Lisboa, 15 junho 1763— Lisboa, 6 abril 1814
Palavras-chave: carta geral do reino, geodesia, telegrafia visual, triangulação.
DOI: https://doi.org/10.58277/NQEJ5591
Francisco António Ciera nasceu em Lisboa, em 15 de junho de 1763. Seu pai, Miguel António Ciera, era um engenheiro do Piemonte, que viera para Portugal para integrar a delegação científica portuguesa que participou na delimitação de fronteiras da América do Sul. Estas foram acordadas entre Espanha e Portugal, através do Tratado de Madrid de 1750-1751. Alguns autores referem que Francisco era italiano, pelo facto de ter herdado o apelido do seu pai. Após ter terminado os trabalhos no Brasil, Miguel Ciera foi convidado para dirigir os estudos no Colégio dos Nobres, fundado pelo Marquês de Pombal em 1761. Devido a esta proximidade ao Ministro de D. José, os padrinhos de batismo de Francisco Ciera foram a condessa de Oeiras, mulher do marquês de Pombal, e Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão deste, que na altura desempenhava funções de Ministro e Secretário de Estado da Marinha.
Francisco Ciera começou, muito jovem, a acompanhar o pai nas observações astronómicas que este fazia. Com dezoito anos concluiu a sua formação em matemática, na Universidade de Coimbra. Quando Miguel Ciera faleceu, o filho foi o seu sucessor na cadeira de Astronomia e Navegação que ele ministrava na Academia Real de Marinha. Além da docência de matérias ligadas à astronomia continuou a fazer inúmeras observações astronómicas. Foi responsável, em conjunto com Custódio Gomes de Vilas Boas e com Garção Stockler, pela publicação das Efemérides Náuticas, a partir de 1788. Esta publicação, que continha tabelas com diversos valores astronómicos era imprescindível para os praticantes da navegação, especialmente para a determinação da longitude, que envolvia uma série de cálculos bastante complexos. Esses cálculos eram feitos previamente em terra firme, por matemáticos treinados. Naquela altura, as Efemérides Astronómicas eram elaboradas com base em publicações estrangeiras, nomeadamente no Nautical Almanach, publicado em Inglaterra desde 1767. Ainda no campo da astronomia foi um dos responsáveis pela edição portuguesa do famoso Atlas Celeste de Flamsteed.
Francisco Ciera foi um dos membros fundadores da Sociedade Real Marítim, criada por D. Rodrigo de Sousa Coutinho para proceder ao levantamento de cartas hidrográficas e topográficas do território e dos mares frequentados pelos Portugueses. Esta sociedade, que integrava muitos elementos da elite intelectual da época, promoveu a publicação de diversos trabalhos de carácter científico redigidos pelos seus membros. Entre esses contam-se vários textos da autoria de Francisco António Ciera: Exposição das observações e seus resultados sobre a determinação dos principais portos, e cabos da costa de Portugal, Apontamentos para as observações das marés, Determinação da marcha do Timekepeer (nº 66) d’Arnold, Informação sobre a notícia do Baixo visto pelo capitão Woley. O primeiro daqueles trabalhos foi premiado pela Sociedade Real Marítima, estando Ciera entre os primeiros a receber tão alta distinção.
Francisco António Ciera foi escolhido pelo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. Luís Pinto de Sousa Coutinho, para levar a cabo os trabalhos necessários para a elaboração da Carta Geral do Reino. Para realizar as operações de triangulação, necessárias para o levantamento geodésico do reino, teve como adjuntos Pedro Folque e Carlos Frederico Caula, ambos oficiais do Exército. Além das tarefas necessárias à publicação da dita carta, Ciera queria também realizar algo com interesse para a ciência a nível mundial. Aproveitando a rede de triangulação que iria estabelecer, como base para a geodesia nacional, tencionava efetuar cálculos que pudessem contribuir para um melhor conhecimento da forma da Terra.
Estavam também entre os seus objetivos realizar os trabalhos de campo e os cálculos necessários para a medição de um grau de meridiano. Para isso deveria medir um arco de aproximadamente sete graus, entre o Cabo Ortegal, na Galiza, e o Cabo de São Vicente. Tencionava ainda fazer a ligação das triangulações de Espanha e de Portugal com as de França e de Inglaterra, contribuindo deste modo para uma melhor descrição geométrica da Europa. Os primeiros passos desta tarefa tinham sido dados recentemente, por diversos cientistas que tinham conseguido a ligação geodésica entre os Observatórios de Paris e de Greenwich.
Os trabalhos de campo, para reconhecimento dos pontos a escolher para a rede de triangulação iniciaram-se em outubro de 1790. Deles nos deixou o próprio Ciera um relato intitulado Viagem Geográfica & Astronómica pelo Reino de Portugal para a Construção da Carta Topográfica e Determinação do Grau do Meridiano. Este texto foi por ele apresentado numa reunião da Academia Real das Ciências. Nele são descritos com algum detalhe a sequência das observações, os valores conseguidos e os cuidados a ter na sua obtenção, assim como as dificuldades sentidas, numa época em que as vias de comunicação eram praticamente inexistentes. As dificuldades eram agravadas pelo facto de que, para proceder a uma boa triangulação, as observações deveriam ser feitas em locais bastante elevados, onde as condições de acessibilidade eram bastante complicadas. Os trabalhos de reconhecimento estenderam-se até à Galiza, onde Ciera se dirigiu no final de 1791, acompanhado por oficiais espanhóis. Os reconhecimentos levados a cabo permitiram a Ciera publicar a Carta dos pontos da série de triângulos para a medida do grau do meridiano entre os paralelos 37º e 45º 15’ de latitude N.
Definidos os pontos que constituíam a rede geodésica, iniciou, em 1793, os trabalhos de triangulação. Mediu uma primeira base, Batel-Montijo. Um dos problemas com que se deparou foi a inexistência de uma unidade padrão para medida de comprimento. Definiu ele próprio uma unidade que ficou conhecida como braça de Ciera. Precisava, igualmente, de um instrumento de medida, para determinar com rigor o comprimento da base. Recorreu a um dos seus mestres da Universidade de Coimbra, Monteiro Rocha. Este último concebeu umas réguas de precisão, para medir as bases da rede de triangulação. Com essas réguas, Ciera mediu a base de Batel-Montijo e mais tarde, em 1796, a de Buarcos-Monte Redondo. Esta última, maior que a primeira, ficou como base de operações, enquanto a anterior ficou como base de verificação.
Simultaneamente, começou, em 1793, a determinar os ângulos entre os diversos vértices da rede. Para tal usou um círculo repetidor Adams, encomendado em Londres. Estes trabalhos decorreram durante cerca de dez anos, não tendo sido possível medir com rigor todos os ângulos previstos, pois os mesmos implicavam observações de grande precisão, entre pontos bastante afastados entre si. Em 1803, os trabalhos foram interrompidos, por ordem do governo, devido à guerra que grassava na Europa e que se refletia em Portugal. Os trabalhos estiveram interrompidos até à década de 1830. Com o fim da Guerra Civil, o governo liberal decidiu retomar os trabalhos iniciados por Ciera. Para tal, encarregou Pedro Folque, que ainda era vivo na época, tendo este contado com a colaboração de seu filho, Filipe Folque, que acabou por ser o principal obreiro da concretização do levantamento geodésico do reino.
A interrupção dos trabalhos geodésicos está também relacionada com a atribuição de uma outra tarefa a Ciera, a implementação de um sistema de telegrafia visual, para comunicação com os navios a navegar nos portos, e nas suas imediações, para comunicação entre tropas em terra firme e ainda para assegurar as comunicações entre os diferentes palácios onde a família real costumava estar: Ajuda, Mafra, Queluz e Salvaterra. Existem documentos que mostram que em 1803 já se dedicava a estas tarefas, continuando a receber uma gratificação que lhe fora atribuída para realizar os trabalhos geodésicos. Ciera conhecia bem vários dos sistemas de telegrafia visual, em uso na Europa. No entanto, sugeriu ele próprio dois sistemas diferentes, um de ponteiro e outro de persianas. Qualquer deles permitia a transmissão de um número reduzido de sinais individuais, geralmente identificados por um algarismo. Ciera propôs publicou um vocabulário de sinais, no qual apresentava cerca de dez mil sinais numéricos diferentes, e respetivo significado, para uso com o telégrafo de ponteiros. Em 1810 foi criado o Corpo Telegráfico, sendo Ciera o seu primeiro diretor.
Ciera foi membro da Academia Real das Ciências de Lisboa. Na homenagem que lhe foi prestada naquela academia, quando faleceu, foi realçado o facto de ter consagrado grande parte da sua vida à utilidade do Estado. No discurso de homenagem foram lembrados os seus trabalhos de geodesia, o desenvolvimento do telégrafo e as observações astronómicas que efetuou e cujos resultados a Academia publicou.
O seu nome ficou gravado num dos ex-libris da geodesia e da topografia, um marco geodésico,.no ponto mais elevado de Portugal continental, no cimo da Serra da Estrela. Aqui se encontra a seguinte inscrição:
O principe regente n. S. Mandou fazer esta pyramide de pa o levantam.to da carta geral do reino de baixo da dereção do dr fra.co ant.o ciera 1802.
António Costa Canas
Escola Naval/ CINAV/ CH-ULisboa
Obras
Ciera, Francisco António, Atlas celeste, arranjado por Flamsteed; publicado por J. Fortin ; correto, e aumentado por Lalande, e Mechain; trasladado em linguagem de Ordem de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente N.S. para instrução da Mocidade, Primeira edição portuguesa, revista, e correta pelo Doutor Francisco António Ciera, e pelo Coronel Custodio Gomes Villas-Boas. Lisboa: Impressão Régia, 1804.
Ciera, Francisco António, Carta dos pontos da série de triângulos para a medida do grau do meridiano entre os paralelos de 37º e 43º 45′ de latitude N : por ora escolhidos na primeira visita geral do terreno feita nos meses de Outubro de 1790, Abril, Maio, Setembro e Outubro de 1791, escala: c. 1:2 000 000, impressa pela Sociedade Real Marítima, 1803.
Ciera, Francisco António, Carta dos principais triângulos das operações geodésicas de Portugal, escala: c. 1:1 800 000, impressa pela Sociedade Real Marítima, 1803.
Ciera, Francisco António, Regimento de signaes para os annuncios das circunstancias mais notáveis da navegação dos navios que se avistão do Cabo da Roca e dos que entrarão ou sahem do porto de Lisboa, Manuscrito / feito por ordem de S.A.R. o Príncipe Regente Nosso Senhor pelo Doutor Francisco António Ciera, lente proprietário da cadeira de navegação na Academia Real da Marinha, 1803. Biblioteca Central da Marinha, RDf4-16.
[Ciera, Francisco António], Tábuas telegráficas, Lisboa: Impressão Régia, 1810.
Ciera, Francisco António, Viagem Geográfica & Astronómica pelo Reino de Portugal para a Construção da Carta Topográfica e Determinação do Grau do Meridiano, Manuscrito / Arquivo Histórico Militar, 4ª Divisão, 1ª Secção, Caixa 16, nº 21.
Bibliografia sobre o biografado
Dias, Maria Helena. ”As explorações geográficas dos finais de Setecentos e a grande aventura da Carta Geral do Reino de Portugal”. Revista da Faculdade de Letras – Geografia, I série, vol. XIX, Porto: 2003, pp. 383-396.
Luna, Isabel de, Sousa; Leal, Ana Catarina; Sá, , Rui. “Telegrafia Visual na Guerra Peninsular. 1807-1814”. Boletim Cultural, 2008. Mafra: Câmara Municipal de Mafra, 2009, pp. 67-141.
Mendes, H. Gabriel. “Francisco António Ciera, renovador da Cartografia portuguesa»”. Geographica. Lisboa: [s.n.], 3, 1965, p. 11-25.
Moreira, Luís Miguel Alves de Bessa. Cartografia, Geografia e Poder: o Processo de construção da imagem cartográfica de Portugal, na segunda metade do século XVIII. Dissertação de doutoramento: Universidade do Minho, 2013).