Lisboa, 22 setembro 1806 – Lisboa, 8 abril 1877
Palavras-chave: medicina, Conferência Sanitária Internacional, epidemias, autópsia do rei D. Pedro V.
DOI: https://doi.org/10.58277/VBNM4967
Bernardino António Gomes foi filho do médico com o mesmo nome (1768–1823) e de Leonor Violante Rosa Mourão (1775–1864). O seu pai foi descrito como um dos mais importantes cientistas mundiais, ao nível de Pasteur, Koch e Roux. Os seus trabalhos na área da botânica permitiram-lhe o isolamento da cinchonina, um antipirético, e a sua posterior cristalização. Foi também um promotor da vacinação anti-varíola em Portugal, ao fundar, juntamente com outros médicos, a Instituição Vacínica em 1812, da qual foi diretor.
Bernardino António Gomes (filho) estudou Medicina em Paris e Matemática em Coimbra. Foi lente de Medicina, de Matéria Médica e Farmácia. Foi o primeiro médico a utilizar o clorofórmio em Portugal e um aparelho de inalação de éter, como forma de anestesia.
Casou com Maria Leocádia Fernandes Tavares de Barros (1819–1854). O casal teve dois filhos: Bernardino António Barros Gomes (1839–1910), engenheiro silvicultor, responsável por levantamentos cartográficos de várias áreas de Portugal, e Henrique de Barros Gomes (1843-1898), autor de obras sobre matemática, astronomia e geografia, deputado, ministro da Fazenda, dos Negócios Estrangeiros e da Marinha e Ultramar, Par do Reino e conselheiro de Estado.
Da uma vida dedicada à prática clínica, à docência e ao estudo das ciências médicas destaca-se a sua obra muito variada, com quase duas dezenas de títulos, abrangendo maioritariamente as especialidades da epidemiologia e medicina geral, mas incluindo também áreas como higiene, farmácia, patologia, psiquiatria, termalismo, vacinas e até as biografias do seu pai e do Padre João Loureiro e uma memória sobre fósseis vegetais do terreno carbonífero.
Foi o fundador e colaborador da Gazeta Médica de Lisboa e do Jornal da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa. Participou, em 1876, na Farmacopeia Portuguesa. Realizou viagens de estudo ao estrangeiro, nas quais adquiriu conhecimentos e as mais recentes novidades em instrumentos e aparelhos cirúrgicos da sua época, que trouxe para Portugal, além de visitar as redações e estabelecer contactos com revistas médicas internacionais, onde divulgou as revistas médicas portuguesas e estabeleceu trocas de periódicos.
Foi um dos médicos que acompanhou a doença que afligiu o rei D. Pedro V e dos irmãos, os infantes D. Fernando, D. João e D. Augusto após um regresso do Alentejo em setembro de 1861. Depois de uma caçada em Vila Viçosa, D. Pedro e os irmãos seguiram para Portalegre, Alter do Chão e Abrantes. Na volta para Lisboa revelaram-se os primeiros sintomas da doença que os afetou a todos, provocando a morte ao rei e aos infantes D. Fernando e D. João. Foi aberto um inquérito policial e a equipa de médicos que realizou a autópsia negou a hipótese de envenenamento, declarando como causa de morte uma febre tifoide, doença muito comum na época, provocada por uma bactéria intestinal da família das salmonelas, habitualmente ingerida em águas ou alimentos contaminados. Bernardino António Gomes escreveu um livro registando todo o processo da doença e da autópsia, no qual foi um dos protagonistas.
Em 23 de novembro de 1865, foi eleito presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.
Estudou a fundo as epidemias que assolaram o mundo no seu século e em particular as que afetaram Portugal desde 1833 com a chegada do cólera-mórbus ao Porto nos navios de soldados belgas que ajudaram os liberais na Guerra Civil. Durante o cerco do Porto, e depois quando se espalhou pelo país, a epidemia de cólera acabou por causar mais de 40 mil mortos, um número mais elevado do que o da própria guerra. Depois desta, seguiram-se mais oito vagas epidémicas, disseminadas por indivíduos com profissões de alta mobilidade, como soldados, marinheiros, comerciantes ou pedintes, e intensificadas pela falta de higiene nas casas e nas ruas, pelo uso de água e alimentos contaminados e pela concentração dos doentes em pequenos espaços. Os Estados reagiram, por vezes de forma divergente, com medidas restritivas que privilegiavam os cordões sanitários e as quarentenas, e que tinham consequências económicas por vezes tão devastadoras como a própria doença. A comunidade médica internacional, se bem que beneficiasse de uma circulação bastante regular do conhecimento, pelo menos entre os países europeus e da América do Norte, verificou a falta de capacidade de resposta prática à doença. A partir de 1851, as potências europeias começaram a enviar os seus melhores especialistas a Conferências Sanitárias Internacionais. Estas conferências foram iniciadas em Paris e repetidas em Constantinopla em 1866, Viena em 1874, Washington em 1881, Roma em 1885, Veneza em 1892, Dresden em 1893 e de novo em Veneza em 1897.
A posição defendida por Bernardino António Gomes inseriu-se na teoria do contágio, baseando-se na sua longa experiência e em exemplos práticos, que foram expostos no artigo publicado na Gazetta Médica de Lisboa em 16 de fevereiro de 1858, sob o título “Sur la transmissibilité et l’importation de la fièvre jaune, du choléra, et de la peste. État actuel de la question. 1858” (publicado de novo em Constantinopla em 1866). Esta teoria fora contestada nas décadas anteriores. Enquanto desde o século XVI o contágio das doenças fora defendido, o século XIX viu surgir uma nova geração de cientistas que o negaram, baseando-se na ineficácia das quarentenas e dos cordões sanitários (especialmente na altura da pandemia de cólera de 1832), remetendo-o para o domínio do fantástico, absurdo e infantil. Baseados em experiências várias, incluíndo no seu próprio corpo, e imbuídos do espírito liberal da época, os cientistas defensores do anticontagionismo lutaram pela liberdade do indivíduo e do comércio, contra o despotismo e a reação. Verificou-se assim uma clara associação entre teorias anti-contágio e interesses comerciais. Enquanto os governos do norte da Europa, mais liberais e progressistas, avançaram com políticas higienistas, abolindo quarentenas e cordões sanitários, os do sul da Europa, mais conservadores, mantiveram as práticas correspondentes à teoria do contágio. Sem dúvida que a teoria anti-contágio apresentou aspetos positivos, uma vez que os países que a defenderam colocaram em prática grandes operações sanitárias dirigidas especificamente contra a sujidade, as quais acabaram por ser eficientes na prevenção das subsequentes epidemias. Por isso, mesmo quando os trabalhos de John Snow fizeram retomar a teoria do contágio, que foi readmitida pela maioria dos cientistas a partir de 1865, os conceitos higienistas continuaram a ser considerados fundamentais e foram postos em prática cada vez com mais intensidade.
Bernardino António Gomes representou Portugal na Conferência Sanitária Internacional de Constantinopla em 1866, o ano a seguir a nova epidemia de cólera, defendendo a teoria do contágio e a necessidade da interrupção da navegação. Colocou-se do lado de França e da maioria dos representantes dos países da Europa do Sul, contra as posições liberais da Inglaterra e da Alemanha, que defendiam ainda a postura anti-contágio e, portanto, o levantamento das quarentenas e dos cordões sanitários, escudando-se na eficácia das medidas sanitárias postas em prática nestes países. O relatório final da conferência reafirmou a contagiosidade da cólera e declarou que a água e certos alimentos podiam ser as vias de entrada no organismo do agente patogénico (já como reflexo dos trabalhos de John Snow), além de declarar que as comunicações marítimas eram um fator de propagação da epidemia.
Bernardino António Gomes recebeu as seguintes condecorações: comendador da Ordem de Sant’Iago e de Torre e Espada, grã-cruz da Ordem de Isabel, a Católica, e oficial da Legião de Honra de França.
Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa
Obras
Gomes, Bernardino António. Memoria sobre a epidemia da cholera-morbus que grassou na cidade do Porto desde 1832 a 1833. Lisboa: Typografia da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, 1842).
Gomes, Bernardino António. Elementos de farmacologia geral, ou Principios geraes de materia medica e de therapeutica. Lisboa: Typ. da Academia, 1851.
Gomes, Bernardino António. “Apontamentos para a História da Epidemiologia em Portugal.”Gazetta Médica de Lisboa 6 (1857): xx-xx (página inicial e final)
Gomes, Bernardino António. O marechal Duque de Saldanha e os medicos: breves considerações ácerca da memoria sobre o estado da medicina em 1858. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859).
Gomes, Bernardino António. Noticia da doença de que falleceu sua Magestade El-Rei o Senhor D. Pedro V e das que na mesma occasião atacaram Suas Altezas os Senhores Infantes D. Fernando, D. Augusto e D. João no anno de 1861. Lisboa: Imprensa Nacional, 1862.
Gomes, Bernardino António. Questão vaccinica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1864).
Gomes, Bernardino António. As epidemias no Asylo da Ajuda, nos annos de 1860-1864. Lisboa: Imprensa Nacional, 1865.
Gomes, Bernardino António. Aperçu historique sur les épidémies de choléra-morbus et de fièvre jaune en Portugal, dans les années de 1833-1865 par le Délégué du Gouvernement Portugais a La Conférence Sanitaire Internationale Réunie a Constantinople. Constantinopla: Imprimerie Centrale, 1866.
Gomes, Bernardino António. Sur la transmissibilité et l’importation de la fièvre jaune, du choléra, et de la peste. État actuel de la question. 1858. Constantinopla: Imprimerie Centrale, 1866.
Gomes, Bernardino António. O esgôto, a limpeza e o abastecimento das águas em Lisboa: o que foram ou são, e o que devem ser, considerado tudo á luz das boas praticas e doutrinas. Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias, 1871.
Bibliografia sobre o biografado
Ackerknecht, Eriwn H. “Anticontagionism between 1821 and 1867.” Bulletin of the History of Medicine 22 (1948): 562-593.
Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.
Garnel, Maria Rita Lino. “Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus).” Revista de História da Sociedade e da Cultura 9 (2009): 229-251.
Gomes, Joaquim Eleutério Gaspar. Elogio do conselheiro Bernardino António Gomes. Lisboa: Imprensa Nacional, 1877.