ca.1520 — ca. 1580
Palavras-chave: atlas, cartografia náutica, Goa.
DOI: https://doi.org/10.58277/NTHR8686
Sobre o cartógrafo Fernão Vaz Dourado existem poucas e inseguras informações. Apenas chegaram até nós cinco atlas manuscritos primorosamente iluminados, com datas entre 1568 e 1580, cujo autor se identifica como Fernão Vaz Dourado, e um sexto que lhe é atribuído. Em três deles apresenta-se com o título de “Fronteiro destas partes da India”. Dois dos atlas foram desenhados em Goa, e outros dois, provavelmente também, pelas informações náuticas que incluem se referirem ao subcontinente indiano. A ser verdade que o autor tenha estado alguma vez em Portugal, o quinto poderá ter sido elaborado em Lisboa,. Foi também atribuído a Dourado o atlas universal de 20 cartas, complementar do Livro de Marinharia de João de Lisboa (c.1560), considerando-se hoje que apenas um fragmento de um mapa, figurando o Índico ocidental, é de sua autoria.
Em busca do cartógrafo e da família Dourado encontraram os biógrafos um Fernão Dourado em viagens no Índico oriental, entre 1543 e 1544, ou em 1547, e um Fernão Vaz Dourado ferido no segundo cerco de Diu, em 1546. Supondo que o militar, o navegador-comerciante e o cartógrafo-iluminador sejam o mesmo homem, ele poderia ser filho de Francisco Dourado, moço de câmara, que em 1513 embarcou em Lisboa para a Índia. Levantaram-se ainda as hipóteses de a mãe ser indiana e de Fernão ter estudado em Goa, próximo do círculo do Colégio jesuíta de São Paulo; pelo contrário, pode ter vindo jovem a Portugal e estudado na Universidade, em Lisboa, e ter voltado à Corte, por breve período, no fim da vida, a acompanhar o vice-rei D. Luís de Ataíde (1516−1581), de quem era protegido.
Esta biografia construída com base em dados soltos e de diversa origem, mas criteriosamente selecionados e relacionados, deve-se a Armando Cortesão, que desde 1935 deixou estabelecida a crónica do herói, como modelo e exemplo maior entre os cartógrafos luso-asiáticos quinhentistas. Porém, tudo são suposições. Como em muitos outros casos, o técnico e artista gráfico não deixa nem numerosos, nem seguros testemunhos nos arquivos institucionais.
Ao nome de Vaz Dourado têm sido associados os de Diogo Botelho Pereira, cujos mapas se encontram perdidos, e de Lázaro Luís, autor do famoso Atlas Universal de 1563, cujas cartas tantas semelhanças apresentam com as de Dourado. Os três cartógrafos, provavelmente, nasceram e formaram-se na Índia portuguesa, representando os seus mapas o que de melhor em cartografia aí se produziu na segunda metade do século XVI. Porém, há notícias documentais sobre a atividade cartográfica portuguesa no Oriente desde a década de 30, com Heitor de Coimbra, continuada por Luís do Rego (c.1545), Pedro de Ataíde (1596), Mateus do Rego, “mestiço de Goa” (1601) e, finalmente, com o luso-malaio Manuel Godinho de Erédia (c.1560-1623), natural de Malaca, conhecido pelas suas coletâneas de vistas e plantas das cidades coloniais portuguesas no Oriente.
Pouco se sabe de concreto sobre a existência de uma comunidade de técnicos e artistas em Goa, assim como de todo o processo de construção dos mapas: desde a proveniência e fabrico do pergaminho e das tintas, à origem e aos tipos de fontes consultados, assim como dos métodos utilizados no desenho do fundo das cartas e no estabelecimento da sua coloração e ainda sobre a inclusão de elementos iconográficos.
Os mapas de Vaz Dourado não devem ser apenas comparados com os dos seus contemporâneos que trabalhavam no Oriente e com as fontes cartográficas orientais, donde podem ter chegado materiais e cores, informações geográficas ou elementos decorativos. Os protótipos das cartas portuguesas realizadas na metrópole, em originais, cópias ou variantes, chegavam também periodicamente a Goa, daí as semelhanças possíveis de encontrar, cotejando Dourado com os mapas da última fase de Lopo Homem, os atlas de Diogo Homem (1561 e 1568) ou os de Sebastião Lopes (c. 1565). Mas será também de considerar a influência da cartografia italiana e da cartografia espanhola.
Sobre o método de trabalho de Vaz Dourado afirma Armando Cortesão: “Embora todos os seus trabalhos obedeçam a um tipo inconfundível, parece que Vaz Dourado tinha um Atlas protótipo, cuja parte meramente cartográfica foi aproveitando para todos os outros, mas acrescentando-os e modificando-os conforme os novos conhecimentos geográficos adquiridos ou o fim a que os destinava.”. Contudo, tratando-se de cartografia de luxo ou de aparato, o seu processo de construção parece dever mais às regras da pintura e, concretamente, da iluminura, do que às da cartografia prática. O cartógrafo-iluminador terá sido antes um iluminador-cartógrafo ou, o que é mais provável, vários terão sido os técnicos e artistas implicados nas distintas fases de elaboração dos mapas. Só uma escola com experiência, oficinas e artistas em atividade, poderia responder a tais encomendas e produzir tais obras.
Os mapas dos atlas têm sido analisados quase exclusivamente a partir da toponímia inscrita e da configuração e desenho das ilhas e dos litorais. Na maior parte dos estudos, o objetivo último foi a relação entre esses aspetos e os episódios da história política e militar, como demonstração da prioridade dos portugueses na descoberta e ocupação de territórios não europeus. A hipótese de que as novas imagens cartográficas portuguesas se revelem fontes determinantes para a cartografia impressa da Europa do Norte e, mesmo, que transmitam elementos iconográficos originais e exóticos, mereceriam um estudo comparativo mais minucioso. No caso de Vaz Dourado, a quem são atribuídas inovadoras imagens cartográficas de Ceilão e do arquipélago japonês, algumas dessas análises foram já realizadas.
A receção e difusão das imagens de Vaz Dourado, em especial as do Oriente, atendendo à sua originalidade e qualidade estética, em que ressaltam os elementos decorativos renascentistas, fez-se sentir com alguma rapidez na cartografia impressa do Norte da Europa, como é o caso da inserta na obra de Jan van Linschoten ou a difundida nas edições da obra de Abraham Ortelius. A partir dessas imagens se elaboraram novas versões, impressas ou manuscritas, por todo o Mundo.
João Carlos Garcia
Arquivos
Arquivo Nacional – Torre do Tombo, Lisboa
Atlas Universal de Fernão Vaz Dorado (1571)
Bayerische Staatsbibliothek, Munique
Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado (1580)
Biblioteca dos Duques de Alba, Madrid
Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado (1568)
Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa
Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado (1576)
British Library, Londres
Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado (1575)
Huntington Library, San Marino, Califórnia
Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado (1570)
Obras
Dourado, Fernão Vaz. Atlas de… (Reprodução fidelíssima do exemplar da Torre do Tombo, datado de Gôa, 1571). Publicado por iniciativa e sob a direcção do Visconde de Lagoa, Porto: Livraria Civilização – Editora, 1948.
—. Atlas. Reprodução do Códice Iluminado 171 da Biblioteca Nacional, prefácio e nota introdutória de Luís de Albuquerque, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991.
—. Atlas Universal de… 1571, coord. João Carlos Garcia, Barcelona : M. Moleiro, 2014.
Bibliografia sobre o biografado
Alegria, Maria Fernanda, Suzanne Daveau, João Carlos Garcia, Francesc Relaño. Portuguese Cartography in the Renaissance, in: David Woodward (ed.), Cartography in the Renaissance. Vol. 3, part 1 of The History of Cartography, Chicago: The University of Chicago Press, 2007, p. 975-1068.
Cortesão, Armando. Cartografia e Cartógrafos Portugueses (contribuição para um estudo completo), 2 vols., Lisboa: Seara Nova, 1935.
—. Um novo atlas de Vaz Dourado, in: Boletim Geral das Colónias VIII, 81 (1932), p. 142-151.
Cortesão, Armando, Avelino Teixeira da Mota. Portugaliae Monumenta Cartographica, 6 vols., Lisboa: Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960-1962.
Couto, Gustavo. O Cosmógrafo Fernam Vaz Dourado, Fronteiro da Índia e a sua obra, Lisboa: Tip. e Papelaria Carmona, 1928.