Funchal, 26 agosto 1896 – Lisboa, 3 agosto 1985
Palavras-chave: Matemático; Professor Universitário; Funchal; Desigualdade de Gonçalves.
DOI: https://doi.org/10.58277/IDJZ6894
J Vicente Gonçalves foi professor universitário e matemático. Produziu uma vasta obra científica que inclui cinco manuais para o ensino liceal, quatro manuais para o ensino superior e aproximadamente uma centena de artigos científicos sobre temas de análise, álgebra e história da matemática. Teve um papel de relevo no panorama matemático português da época, pela sua atuação como professor e investigador, e pelas iniciativas que levou a cabo e que incentivaram alunos e colegas mais novos a investigar e a divulgar os seus resultados junto da comunidade científica internacional.
Os primeiros dezassete anos de vida foram vividos na companhia dos pais, Maria José Gonçalves e José Gonçalves, na Rua da Conceição, no Funchal. Foi aí que frequentou a escola primária e o Liceu Nacional Central, onde concluiu o curso complementar de Ciências em julho de 1913. A frequência de disciplinas como latim, francês e inglês foram de grande valia na leitura de obras originais e no contacto com matemáticos estrangeiros.
No ano letivo de 1913/14 Gonçalves iniciou o curso em Ciências Matemáticas na recém-criada Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra (FCUC), que concluiu em 1917 com dezanove valores. Dos seus professores destacam-se: José Bruno de Cabedo, João José Dantas Souto Rodrigues, José Augusto Pereira da Silva, Diogo Pacheco d’ Amorim, Francisco Miranda da Costa Lobo, Henrique Manuel Figueiredo e Luciano Pereira da Silva. Alguns destes mais tarde tornaram-se seus colegas aquando da sua nomeação para 2.º assistente provisório do 2.º grupo (mecânica e astronomia), a 17 de agosto de 1917, por proposta de Pereira da Silva. Deste período ficou também a amizade com alguns colegas de curso, como Manuel Esparteiro. A 14 de agosto foi nomeado para o cargo de 2.º assistente do 1.º grupo da 1.ª secção.
Gonçalves concluiu o doutoramento em Ciências Matemáticas a 23 de julho de 1921, apresentando a tese “Sobre quatro proposições fundamentais da teoria das funções inteiras”, trabalho na área da análise complexa, que partiu da leitura das “Leçons sur les fonctions entières” de Emile Borel e apresenta resultados e todas as demonstrações originais. O júri foi Souto Rodrigues (presidente), Pacheco d’Amorim (arguente) e João Pereira da Silva Dias (arguente).
Cerca de um mês depois, a 27 de agosto de 1921, Gonçalves casou com Maria Teresa Teixeira da Silva Botelho da Costa. Não teve filhos e as crianças mais próximas eram os três sobrinhos por afinidade, com quem conviveu de perto.
A 28 de janeiro de 1922, Gonçalves foi nomeado 1.º assistente. Em 1927 fez concurso de provas públicas para Professor Catedrático apresentando a tese “Teoria geral da integrabilidade Riemanniana”. Foi nomeado professor catedrático do 1.º grupo, 1.ª secção a 17 de junho de 1927.
Gonçalves lecionou na FCUC até outubro de 1942. Mudou a seu pedido para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), onde lecionou até à jubilação, janeiro de 1967) Entre 1947 e 1960 acumulou funções de professor catedrático no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF).
Lecionou, entre outras, as disciplinas de: Cálculo Infinitesimal, Análise Superior, Matemáticas Gerais, Física Matemática, Geometria Superior, Complementos de Álgebra e Mecânica Racional.
No desenrolar da atividade profissional, Gonçalves desempenhou diversos cargos e funções. A título ilustrativo refere-se: na FCUC o cargo de secretário interino do qual tomou posse a 17 de dezembro de 1928 e foi exonerado (a seu pedido) a 9 de novembro de 1931; na FCUL o cargo de bibliotecário com início a 30 de janeiro de 1947 por dois biénios e, em 1950, a criação e direção da Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 2.ª série A (RFCUL); no ISCEF a organização e direção do Curso Matemáticas Superiores Prof. Mira Fernandes, criado em 1956, para homenagear este professor pela sua jubilação (curso anual e livre que funcionou até 1964).
Gonçalves pertenceu à Academia de Ciências de Lisboa (ACL) começando por ser eleito sócio correspondente a 4 de dezembro de 1941, passando a sócio efetivo a 1 de março de 1945. Ocupou a cadeira n.º 3 sucedendo a Pedro José da Cunha. A 7 de dezembro de 1983, foi-lhe atribuído o Colar Académico “pelos altos méritos científicos e pelos relevantes serviços prestados àquela Academia”, como consta na ata da sessão. Após a sua morte a ACL organizou uma sessão de homenagem sendo o elogio histórico proferido por J. Tiago de Oliveira, que lhe sucedeu na cadeira n.º 3.
Gonçalves foi considerado um professor erudito, exigente, rigoroso e atualizado. Estas características por um lado assustavam e afastavam bastantes alunos, por outro cativavam os que se sentiam mais motivados pela matemática. Entre estes encontram-se professores do ensino secundário, economistas, professores universitários (exemplo: Ruy Luís Gomes, Fernando R. Dias Agudo, J. Marques Henriques, Rui Soares) e vários políticos portugueses que desempenharam altos cargos públicos, incluindo de governação. Influenciou vários jovens matemáticos portugueses no sentido de se dedicarem à investigação. É exemplo João Farinha. a quem sugeriu o tema para doutoramento, frações contínuas de elementos complexos, assunto recente na época e que Gonçalves foi dos primeiros a investigar em Portugal. Na FCUL teve como assistentes José Dionísio e no ISCEF Fernando de Jesus, José de Albuquerque, Joaquim Laginha e Viegas Dias. Correspondeu-se com vários matemáticos estrangeiros, entre outros, Paul Montel, W. Kahan, Maurice Fréchet, Oskar Perron e Konrad Knopp. Estabeleceu uma vasta rede de contactos, resultado das diferentes áreas a que se dedicou. A docência e a pertença a júris de doutoramento ligaram-no, por exemplo, a José Sebastião e Silva e a Peter Braumann; a investigação, a participação em encontros científicos e o cargo de diretor da RFCUL ligaram-no a António Almeida Costa, Aureliano de Mira Fernandes, Alexander Ostrowski, Herbert Knothe e Evelyne Frank, entre muitos outros (quarenta matemáticos portugueses e trinta estrangeiros de diferentes gerações publicaram nesta revista); a publicação e divulgação dos seus manuais para o ensino liceal uniram-no a Fernando Vilaça e a Braga da Cruz, a reitores de liceus, colegas, antigos colegas e alunos e certas individualidades; as relações de amizade mantiveram-no sempre próximo de Esparteiro e de Mira Fernandes.
Como investigador Gonçalves tinha a particularidade de se inspirar nos conteúdos que lecionava para fazer matemática e, de integrar os resultados recentes (dele ou de outros) nas aulas e nos manuais, o que fazia dele um professor diferente do professor universitário tradicional da época, que se limitava a repetir conhecimento feito por outros e no passado.
Debruçou-se sobre diversos tópicos cujos contributos ainda estão por apurar, mas os até agora identificados permitem afirmar que Gonçalves ombreava com matemáticos de relevo portugueses e estrangeiros e que merece o reconhecimento que aos poucos lhe vai sendo consagrado. Apresentam-se alguns exemplos.
Sobre localização de zeros de polinómios obteve um resultado publicado em “L’ Inegalité de W. Specht” considerado por Ostrowski, em 1960, como um melhoramento do resultado de Specht e que tem vindo a ser citado: Morris Marden em 1966; D. S. Mitrinovic em 1970 considera-o o melhor possível; J. M. McNamee em 1993; e por P. Borwein em 2002, que o designa Gonçalves’s inequality.
No contexto de problemas sobre polinómios ortogonais, em particular sobre a fórmula de Rodrigues, obteve um resultado de grande importância, em virtude de ser válido para todos os casos que podem ocorrer na equação em causa, antecipando-se ao trabalho de H. L. Krall e O. Frink sobre polinómios de Bessel. Obteve ainda a fórmula habitualmente atribuída a F. Tricomi.
Sobre frações contínuas é de destacar a introdução do tema no ensino e na investigação permitindo avanços nesta área como são exemplo os referidos em “Sur deux résultats de J. Farinha”.
Quanto à história da matemática, em 1940, publicou um artigo de grande importância, por nele atribuir explícita e fundamentadamente a Anastácio da Cunha a primazia na definição de convergência de uma série que mais tarde veio a servir a Cauchy de critério de convergência. Os restantes artigos nesta área são mais tardios.
O facto de ter deixado uma obra escrita vasta, de grande qualidade e a maioria escrita em língua francesa, foi uma forma de disseminar a sua influência junto dos seus contemporâneos, mas também ao longo de gerações. O Curso de Álgebra Superior, com três edições, significativamente diferentes a ponto de serem tidas como livros novos, é considerado tão importante como outros tratados estrangeiros. Os manuais para o ensino liceal cobriam todos os anos de escolaridade e tinham aprovação oficial .Os artigos científicos foram publicados em várias revistas científicas, na sua maioria portuguesas, mas eram do conhecimento da comunidade científica internacional da época, em grande parte devido à sua rede de contactos.
Gonçalves teve um papel de relevo na mudança de perfil do professor universitário do início do século XX e que veio a instituir-se no seu final. Identificam-se três vertentes na sua atuação, professor, investigador e autor, que se sustentam umas às outras de modo cíclico. A sua conjugação dá forma a uma identidade profissional pouco comum na época, em Portugal. A importância dada à investigação original fê-lo tomar diversas iniciativas que levaram alunos, colegas e investigadores mais jovens a investigar, defendendo veementemente “temos de investigar”. Na altura este era o passo essencial a dar para que Portugal pudesse vir a ter um escol de matemáticos a nível internacional e Gonçalves foi um dos autores que para isso contribuiu.
Maria Cecília Rosas Pereira Peixoto da Costa
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Arquivos
Lisboa, Arquivo da Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa (Pasta com processo de J. Vicente Gonçalves).
Lisboa, Arquivo da Biblioteca da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (livros de sumários das disciplinas lecionadas por J. Vicente Gonçalves 1929-1941 e livros da sua coleção pessoal).
Funchal, Arquivo da Escola Secundária Jaime Moniz (Elementos biográficos de J. Vicente Gonçalves).
Arquivo do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (Pasta com processo de J. Vicente Gonçalves).
Arquivo da Livraria Cruz em Braga (Pasta de J. Vicente Gonçalves com a correspondência recebida e cópia da enviada entre 31/12/1938 e 14/10/1954. Esta pasta foi entregue a Cecília Costa estando em seu poder, mas disponível para consulta sob pedido através de mcosta@utad.pt).
Arquivo da Universidade de Coimbra (Pasta com processo e espólio pessoal de J. Vicente Gonçalves).
Arquivo da Universidade de Lisboa (Pasta com processo de J. Vicente Gonçalves).
Obras
Gonçalves, José Vicente. Curso de Álgebra Superior, 1.ª ed. de 1933, 2.ª ed., 1.º volume, 1.º fascículo de 1944, 2.º fascículo de 1945 e 2.º volume de 1950, 3.ª ed. de 1953.
Gonçalves, José Vicente. Compêndio de Aritmética para o 3.º ciclo (7.ª classe) do Curso dos Liceus. Braga: Livraria Cruz, 1939.
Gonçalves, José Vicente. Análise do Livro VIIII dos “Principios Mathematicos” de José Anastácio da Cunha, Congresso do Mundo Português (1940): vol. XII, pp. 123-140.
Gonçalves, José Vicente. Henri Lebesgue, Gazeta de Matemática, ano III, (1942): 12:2-3.
Gonçalves, José Vicente. Sur une formule de récurrence, Portugaliae Mathematica, (1942): vol. III, 3:215-233.
Gonçalves, José Vicente. Sur la formule de Rodrigues, Portugaliae Mathematica, (1943): vol. IV, 1:52-64.
Gonçalves, José Vicente. L’ Inégalité de W. Specht, Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa 2.ª série A, (1950): vol. I, 1:167-171.
Gonçalves, José Vicente. Modernas investigações sobre limites dos módulos das raízes, Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências, 1956. (Reimpresso e traduzido em 1958).
Gonçalves, José Vicente. Sur deux résultats de J. Farinha. Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa 2.ª série A, (1959): vol. VII, 2:311-320.
Gonçalves, José Vicente. Passos de Pedro Nunes ao Serviço do Rei. Memórias da Academia de Ciências de Lisboa (Classe de Ciências), (1985): vol. XXVI, 21-51.
Bibliografia sobre o biografado
Branquinho, Amílcar. Contribuições de Vicente Gonçalves na teoria dos polinómios ortogonais. Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, 37 (1997): 17-20.
Costa, Cecília. José Vicente Gonçalves: Matemático… porque Professor!, (Colecção Memórias n.º 37), Centro de Estudos de História do Atlântico e Secretaria Regional do Turismo e Cultura, Funchal, 2001.
Costa, Cecília & Malonek, Helmuth. Testemunhos de reconhecimento: cartas de Oskar Perron e Konrad Knopp a Vicente Gonçalves. Atas do V Encontro Luso-Brasileiro de História da Matemática, Câmara Municipal de Castelo Branco, Castelo Branco, Portugal, 2011, pp. 99-109.
Oliveira, J. Tiago. Elogio Histórico de Vicente Gonçalves. Memórias da Academia de Ciências de Lisboa (Classe de Ciências), (1987): vol. XXVII, 207-224.
Silva, Jaime Carvalho e. Vicente Gonçalves e a História da Matemática em Portugal. Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, (1997): 37, 17-20.