Fortes, Manuel de Azevedo

Lisboa, ca. 1660 – Lisboa, 28 março 1749

Palavras-chave: engenharia militar, estrangeirado, ensino, Iluminismo.

DOI: https://doi.org/10.58277/JYLX6844

Manuel de Azevedo Fortes nasceu em 1660, filho natural de Monsieur Lembrancour, um nobre francês então na Corte de Lisboa exercendo o cargo de Intendente das tropas francesas, e de uma senhora portuguesa de alta condição, cujo nome não se sabe. Embora os pais não assumissem a paternidade, pelo que Manuel de Azevedo Fortes foi exposto no Hospital Real de Todos os Santos (Fortes deu, para fins oficiais, várias indicações diferentes no que respeita à sua filiação), o pai responsabilizou-se activamente pela sua educação, na qualidade de benfeitor, permitindo-lhe, desde cedo, um contacto com o estrangeiro, onde, aliás, fez toda a sua formação em moldes totalmente diferentes do que, à época, se fazia em Portugal nas classes abastadas e, particularmente, na corte.  

Com apenas 10 anos o jovem Manuel de Azevedo Fortes foi enviado, primeiro para o Colegio Imperial de Madrid, essencialmente vocacionado para as belas letras e, depois, para a Universidade de Alcalá de Henares para “se instruir nas sciencias severas”, nomeadamente na área da Filosofia. O êxito dos seus estudos, levaram o pai a enviá-lo para França, para o famoso Colégio de Plessis-Sorbonne, com o objectivo de aperfeiçoar os seus conhecimentos em Filosofia Moderna, Filosofia Experimental e Matemática, tendo sido em todas estas disciplinas um aluno brilhante. 

Já formado, Manuel de Azevedo Fortes concorreu ao lugar de professor de Matemática na Universidade de Siena, onde, após leccionar um primeiro triénio, lhe foi pedido pelo governador da cidade, Francisco Maria de Médicis, irmão do Grão-Duque da Toscânia, que permanecesse mais três anos, o que, efectivamente, aconteceu. A morte de seu pai durante este último período e, portanto, a cessação do apoio financeiro que deste recebia, levaram-no a aceitar um benefício oferecido por Francisco de Médicis. 

Para resolver questões burocráticas indispensáveis à tomada de posse deste benefício, Azevedo Fortes deslocou-se a Portugal, onde foi recebido entusiasticamente pelos círculos intelectuais portugueses, nomeadamente por D. Francisco Xavier de Meneses, 4º Conde de Ericeira, um dos ícones das “Luzes” portuguesas. O círculo de Ericeira, como é habitualmente conhecido, era o corolário de uma linhagem de academias – Academia dos Generosos (1649-1692), Academia das Conferências Discretas (ou Academia dos Discretos, 1696-1717) – em que se fomentava o debate sobre temas de filosofia e ciência europeias que, de outra forma, dificilmente chegavam a Lisboa. A casa do Conde de Ericeira, no Largo da Anunciada, era o centro das ideias do iluminismo em Portugal, constituindo o nosso primeiro cenáculo esclarecido. À volta do Conde da Ericeira e das suas Conferências Discretas e Eruditas, gravitava um círculo de políticos, eruditos, professores e homens viajados a par das novas ideias científicas, conhecedores e leitores das obras mais recentes em diversos campos, como o Reverendo D. Manuel Caetano de Sousa, D. José de Barbosa, Manuel Serrão Pimentel, D. Luís Caetano de Lima e Rafael Bluteau. A esta plêiade de intelectuais iluministas, juntou-se Manuel de Azevedo Fortes, convidado ainda na sua viagem de regresso, para abordar temas relacionados com a nova Lógica. 

O rei D. Pedro II, partilhando das opiniões extremamente favoráveis relativas a Azevedo Fortes, força a sua permanência no reino e na corte, oferecendo-lhe, em 1686, o cargo de docente de Matemática na Aula de Fortificação e Arquitectura Militar, na Ribeira das Naus, onde leccionou pelo menos até 1703, e empossando-o, em 1698, na patente de Capitão de Infantaria, com aplicação de engenheiro, e em 1703 na de Sargento-Mor engenheiro. Já em plenas funções na carreira militar, o facto de falar correctamente o português, o castelhano o italiano e o francês, levou-o a desempenhar, a par dos trabalhos mais comuns à fortificação, algumas funções específicas, nomeadamente de espião militar, disfarçado de hortelão, em praças espanholas, e de oficial de ligação, com as funções de tradutor, entre as praças e patentes mais baixas portuguesas e os oficiais superiores do exército estrangeiro. Em 1710, já no reinado de D. João V, é nomeado governador da Praça de Castelo de Vide, com o posto de Coronel, sendo o responsável pela reedificação desta praça. Em 1719 é nomeado Engenheiro-Mor e Brigadeiro dos Exércitos do Reino e, em 1735, é promovido a Sargento-Mor de batalha.

Quando, em 1720, D. João V fundou a Academia Real de História, Manuel de Azevedo Fortes foi um dos 27 sócios fundadores indicados pelo Conselho de Sua Majestade, sendo-lhe atribuída, em conjunto com o matemático Padre Manoel de Campos (um dos 23 sócios fundadores indicados por instituições religiosas), a responsabilidade pelos “pontos Geograficos da Historia, assim Ecclesiastica, como Secular destes Reynos”, tarefa cartográfica que, não obstante o seu empenhamento, não conseguiu levar a bom termo.

Apesar deste desaire, referido inúmeras vezes pelo próprio, Manuel de Azevedo Fortes conseguiu impor o seu projecto mais global de afirmação da engenharia militar portuguesa. Neste contexto, interveio directamente na construção de um espaço pedagógico e profissional para o métier de engenheiro, na óptica do que mais moderno se fazia ao tempo, mantendo-se sempre fiel à difusão das novas formas do pensamento europeu em Portugal. A par dos projectos académicos e pedagógicos, Manuel de Azevedo Fortes participou em numerosos projectos de fortificação em todo o país, quer de raiz, quer introduzindo modificações, assumindo-se como uma referência na área da engenharia militar. 

A educação que teve fora de Portugal, a carreira profissional que iniciou no estrangeiro, os contactos que manteve com o que se passava no exterior das fronteiras do reino, em larga medida proporcionados pelo seu conhecimento de três línguas europeias, e a sua integração no círculo ericeirence, fazem de Manuel de Azevedo Fortes um caso paradigmático da importância dos estrangeirados na definição de uma nova racionalidade científico-tecnológica em Portugal, ligada aos princípios do Iluminismo. Esta nova atitude face ao papel a desempenhar pela ciência e a tecnologia nas sociedades modernas, com que Fortes convivera nos países estrangeiros, está bem espelhada nas suas obras. 

No quadro das Luzes, os trabalhos de Azevedo Fortes, embora focando-se em aspectos específicos da engenheiro militar, partilham de um projecto global de modernização da sociedade portuguesa, de que o uso do vernáculo, e não do latim, é emblemático. A importância da educação formal e a relevância da sedimentação de uma comunidade nacional de engenheiros militares são claras, não só pelo número de militares com exercício de engenharia que a procuram e frequentam, como pelos esforços no sentido do seu alargamento a outras partes do Reino, nomeadamente ao Brasil e à Índia.  

É precisamente sobre estas questões profissionais e de formação que o recém-nomeado Engenheiro-Mor do reino publicou, em 1719, a Representação sobre o Modo e Direcção que devem ter os Engenheiros para melhor sevirem n’este Reino e suas Conquistas, primeiro esboço de um regulamento para o exercício da profissão de engenheiro.

No contexto das suas tarefas na Academia Real de História, Fortes escreveu o Tratado do modo mais fácil e o mais exacto de fazer cartas geographicas, assim como do mar e tirar as plantas das praças, cidades e edíficios com instrumentos e sem instrumentos (1722), obra que, tendo como motivação última recuperar a liderança portuguesa na área da cartografia, se tornou de ensino obrigatório para os engenheiros e outros oficiais da Academia Militar, introduzindo-os nas regras de fortificação dos matemáticos Claude Millet Deschalles e Jacques Ozamam. Ainda na sua qualidade de académico, Fortes escreveu vários textos, dos quais se destaca a Oração Académica pronunciada na presença de Suas Magestades indo a Academia ao Paço em 22 de Outubro de 1739, na qual, a propósito dos trabalhos de organização das cartas geográficas da História Eclesiástica e Secular de Portugal, defendeu, de forma vigorosa, a ciência baseada na matemática e elogia o apoio dado por D. João V às novas atitudes face ao conhecimento.  

Em 1728, Azevedo Fortes retoma o tema da formação dos engenheiros, publicando O Engenheiro Portuguez, obra dividida em dois tratados, versando sobre a fortificação e o ataque e defesa das praças. Ambos os Tratados contêm, no fim do respectivo volume, um Apêndice (no primeiro tomo sobre cálculos baseados na trigonometria rectilínea e no segundo sobre armas de guerra) e estampas ilustrativas sobre os conteúdos tratados. Esta obra, de vocação eminentemente didáctica, pretende expor, de forma sistematizada, os conhecimentos considerados fundamentais para o exercício da profissão de engenheiro, aqui apresentado como um técnico que, de uma forma particular, incorpora num mesmo sistema de saber os planos teórico e prático. Esta nova visão da engenharia como área privilegiada de contacto e interacção entre a ciência e a prática, insere-se numa óptica de modernidade assente na crítica ao ensino de tipo escolástico praticado nas escolas portugueses. Trata-se, portanto, de disponibilizar em português, para os futuros engenheiros portugueses, um corpus de conhecimentos que o Engenheiro-Mor do reino conhecia, porque havia contactado com ele no estrangeiro durante a sua formação académica e profissional, mas que se encontrava ausente ou profundamente desactualizado no ensino português. O Engenheiro Portuguez baseia-se nas referências da escola francesa, nomeadamente nos influentes Marquês de Vauban e Conde de Pagan e nos engenheiros militares Errard de Bar-le-Duc, Antoine de Ville e Manesson Mallet. 

Obra usada como manual na Aula de Fortificação e de Arquitectura Militar, o Engenheiro Portuguez era considerado pelos alunos como um símbolo da nova postura da engenharia portuguesa e da sua integração numa comunidade transnacional. Neste contexto, e perante um ataque à obra de Azevedo Fortes, os alunos reagem escrevendo a Evidencia apologetica e critica sobre o primeiro e segundo tomo das “Memorias militares”, pelos particantes da Academia militar d’ esta corte (1733), em que criticam os opositores do Engenheiro-Mor pela sua falta de precisão e desactualização no plano da terminologia.  

Em 1744, já numa fase tardia da sua vida, Manuel de Azevedo Fortes publicou a Lógica Racional, Geométrica e Analítica, obra claramente cartesiana, que introduz as novas correntes da filosofia europeia em Portugal. Contrapondo a lógica dos modernos, nomeadamente Descartes, Tycho Brahe, Regiomontanus, Roberval, Galileu e Gassendi, à argumentação escolástica (que considerava ser uma interpretação deturpada da filosofia aristotélica, com base nas leituras árabes e de comentadores medievais como Averróis e Avicena), Fortes impõe uma visão cognitiva da ciência assente na matemática. Esta obra, que antecedeu em dois anos e preparou o caminho para o trabalho de Luís António Verney, O Verdadeiro Método de Estudar, foi igualmente usada como livro de instrução para os alunos da Aula de Fortificação  e de Arquitectura Militar.

Azevedo Fortes morre em Lisboa, em Março de 1749. A forma inovadora como entende a figura profissional o engenheiro e o facto, pouco comum em Portugal, de ter efectivamente agido como formador de uma nova mentalidade tecnológica (através das suas obras, que são adoptadas como livros de texto nas escolas de engenharia nacionais), tornam-no uma referência incontornável na engenharia portuguesa. Sendo um estrangeirado, e tendo, portanto, contactado, nos planos educativo e profissional, com as elites intelectuais da Europa das Luzes, soube usar esta experiência, adquirida precocemente e mantida ao longo da sua vida,  para moldar o perfil da engenharia militar portuguesa e dotá-la de um estatuto multifacetado, sólido e moderno que se prolongará nos séculos seguintes.

Maria Paula Diogo

Obras 

Representação sobre o Modo e Direcção que devem ter os Engenheiros para melhor servirem n’este Reino e suas Conquistas. Lisboa: Officina de Mathias Pereira da Silva & João Antunes Pedroso, 1719-1720.

Tratado do modo mais fácil e o mais exacto de fazer cartas geographicas, assim como do mar e tirar as plantas das praças, cidades e edifícios com instrumentos e sem instrumentos. Lisboa: Officina de Paschoal da Silva, 1722.

O Engenheiro Portuguez. Lisboa: Officina de Manoel Fernandes da Costa, 1728-29.

Lógica Racional, Geométrica e Analítica. Lisboa: Officina de José António Plates, 1744.

Oração Académica pronunciada na Presença de Suas Magestades indo a Academia do Paço em 22 de Outubro de 1739. 

Bibliografia sobre o biografado

Andrade, António Alberto Banha de. “Manuel de Azevedo Fortes, primeiro sequaz, por escrito, das teses fundamentais cartesianas em Portugal”, in Contributos para a história da mentalidade pedagógica portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1982, pp. 191-126. 

Bernardo, Luís Manuel Aires Ventura. O Projecto Cultural de Manuel de Azevedo Fortes: Um Caso de Recepção do Cartesianismo aa Ilustração Portuguesa. Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.

Coxito, Amândio A. O Compêndio de lógica de M. Azevedo Fortes e as suas fontes doutrinais, (Coimbra: Universidade de Coimbra,1981). 

Cruz, José Gomes da. Elogio Fúnebre de Manoel de Azevedo Fortes. Lisboa:1754.

Diogo, Maria Paula. “Manuel de Azevedo Fortes: o nascimento da engenharia moderna em Portugal”, XIX Colóquio de História Militar, 100 Anos do Regime Republicano: políticas, rupturas e continuidades. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar, 2011, pp. 167-181. 

Diogo, Maria Paula, Ana Carneiro, Ana Simões. “El Grand Tour de la Tecnología: El Estrangeirado Manuel de Azevedo Fortes”, in A. Lafuente, A. Cardoso Matos, T. Saraiva (eds.), in Maquinismo Ibérico – Tecnologia y cultura en la península ibérica, siglos XVIII-XX. Aranjuez: Doce Calles, 2006, pp 119-139.