Luís, António

Lisboa, ca.1510 – m. ca.1575

Palavras-chave: Medicina Renascentista, Filosofia Natural, João de Barros, Humanismo português.

DOI: https://doi.org/10.58277/PSLB7742

António Luís foi um médico humanista com um domínio reconhecido das línguas clássicas e hebraica. Legou-nos uma obra multifacetada que atesta a pluralidade dos seus interesses, desde a medicina à filosofia, desde a teologia à retórica ou à gramática, não só compondo estudos de carácter médico e filosófico ou uma oração panegírica a D. João III, mas também vertendo de grego para latim tanto textos de medicina, filosofia e retórica, como um comentário patrístico de um livro do Antigo Testamento, a que acrescem duas obras desaparecidas em língua portuguesa.

António Luís pertence à primeira geração de cristãos-novos, nascida após a Conversão Geral (1497), sendo filho do “físico” mestre Luís. Em conjunto com um grupo de eleição de cristãos-novos, António Luís obteve o bacharelato no Estudo de Salamanca, primeiro em artes e depois em medicina (15/03/1532). Entre os seus colegas contam-se Amato Lusitano, Diogo Pires, Duarte Gomes, Luís Nunes de Santarém, Manuel Lindo, Manuel Reinel ou Tomás Rodrigues da Veiga. Nos primeiros anos da década de trinta, quase todos regressaram a Portugal, onde se dedicaram ao exercício da medicina ou procuraram ingressar como docentes na Universidade de Lisboa. António Luís apresentou-se com alguns dos seus condiscípulos como oponente a dois concursos na Universidade de Lisboa, primeiro como candidato a uma vaga para a cadeira de Súmulas (12/08/1532), mais tarde a uma outra vaga para a cadeira de artes (12/08/1534), que antes pertencera a Garcia de Orta. Malgrado o insucesso em ambos os concursos, António Luís logrou obter o grau de licenciado em medicina na Universidade de Lisboa (29/11/1533). A maioria dos colegas foi abandonando Portugal rumo ao desterro, nos anos antecedentes e subsequentes ao estabelecimento da Inquisição em Portugal, em 1536, instalando-se quase sempre na praça de Antuérpia. António Luís permaneceu em Portugal, embora não seja de excluir a possibilidade de ter passado pela cidade do Escalda, tanto mais que o seu primeiro livro (Enchiridion, 1537) foi dado à estampa em Antuérpia, contendo versões latinas de textos gregos de Miguel Pselo, Teles e Sótades, acompanhadas de um ensaio intitulado De pudore. A composição desta obra, conforme se retira da carta dedicatória a João de Barros, resultou de um pedido do feitor da Casa da Índia ao autor, para que este reunisse um conjunto de lugares-comuns sobre o tema da vergonha nas literaturas clássicas, que haveriam de servir de inspiração para a redação do Diálogo da viciosa vergonha (1540).

Momento marcante na vida de António Luís foi, sem dúvida, o processo que lhe foi movido pela inquisição de Lisboa, nos primeiros dias de fevereiro de 1539. Denunciado pelos senhorios da casa em que vivia com o progenitor, António Luís foi considerado suspeito de envolvimento na criação de um panfleto anticristão afixado em algumas igrejas de Lisboa, tendo sido interrogado em sua casa, alvo de buscas, pelo inquisidor João de Melo e detido durante cerca de 11 dias. Os inquisidores não parecem ter conseguido comprovar a ligação do médico aos acontecimentos havidos em Lisboa, tendo sido libertado pouco depois, no dia 21/02/1539. É provável que tenha existido alguma intervenção superior no sentido de propiciar a rápida libertação de António Luís, pouco consonante com as suspeitas graves levantadas nos depoimentos e com a posse ilegal de livros em hebraico na sua livraria. Este processo ocorre numa época em que a questão judaica assume uma importância capital na sociedade portuguesa, em vésperas da reorganização e do agravamento da atuação do Tribunal do Santo Ofício, confrontando-se duas visões distintas sobre a forma como os cristãos-novos deveriam ser efetivamente convertidos ao catolicismo, pelo uso da força ou do diálogo. António Luís parece ser apologista da via do diálogo, segundo se depreende de certas passagens do De pudore, em linha com a posição advogada pelo próprio João de Barros no Diálogo Evangélico sobre os Artigos da Fé contra o Talmud dos Judeus. A via da força, porém, rapidamente ganharia preponderância com o apertar da malha inquisitorial, agravada com a celebração dos primeiros autos-de-fé em Lisboa a partir de 1540, na sequência dos quais abandonaram o país, rumo a Antuérpia, Duarte Gomes, Luís Nunes de Santarém, Manuel Reinel ou Duarte Pinel, mais tarde conhecido como Abraão Usque.

A publicação das restantes quatro obras impressas de António Luís, todas saídas dos prelos de Luís Rodrigues, ocorre na sequência do auto inquisitorial, entre 1539 e 1540, destacando-se três livros de temática filosófica e médica (Problematum libri quinqueDe occultis proprietatibus e De re medica opera), a que acresce a oração panegírica a D. João III (Panagyrica oratio). É de notar a publicação da segunda edição do De pudore, juntamente com De occultis proprietatibus, embora nesta edição, compreensivelmente, tenham sido retirados vários passos em que o autor demonstrava sobejo conhecimento da língua hebraica e das Sagradas Escrituras, nomeadamente de livros do Antigo Testamento. Depois da publicação destes quatro livros, não volta a haver notícias de António Luís até ao momento em que, por alvará de D. João III, datado de 11/01/1547, foi nomeado para reger, na Universidade de Coimbra, a cadeira de medicina, lendo Aristóteles e Galeno em grego, tendo recebido, alguns meses depois, o honroso convite do Conselho da universidade para proferir a Oração de Sapiência na abertura do ano letivo de 1548. Esta curta experiência docente, que se prolongou por três anos, constituiu a única ocupação remunerada conhecida em toda a vida de António Luís. No processo inquisitorial diz-se que ele não praticava a medicina, à semelhança de seu pai, preferindo dedicar-se antes à reflexão, tanto na área da medicina como da filosofia, afirmando ele próprio que era universal em todas as ciências. Por certo, as obras médicas de António Luís contidas na miscelânea à guarda da Biblioteca da Ajuda, cuja dedicatória a D. João III data de 1 de setembro de 1548, devem estar relacionadas, no todo ou em parte, com o magistério conimbricense, havendo vários comentários e versões latinas de obras galénicas.

No quadro das relações estreitas que António Luís estabeleceu com algumas figuras destacadas do Humanismo português, em particular com João de Barros, revelam-se os interesses, as preocupações e os contactos do autor. Os diversos textos prefaciais com que António Luís consagrou as suas principais obras a João de Barros manifestam, de forma inequívoca, o alto apreço e o enorme respeito existente entre ambos. O próprio João de Barros pôs à disposição de António Luís o códice que possuía dos Comentários a Isaías de S. Cirilo de Alexandria, para que o amigo o pudesse verter de grego para latim, tal como se depreende da dedicatória que precede a versão do médico lisboeta, realizada provavelmente após a publicação da primeira Década da Ásia (1552). Entre o círculo de relações de António Luís, pontuam outras figuras de relevo na sociedade portuguesa de Quinhentos, sendo de destacar, além dos referidos condiscípulos de Salamanca, nomes como André de Resende, frei Brás de Barros, André Cotrim, Luís Pires, António Pinheiro, a quem é dedicada a versão latina das declamações de Libânio (este manuscrito apresenta a data de 1544), ou Rodrigo Sánchez e Jerónimo Cardoso, cuja correspondência com o autor está documentada.

Apesar da diversidade, a obra de António Luís está marcada, indelevelmente, pelo espírito humanista, pelo regresso aos textos dos autores clássicos, seja na versão de textos gregos para latim, seja na recriação original de temas e modelos clássicos, seja na mais pura reflexão de carácter médico e filosófico, inspirada sobretudo nos textos de Aristóteles, Hipócrates ou Galeno. Um domínio excecional das línguas e literaturas clássicas, associado a um conhecimento inegável da língua hebraica e das Sagradas Escrituras, concederam ao autor a capacidade de produzir uma obra singular no contexto do Humanismo português. António Luís compôs a sua obra, quase na totalidade, em latim, embora haja notícia de que tenha deixado manuscritas duas obras em português, entretanto desaparecidas, um Tratado da Língua Portuguesae um Tratado de Agricultura, títulos semelhantes aos de João de Barros ou Fernando Oliveira. António Luís, tal como os colegas salmanticenses, tinha também um domínio perfeito do castelhano. Através dos testemunhos prestados no auto inquisitorial, ficou a conhecer-se o labor intenso em que António Luís passava os seus dias, rodeado de muitos livros de teologia, que afirmou ter estudado em Salamanca. Uma suspeita, a que foi dada escassa atenção, foi a de que andava há cerca de dois anos a verter textos da “briuja” para castelhano. Não será de excluir que António Luís tenha participado, com outros antigos colegas, como Diogo Pires ou Duarte Gomes, na Bíblia de Ferrara (1553), primeira versão castelhana impressa do Antigo Testamento. 

António Luís adotou o método filológico de análise, comentário e versão dos textos originais como o caminho mais adequado para o acesso à verdade inscrita nas obras dos autores da Antiguidade, alicerçado no domínio do grego, do latim e do hebraico, bem como das línguas vernáculas como o português e o castelhano. O conhecimento das línguas, como bem reconheceu o autor na abertura de cariz autobiográfico da Panagyrica oratio, constituiu-se para ele como a condição necessária “para se penetrar nos arcanos das ciências e das doutrinas”.

António Manuel Lopes Andrade
CLLC- Centro de Línguas, Literaturas e Culturas
Universidade de Aveiro

Arquivos

Basileia, Universitätsbibliothek Basel, Cod. F VI 38.

Évora, Biblioteca Pública de Évora, Cod. CIX/2-2.

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, II Parte, maço 239, n.º 1.

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo n.º 7807 (“Auto que se fez sobre o licenciado António Luís …”). Processo transcrito por Mário Brandão in Francisco Leitão Ferreira, Notícias cronológicas da Universidade de Coimbra, Coimbra, Por ordem da Universidade, 1944, volume 3.º, tomo 1.º, pp. 729-741.

Lisboa, Biblioteca da Ajuda, Cod. 46-VII1-12.

Louvain-la-Neive, Archives de l’Université catholique de Louvain, Cod. A 33.

Obras

Cardoso, Jerónimo. Epistolarum Familiarium libellus. Lisboa: João Barreira, 1556.

Luís, António. Quae in hoc Enchiridio continentur Anthonii Lodouici Olisiponensis medici, de Pudore liber unus. In quo tum multa pulchra et recondita ex uaria et frequentissima Graecorum historia, iam inde deprompta, referuntur. Tum plurima ex Platone et Aristotele et aliis philosophorum disputata et eleganter impugnata reperiet diligens Lector. Michaelis Psellii sapientissimi allegoria tres. Prima in Tantalum. Secunda in Sphingem. Tertia in Circem. Teles: de comparatione diuitiarum et paupertatis. Sotades: quod uita plurimis plena malis. Et alia quaedam omnia ex graeco traducta ab eodem Anthonio Lodouico. Epistola nuncupatoria fini adiecta est. Legat studiosus lector et philologus et, quamuis in homine peregrino, transmarinam quamdam et peregrinam eruditionem cum facundia non uulgari deprehendet. Excussum Antuerpiae typis Michaelis Hillenii sub intersigni Rapi. Anno MDXXXVII. [“Matérias que se contêm neste Livrinho: um livro do médico lisboeta António Luís Acerca da Vergonha, no qual não apenas se apontam muitas coisas excelentes e pouco acessíveis extraídas da variegada e povoadíssima história dos Gregos, mas também o interessado leitor encontrará muitos temas discutidos e elegantemente impugnados, a partir de Platão, Aristóteles e outros princípios dos filósofos. Três alegorias do sapientíssimo filósofo Miguel Pselo: a primeira sobre Tântalo, a segunda sobre a Esfinge e a terceira sobre Circe. Telete: “Sobre a comparação da riqueza e da pobreza”. Sótades: “Que a vida está cheia de inúmeros males”. E alguns outros textos, tudo traduzido do grego pelo mesmo António Luís. No final acrescentou-se uma “Epístola dedicatória”. Leia o leitor estudioso e filólogo: e, em um homem estrangeiro, irá encontrar uma espécie de erudição helénica e peregrina unida a uma eloquência pouco vulgar. Impresso em Antuérpia na oficina de Miguel Hillen, no ano de 1537”]

Luís, António. Panagyrica oratio elegantissima plurima rerum et historiarum copia referta Ioanni huius nominis tertio inuictissimo Lusitaniarum regi nuncupata. Vlysbonae. Apud Logdouicum Rotorigium Tipographum. MDXXXIX [“Oração panegírica elegantíssima, cheia de muita abundância de factos e histórias, dedicada ao invictíssimo rei dos portugueses D. João, o terceiro deste nome. Em Lisboa. Na tipografia de Luís Rodrigues, 1539”]

Luís, António. Problematum libri quinque opus absolutum, et facundum, et uarium, multiuagaque eruditione refertissimum. Olyssippone. MDXXXIX [“Cinco livros de Problemas: obra perfeita, eloquente e variegada, assaz opulenta de multiforme erudição. Em Lisboa. 1539”]

Luís, António. De occultis proprietatibus libri quinque. Opus praeclarissimum. Olisipone MDXL [“Cinco livros acerca das propriedades ocultas. Obra muitíssimo notável. Em Lisboa. 1540”]

Luís, António. De re medica opera quae hic sequuntur: ~ Erotematum siue commentariorum in libros de crisibus Galeni libri tres ~ Erotematum numeri ternarii libri sex in quibus tota fere ars medica continetur ~ Erotemata de difficili spiratione ~ Erotematum de usu respirationis liber alius ~ De corde liber unus absolutissimum in quo tum Aristotelis quam plurimi errores explicantur, tum uero plurimae quaestiones enodantur ~ Galeni liber de ptisana ~ Galeni de eo quid sit animal, id quod utero continetur ~ De eo quod Galenus animam immortalem esse dubitauerit, liber unus ~ Item quaedam. Legat lector candidus et nec sermonis ornatum nec doctrinam quod rarum est in homine nec in Latio, nec in Hellade nato desiderabit. Olisipone. MDXL [“Obras acerca de matéria médica que aqui se seguem: ~ Três livros de questões ou comentários sobre os livros Acerca das crises, de Galeno ~ Seis livros de questões tripartidas. Nas quais se encerra quase por inteiro a arte médica ~ Questões acerca da respiração difícil ~ Outro livro de questões acerca da função respiratória ~ Um livro muitíssimo completo acerca do coração, no qual não só se esclarecem inúmeros erros de Aristóteles, mas também se elucidam diversas dúvidas ~ Livro de Galeno Acerca da tisana ~ De Galeno, sobre a questão de que é animal o que se contém no útero ~ Um livro sobre a questão de que Galeno duvidou da existência da alma ~ Também algumas outras coisas. Leia o leal leitor e não sentirá a falta nem de primor de linguagem nem de apurado saber, algo que é raro numa pessoa que não nasceu no Lácio nem na Hélade. Em Lisboa. 1540”]

Bibliografia sobre o biografado

Brito, A. da Rocha. Duas assinaturas de António Luiz. Porto: Jornal do Médico, 1947. 

Luís, António. Cinco livros de problemas. Tradução de António Guimarães Pinto. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2010 (Colecção Translata 3).

Pérez Ibáñez, María Jesús e Ortega Villaro, Begoña. “António Luís y sus traducciones de textos no médicos”. Myrtia 27 (2012): 259-280.

Pinto, António Guimarães. Apostilas a António Luís: 1. António Luís e João de Barros; 2. António Luís, António Pinheiro e Rodrigo Sánchez. Coordenação editorial e prefácio de Antonio Manuel Lopes Andrade. Lisboa – Aveiro: Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste” da Universidade de Lisboa, Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2013.

Ramalho, Américo da Costa. “António Luís, corrector de Erasmo. Humanitas 45 (1993): 243-254.