drogas químicas. Tanto em Tesouro apolíneo, como em Farmacopéia Ulissiponense, podemos perceber a influência marcante das obras do químico francês Nicolas Lémery (1645-1715) no trabalho de Vigier. Vários são os trechos que remetem, direta ou indiretamente, para as obras Curso de Química (1675) e Farmacopeia Universal (1679) de autoria de Lémery.
Em complemento as questões relativas a farmácia química, a Farmacopeia Ulissiponense também reserva passagens de destaque para as drogas simples de origem vegetal, dentre elas, o capítulo Tratado das virtudes e descrições de diversas plantas, e partes de animais do Brasil, e das mais partes da América, ou Índia Ocidental, de algumas do Oriente descobertas no último século. Nas quase 60 páginas desse capítulo, Vigier compila uma série de espécies naturais até então ainda desconhecidos por grande parte dos boticários portugueses, além de outras há muito conhecidas e encontradas largamente entre suas boticas.
Também foi dada a estampa por Vigier o livro Cirurgia anatómica, e completa por perguntas e respostas que contém os seus princípios, a osteologia, a miologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices e compostas, impressa pela primeira vez no ano de 1715, e posteriormente nos anos de 1758 e 1768. A obra é uma tradução do livro homónimo de Daniel Leclerc (1652-1728), publicado originalmente em 1702 em Paris. As sucessivas reedições do livro, algumas mesmo publicadas em datas muito posteriores à morte de Vigier, remetem a deficiência de literatura especializada sobre o campo em Portugal deste período. Para além dos assuntos relacionados com a cirurgia, suas páginas também abordavam temas relacionados à farmácia química e produção de remédios associados à prática cirúrgica. Dentre eles, a instrução de como preparar a panaceia mercurial, um fármaco amplamente utilizado na cidade de Lisboa, qual a botica de Mosteiro de São Vicente de Fora era notória em sua produção e venda.
Sua quarta obra, História das Plantas da Europa e das mais usadas que vem da Ásia, África & das Américas, é datada de 1718 e fora impressa na cidade de Lyon. Sua publicação tem a intenção de suprir a necessidade de um livro exclusivamente dedicado as plantas terapêuticas em Portugal e Reino Ultramar. A obra também destaca-se pela numerosa quantidade de ilustrações contidas em suas páginas, sendo ao todo mais de 600 xilogravuras onde são evidencidas os principais elementos morfológicos das plantas abordadas, como o formato de suas folhas, raízes, flores e presença de fruto. Como declarado pelo autor no prólogo, a obra tinha como objetivo instruir os leitores na prática de reconhecimento e classificação das espécies vegetais, elemento esse qual Vigier considerava os droguistas de Portugal carentes de um maior embasamento teórico.
Assim como a Cirurgia anatómica, a História das Plantas é uma tradução do livro homónimo francês publicado pela primeira vez em 1670, também em Lyon, por Jean Baptiste De Ville. Profusamente reeditada, podemos encontrar exemplares da obra francesa datados até a segunda metade do século XVIII, sendo as últimas edições assinadas por Nicolas De Ville. Tanto em sua versão original, quanto na tradução em português por Vigier, a classificação botânica encontrada em suas páginas são balizadas pela obra de Gaspard Bauhim (1560-1624), naturalista suíço que, antes de Carl Linnaeus (1707-1778), formulou uma classificação botânica assentada na morfologia e nomenclatura binomial das plantas.
Por sua copiosa publicação no campo farmacêutico e médico, D. João V fez-lhe a mercê de 40.000 réis, incluindo o hábito da Ordem de Cristo, posteriormente herdado por seu primogénito Luís Vigier e, após a morte desse, por seu filho Bartolomeu Vigier em 1726.
Em seu testamento, estão dispostas informações pertinentes sobre a rede de contatos do droguista francês. Dentre eles, destaca-se aquele que deveria ser seu grande amigo, o também droguista francês Dionísio Verney (1650-1734), pai de Luís António Verney (1713-1792), autor de O Verdadeiro Método de Estudar (1746) e outras obras de expressiva importância do Iluminismo português. Ademais a Dionísio Verney, são citados outros droguistas e boticários lisboetas como profissionais ligados a Vigier, como Manuel Galvão, António Sonis e Jácome Vallebella.
Detalhes sobre sua morte, como o local, data e condição para tal, são pouco claras pela documentação existente; todavia sabe-se que foi em Lisboa no ano de 1723.
Wellington Bernardelli Silva Filho
Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
Arquivos
Gazeta de Lisboa, 1716, 8 Ag., 32, 168 e 1719, 16 Fev., 7, 56.Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso VI, Liv. 22, fl. 170.
Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. João V, Liv. 42, fl. 8 e Liv. 47, fl. 168.
Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria da Ordem de Cristo, Liv. 173, fls. 168-187, fl. 213 e fl. 216.
Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registro Geral de Testamentos, Li. 145, fls. 53-55 e Liv. 171, fls. 188-192.
Obras
Vigier, João. Tesouro apolíneo, galénico, químico, cirúrgico e farmacêutico, ou compêndio de remédios para ricos e pobres. Lisboa, Oficina Real Deslandesiana, 1714.
—. Cirurgia anatómica, e completa por perguntas e respostas que contém os seus princípios, a osteologia, a miologia, os tumores, as chagas, as feridas símplices e composta. Lisboa, Oficina Real Deslandesiana, 1715.
—. Farmacopeia Ulissiponense, galénica e química, que contém os princípios definições e termos gérais de uma e outra Farmácia. Lisboa, Pascoal da Silva, 1716.
—. História das Plantas da Europa e das mais usadas que vem da Ásia, África & das Américas. Lyon, Oficina de Anisson, Posuel & Rigaud, 1718.
Bibliografia sobre o biografado
Debus, Allen G. “Chemeistry and Iatrochemistry in Early Eighteeth-Century Portugal: A Spanish Connection” in História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal até o Século XX: I Colóquio, Lisboa, 15 a 19 de Abril de 1985, 2 vols. (Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1986), 2: 1245-1262.
Calainho, Daniela Buono. “João Vigier: Um droguista no Portugal setecentista” (artigo apresentado no XII Encontro Regional de História – Anpuh Rio, Niterói, Rio de Janeiro, 14-18 de Agosto de 2006).
Dias, José Pedro de Sousa. “João Vigier e a Introdução da Química Farmacêutica em Portugal”, Farmácia Portuguesa, 43, (1987): 31-35.
—. “Novas actividades e ocupações” in Droguistas, Boticários e Segredistas: ciência e sociedade na produção de medicamentos na Lisboa de Setecentos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
—. “Um grupo socio-profissional setecentista de grande importância na economia do medicamento: os droguistas”, Farmácia Portuguesa, 54 (1988), 31-35.José Pedro de Sousa Dias e João Rui Pita, “L’influence de la pharmacie et de la chimie françaises au Portugal au XVIIIe siècle : Nicolas Lémery”, Revue d’Histoire de la Pharmacie 300 (1994): 84-90.