Lisboa, 26-02-1904 — Paris, 31-10-1982
Palavras-chave: Investigação, Física Atómica, Física Nuclear, Espetrografia.
Manuel Valadares foi um físico que pertenceu à primeira geração de cientistas portugueses formados no estrangeiro e que, regressado a Portugal, pugnou pela introdução da investigação científica na universidade. Integrou o Laboratório de Física da Faculdade de Ciências, onde criou uma escola de investigação na área da física atómica e nuclear. Vítima das purgas de 1947, abandonou o país continuando uma carreira de sucesso em França.
Manuel José Nogueira Valadares nasceu em Lisboa, a 26 de fevereiro de 1904. Os pais, Manuel António Alves Valadares, empregado de comércio, e Maria da Conceição Nogueira Valadares, doméstica, residiam nesta data na Travessa de Santa Gertrudes, atualmente Rua Doutor Teófilo Braga, na freguesia da Lapa.
Valadares frequentou o Liceu Central de Pedro Nunes, de 1913 a 1921. Em novembro de 1919, o jovem Valadares teve a oportunidade de assistir a uma pequena lição de física, proferida por Jean Baptiste Perrin (1870-1942), físico francês, galardoado com o prémio Nobel da física em 1926, pelo estudo do movimento browniano que validava a estrutura descontínua da matéria e permitia calcular a dimensão dos átomos. Na visita ao Liceu de Passos Manuel, Perrin falou aos alunos, feliz por poder fazer despertar neles o gosto pela ciência. Foi uma experiência que Valadares recordaria, em fevereiro de 1943, numa sessão comemorativa do primeiro aniversário da morte daquele físico. A descrição de experiências que exigiam aparelhagem muito simples impressionou-o e poderá ter influenciado a sua decisão de prosseguir uma carreira de investigação dedicada à física.
Valadares licenciou-se em Ciências Físico-Químicas na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em 1926. Começou por lecionar no Liceu Pedro Nunes como professor provisório, nos anos letivos de 1926-27 e 1927-28, no mesmo liceu em que foi aluno e onde conheceu, como professor, Armando Cyrillo Soares (1883-1950), que seria nomeado diretor do Laboratório de Física da Universidade de Lisboa, em 1930. Pela mesma altura, em 1927, foi contratado como assistente de física daquela faculdade, onde lhe foi possível dedicar-se exclusivamente ao ensino e à investigação. Em 1929, aceitou colaborar com o Instituto Português para o Estudo do Cancro (designado Instituto Português de Oncologia, em 1930) na qualidade de assistente de física no campo do tratamento oncológico, com recurso ao elemento químico rádio. Esta experiência acabou por conduzi-lo à investigação em física atómica e em física nuclear.
Em 1929, o país atravessava, no que respeita à investigação científica, um momento de entusiasmo. Em janeiro nascia a Junta de Educação Nacional (JEN), uma instituição que, apesar dos orçamentos modestos, passou a conceder bolsas de estudo no país e no estrangeiro e a apoiar o apetrechamento de laboratórios. Em setembro, Valadares requeria ao presidente da JEN uma bolsa para frequentar o Radium Institut Suisse de Genebra e o curso da Faculdade de Ciências desta cidade, durante os meses de novembro a junho, para desenvolver conhecimentos e aperfeiçoar a técnica respeitante à parte física do rádio. Esta formação foi recomendada por Francisco Soares Branco Gentil (1878-1964), diretor do Instituto do Cancro, que planeava oferecer-lhe a direção do laboratório de física do Instituto nos dois anos seguintes. No entanto não é claro se Valadares assumiu formalmente este compromisso pois, terminado com êxito o ano de especialização, decidiu realizar doutoramento sob a supervisão de Marie Skłodowska Curie (1867–1934), para o qual obteve nova bolsa da Junta. O primeiro passo da carreira de investigação universitária foi dado no Laboratório Curie do Instituto do Rádio de Paris, de 1930 a 1933. O grau de doutor em ciências físicas com menção très honorable, foi-lhe concedido a 11 de dezembro de 1933, com a tese titulada Contribution à la spectrographie, par diffraction cristalline, du rayonnement gamma.
Valadares regressou a Portugal ao Laboratório de Física num período de grave crise financeira sequência da Grande Depressão americana. A Junta de Educação Nacional restringiu ainda mais o seu orçamento, nomeadamente a rubrica de apetrechamento de laboratórios, o que condicionou a realização do projeto de investigação de Valadares. Este projeto devia seguir o rumo traçado em Paris, numa área que, no início da década de 1930, ainda era designada por radioatividade, mas em evolução para a física nuclear. Como ponto de partida tanto do ponto de vista científico, como do económico, era aconselhável montar instalações para estudar as radiações emitidas pelos átomos – a radiação gama com origem no núcleo (área da física nuclear) e a radiação X proveniente de camadas eletrónicas mais próximas desse núcleo em átomos com elevado número de eletrões (área da física atómica). A primeira etapa era montar uma instalação produtora de raios X e um espectrógrafo do tipo Cauchois, aparelho destinado a fornecer o espectro desta radiação e cujo estudo se designava por espetrografia de raios X. Não tendo a Junta concedido qualquer subsídio ao Laboratório de Física Valadares decidiu usar o seu engenho na construção da aparelhagem de que necessitava. O total apoio do diretor do Laboratório de Física, Cyrillo Soares, permitiu localizar no Laboratório de Química e na arrecadação do Laboratório de Física as componentes essenciais da instalação para produzir raios-X. Um marceneiro construiu um espetrógrafo em madeira, com o qual foram realizadas as experiências para determinar as características do instrumento a encomendar e que seria entregue no ano seguinte.
Foram vários os trabalhos efetuados por Valadares nestes primeiros tempos. Em 1937-38, o Instituto para a Alta Cultura (IAC), sucessor da Junta, concedeu a Valadares uma bolsa de estudo destinada à elaboração de um projeto para instalar no Museu de Arte Antiga um serviço de análise de obras de arte através de exame radiológico. A sua experiência neste domínio tinha sido adquirida durante a estada em Paris, em 1930-31, no Institut Mainini que se dedicava à investigação de obras de arte do Louvre. Em 1938, publicou “Étude des satellites La, de l’élément 82 (Pb)“, em Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris. Em simultâneo, o trabalho com o título “Análise, por espetrografia de Raios X, de transmutações naturais e provocadas” foi distinguido pela Academia das Ciências de Lisboa, com o Prémio Artur Malheiros (Ciências Físico-Químicas), em 1939. Durante 1940 e 1941, o IAC concedeu-lhe uma bolsa para, no laboratório de física do Instituto di Sanitá Pubblica de Roma, se dedicar a um projeto de identificação do elemento químico ástato. O estudo foi publicado no Rendiconti del Instituto di Sanitá Pubblica e deveria ser continuado em Portugal, se fosse possível aceder a uma quantidade de rádio substancial, o que não sucedeu. Estes são marcos da carreira de Valadares no âmbito da física atómica utilizando, essencialmente, a espetrografia de raios X, em que usou inicialmente equipamento improvisado, substituído parcialmente, em 1948 e totalmente em 1959.
Tanto Valadares como os seus sucessores no Laboratório de Física se empenharam em dar sequência aos estudos inaugurais de física atómica, pelo que Valadares foi reconhecido como o fundador desta disciplina em Portugal.
Foi mais difícil iniciar o projeto de investigação na área da física nuclear. Em 1938, Valadares tinha tentado investigar a radiação gama emitida na transmutação do chumbo em bismuto, que se encontra na fase final no decaimento radioativo do gás rádon. Foi obrigado a abandonar este projeto devido aos maus resultados obtidos. Nova oportunidade surgiu em 1942, após a missão em Roma, e quando Valadares supervisionou as teses de doutoramento de assistentes de física das Faculdades de Ciências: Lídia Coelho Salgueiro (1917 -2009) de Lisboa, Carlos de Azevedo Coutinho Braga (1899-1982), e José Sarmento de Vasconcelos e Castro (1899 -1986) do Porto. Enquanto este se dedicou à física atómica, em que se doutorou com a dissertação Estudo das riscas satélites La do ouro, em 1945, os dois primeiros abordaram temas distintos da física nuclear. Lídia Salgueiro retomou o estudo que Valadares havia abandonado em 1938, possibilitado por uma oferta de rádon (envelhecido) do Instituto de Roma. Para o efeito foi adaptado um espetrógrafo de raios X pertencente ao Laboratório de Química, munindo-o de um cristal de sal-gema acionado por um sistema de relojoaria que lhe comunicava um movimento oscilatório. A tese de doutoramento, intitulada Espectro gama dos derivados de vida longa do Radão foi apresentada em dezembro de 1945. Carlos Braga utilizou a espetrografia magnética para investigar a emissão eletrónica (radiação beta) proveniente da mesma transmutação estudada por Lídia Salgueiro. Sendo engenheiro eletrotécnico de formação não teve dificuldade em construir a aparelhagem com a qual obteve os resultados que lhe permitiram apresentar a tese de doutoramento Estudo da transformação RaD (Chumbo-210)RaE (Bismuto-210) por espetrografia magnética da radiação beta secundária, em 1944. Estas realizações foram notáveis já que, na altura, o doutoramento nas Faculdades de Ciências era um acontecimento raro.
Valadares integrou também o Núcleo de Matemática, Física e Química, fundado em 1936, por ex-bolseiros da Junta de Educação Nacional no estrangeiro. Entre eles contavam-se os físicos Herculano Amorim Ferreira (1895 -1974), António da Silveira (1904 -1985), professor do Instituto Superior Técnico e o matemático António Aniceto Ribeiro Monteiro (1907 -1980), todos eles, excetuando o primeiro que se formou em Londres, formados em Paris. O Núcleo tinha o apoio do presidente do IAC, Augusto Celestino da Costa (1884 -1956), que via com bons olhos a implementação de organizações similares pelo Ministério da Educação Nacional, onde a atividade docente e a de investigador se pudessem complementar. O projeto do Núcleo era ambicioso, visando a realização de cursos e seminários de ciência moderna, de nível europeu, “autenticamente superiores”, sobre matérias que não constavam dos programas. Nesta iniciativa colaboraram os professores de matemática Bento de Jesus Caraça (1901 -1948), de Lisboa, e Rui Luís Gomes (1905-1985), do Porto. Os cursos iniciaram-se em 16 de novembro de 1936, versando temas muito variados e tendo sido publicados em livro com o apoio do IAC. Foi, no entanto, uma atividade efémera que terminou devido a desavenças, em novembro de 1939, mas o espírito do Núcleo, envolvendo físicos e matemáticos, perduraria.
Em 1930, o Laboratório de Física foi uma exceção no panorama científico português, não só pelos resultados obtidos por Valadares, mas principalmente porque Cyrillo Soares definiu uma nova estratégia para o seu laboratório, uma vez que considerava que os laboratórios universitários não se deviam restringir ao ensino, mas estender-se à investigação. Este projeto tornou-se possível com a criação da Junta de Educação Nacional, mas, no campo da física, Cyrillo Soares foi o único diretor a obter resultados, que começaram com o doutoramento dos assistentes no estrangeiro, primeiro Amorim Ferreira, em Londres, depois Valadares e, em seguida, Aurélio Marques da Silva (1905 -1965), também em Paris. Apesar da iniciativa ter sido de Cyrilo Soares, foi a partilha da liderança por Valadares que permitiu o seu êxito, conduzindo a uma escola de investigação, de que os alunos mais notáveis foram Lídia Salgueiro e Armando Carlos Gibert (1914 -1985).
Em maio de 1945, a II Guerra Mundial chegou ao fim. Para muitos opositores ao Estado Novo, a vitória dos aliados significava que também este regime tinha os seus dias contados, tanto mais que, a 6 de outubro, a Assembleia Nacional foi dissolvida e as eleições legislativas marcadas para 18 de novembro. Apesar do curto período concedido para preparar candidaturas, o entusiasmo cresceu perante a suspensão da censura e a autorização de algumas reuniões políticas da oposição democrática, após requerimento aos governadores civis. Alguns investigadores e professores universitários participaram ativamente, principalmente em artigos nos jornais. Em 22 de Outubro, Valadares dava uma entrevista ao República, em que manifestava a sua preocupação pela falta de apoio dos governantes à investigação, embora reconhecesse a criação da Junta de Educação Nacional, em 1929, como a medida mais importante para alterar o panorama científico-cultural português. Contudo, considerava que, passados dezasseis anos, o balanço era insatisfatório, principalmente porque muitos bolseiros tinham desistido e outros trabalhavam com pouquíssimo rendimento. Como alternativa, propunha a criação de uma “Junta de Investigação Científica” que deveria avaliar as necessidades do país no domínio da investigação e promover o envio em massa de estudantes para adquirirem, no estrangeiro, a formação e especialização que não encontravam em Portugal. A participação eleitoral culminou na criação do Movimento de Unidade Democrática (MUD), cuja comissão consultiva, com perto de uma centena de nomes, incluía Rui Luís Gomes e Valadares.
A carreira de Valadares em Portugal terminou com uma nota oficiosa do governo, que o Diário de Lisboa de 15 de junho de 1947, intitulava “O Governo resolveu afastar do serviço efetivo por motivos de ordem política alguns oficiais e professores”. Os três investigadores mais dinâmicos do Laboratório de Física, Valadares, Marques da Silva e Gibert, encontravam-se entre os 21 professores abrangidos por esta decisão. Valadares, nomeadamente, contestou formalmente a ausência de fundamento para os motivos alegados, mas a sua defesa foi ignorada. O resultado imediato foi o pedido de aposentação de Cyrillo Soares e, a curto prazo, a escola de investigação foi descaracterizada, embora a dinâmica da investigação viesse a ser retomada mais tarde no Laboratório de Física, sob a liderança de Julio Palacios.
Forçado a abandonar a Faculdade de Ciências, Valadares exílou-se em Paris, onde foi acolhido no Laboratoire de l’Aimant Permanent, sob a direção do físico de origem russa, Salomon Rosenblum (1896-1959). A colaboração entre os dois físicos remontava ao início da década de 1930, na altura em que Valadares preparava o doutoramento no Laboratório Curie e em que foram co-autores de dois trabalhos, um dos quais sobre a estrutura fina da radiação alfa, publicado em 1932. Voltaram a encontrar-se em Lisboa, em fins de 1941, quando Valadares ajudou Rosenblum e sua família a fugir para Nova Iorque, na sequência da perseguição antissemita, na França ocupada pela Alemanha. Em 1947, o Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) concedeu a Valadares o estatuto de chargé de recherches, a que se seguiu em 1948, maître de recherches e, em 1957, directeur de recherches. Em 1948, Valadares e Rosenblum publicaram o primeiro trabalho depois do reencontro, a que se seguiram 27 trabalhos, dos quais 19 incluiram outros investigadores. Valadares sucedeu a Rosenblum na direção do Laboratoire de l’Aimant Permanent, após o seu falecimento, em 1959, e manteve a direção quando este laboratório mudou a designação para Centre de Spéctrométrie Nucléaire et de Spéctrométrie de Masse, em 1962. Em 1968 cessou funções a seu pedido e, em junho de 1969, foi nomeado diretor honorário deste centro. Entre 1947 e 1971 publicou 38 trabalhos, o último dos quais no Journal de Physique. Reconhecendo a importância da sua publicação em revistas francesas e estrangeiras, a Academia das Ciências de Paris concedeu-lhe o prémio Lacaze, em 1966.
No mesmo ano, o cônsul de Portugal em França recusou-lhe a renovação do passaporte, pelo que Valadares requereu a naturalização francesa, só voltando a Portugal por pouco tempo, em janeiro de 1977, já após o derrube do regime ditatorial. Em 1979, o governo português conferiu-lhe o Grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada, em reconhecimento pelos serviços prestados ao país. Em 1981, foi-lhe concedido o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Lisboa e, após o seu falecimento, em 31 de outubro de 1982, o anfiteatro do Laboratório de Física no anterior edifício da Faculdade de Ciências na rua da Escola Politécnica, passou a designar-se Auditório Manuel Valadares.
Júlia Gaspar