Castelo Branco, 6 outubro 1567 — Tours, 19 fevereiro 1616
Palavras-chave: medicina, neuropsiquiatria, psicologia, melancolia.
DOI: https://doi.org/10.58277/BGUD7546
Filipe Rodrigues de Luna Montalto, filho de António Aires, boticário, e de Catarina Aires e neto materno de Filipe Rodrigues e Brízida Gomes, nasceu no seio de uma família cristã-nova conhecida por Luna Montalto na freguesia de Santa Maria. Estudou Medicina na reputada Universidade de Salamanca e dedicou-se à sua prática em Portugal no Adro de Santa Justa em Lisboa, onde era conhecido por Dr. Montalto ou Dr. Filipe Montalto.
Casou com Jerónima da Fonseca, filha de Lopo da Fonseca, médico da rainha D. Catarina, e neta de um “batizado em pé” (obrigado ao batismo, após o decreto de expulsão dos judeus de 1496). Grande parte das famílias de Montalto e sua esposa, incluindo irmãos, cunhados e sobrinhos, foi presa e desapossada pela Inquisição. Outra parte procurou refúgio em França, Amesterdão ou Hamburgo, nomeadamente os sobrinhos por afinidade de Montalto, conhecidos pelo apelido Curiel. Duarte Nunes da Costa ou Jacob Curiel foi financiador da companhia holandesa West Indische Compagnie, representante da Coroa Portuguesa em Hamburgo, sendo agraciado pelo rei que o nomeou Cavaleiro da Casa Real. Os seus feitos enquanto membro da Nação Portuguesa de Hamburgo de proteção a D. Duarte de Bragança foram honrados pelo poeta Levi de Barrios em Coro de las Musas. Por outro lado, Jerónimo Nunes da Costa ou Moisés Curiel representou a Companhia do Brasil em Amesterdão, sucedendo-lhe os seus descendentes até meados do século XVIII. A família Curiel foi um dos pilares de suporte da Restauração e da Dinastia de Bragança.
Montalto exilou-se inicialmente em Livorno, mas estabeleceu-se em Florença por volta de 1606, quando publicou a sua obra médica Optica, sobre doenças dos olhos, dedicada a Cosme de Médicis, onde, no prefácio, corroborou ter sido convidado para ensinar na Universidade de Pisa pelo duque da Toscânia, pai de Maria de Médicis. Em 1609, ainda se encontrava em Florença, pois foi daí que enviou uma carta a Tomás da Fonseca, seu cunhado, que, entretanto, fora preso pela Inquisição de Lisboa e que constituiu prova contra o réu. Em 1611–1612, já se encontrava em Veneza, enviando várias cartas a outro seu cunhado, Pêro Rodrigues, exilado em Saint Jean de Luz. Foi em Veneza que, sob a égide do rabino Leon de Modena (1571–1648), se converteu ao judaísmo e provavelmente escreveu o Tratado sobre Isaías 53, uma obra de polémica religiosa.
Mais tarde, desempenhou as funções de médico pessoal dos monarcas franceses, Henrique IV e Maria de Médicis, assim como da ama favorita da rainha, Leonora Galigai. Foi o único judeu de sua casa a receber autorização para residir na corte francesa, a qual incluiu também o seu secretário Saul Levi Mortera (c. 1596–1660), futuro rabino de Amesterdão. Em Paris, beneficiou de grande consideração, pois integrou o conselho de Luís XIII, embora um dos seus escritos seja uma defesa perante as autoridades rabínicas contra acusações de que não cumpria o Shabat, tratando os seus doentes nesse dia.
Foi durante a sua estadia em França que publicou Archipathologia, obra considerada pelos seus contemporâneos e por diversos historiadores como precursora na neuropsiquiatria e psicologia e onde, pela primeira vez, assumiu o nome Philothei Eliani Montalto Lusitani.
Em Archipathologia, Montalto classificou exaustivamente várias doenças neuropsicológicas e propôs para cada afeção uma abordagem específica, numa atitude tipicamente moderna, como refere Adelino Cardoso. Tornou-se uma das obras pioneiras no que às desordens psíquicas diz respeito, embora já tivessem sido abordadas e classificadas por Felix Platter (1535–1614), deão da Faculdade de Medicina da Universidade de Basel em Praxis Medica e Observationes.
Montalto era reconhecido pelos seus pares e fazia parte da República das Letras que incluiu, neste caso, os autores e obras de Medicina. Facilmente se comprova pelas citações das suas obras médicas, principalmente de Archipathologia, que a sua obra foi muito bem acolhida pelos mais proeminentes vultos do ensino e prática de medicina. Exemplo desse reconhecimento e da sua inovação com base na sua experiência é o Consilium, que Montalto incluiu como apêndice ao “Tratado IV”, sobre a melancolia, na qual analisou um caso de hipocondria. Na essência, um consilium é um parecer especializado de um médico respeitado pelos seus pares, em resposta a um caso difícil colocado por um médico menos experiente.
O professor de Oxford, Robert Burton (1577–1640), citou a obra de Montalto mais de oitenta vezes no seu trabalho Anathomy of Melancholy. Por outro lado, Bento de Castro (1597–1684) nutriu por Montalto uma profunda admiração patente em Flagellum Calumniatum. Montalto encontra-se entre os médicos listados por Johannes Antonides van der Linden (1609–1664) em De Scriptis Medicis, também conhecido por Lindenius Renovatus. Por seu turno, Manuel Álvares de Távora ou Abraham Zacuto Lusitano (1575–1642) referiu-se às obras de Montalto em De Medicorum Principium Historia e Praxis Historiarumi. Por fim, o professor da Universidade de Jena, Konrad Schneider (1614–1680) citou Montalto mais de trinta vezes na sua obra Liber de Morbis Capitis.
A importância da obra de Montalto estendeu-se aos séculos seguintes, pois foi listada pelo professor da Universidade de Groningen, Georgius Mathiae, em Conspectus Historiae Medicorum Chronologicus e pelo familiar do Santo Ofício e médico, João Curvo Semedo (1635–1719), em Polyanthea Medicinal. Foi ainda citado pelo médico de D. João V e membro da Real Academia das Ciências de Lisboa, Francisco da Fonseca Henriques (1665–1731), em Medicina Lusitana. As obras Optica e Archipathologia faziam parte da biblioteca de Raphael Bluteau (1638–1734), que citou esta última em vários dos seus escritos, nomeadamente em Primicias Evangelicas, Sermoens, Sermoens Panegyricos e Vocabulário Português. Por seu lado, Harry Campbell (1867–1915), que estava ligado ao London Hospital e ao Royal College of Physicians, citou Archipathologia mais de uma dezena de vezes na sua obra Headache and Other Morbid Cephalic Sensations.
Também o seu filho, Moseh Montalto, Miguel de Luna ou Dr. Luna, contribuiu para prolongar a relevância dos trabalhos de Montalto. Luna seguiu as pisadas do pai e dedicou-se à Medicina em Lublin na Polónia, onde tratou o príncipe Estanislau. Foi também administrador da Companhia de Dotar Órfãs e Donzelas em Amesterdão (cujo objetivo era casar sefarditas órfãs e pobres). Simultaneamente, comerciou civetas africanas ou gatos almiscarados, animais produtores de almíscar, muito utilizados em perfumaria e na elaboração de medicamentos. Este negócio foi partilhado com o irmão Isaac Montalto ou Lopo de Luna Montalto que, por seu turno, foi rabino, tendo estado durante um certo período de tempo no Norte de África e em Hamburgo. Descendem de Rachel Montalto, casada com David Israel Meldola, os famosos rabinos sefarditas Meldola
Entre os discípulos de Montalto, ou pelo menos acompanhantes, conta-se Saul Levi Mortera, embora essa ligação pareça ser apenas na área religiosa, pois Mortera tornou-se num dos principais rabinos na Nação Portuguesa de Amesterdão, responsável pela aplicação do Herem a Bento Espinosa, em consequência das suas ideias consideradas heréticas pelo conselho dos parnassim. A sua rede de contactos incluiu ainda Leon de Modena, um dos mais proeminentes rabinos da sua altura, o que granjeou a Montalto a alcunha de Haham, sábio, pois com o dito rabino deve ter tido discussões teológicas que provavelmente se materializaram mais tarde na sua obra Tratado sobre Isaías 53.
Em suma, Montalto beneficiou de uma vasta rede de contactos que, para além das elites religiosas de diversas comunidades judaicas, incluiu ainda a aristocracia portuguesa, italiana e francesa, podendo-se considerar Montalto um judeu de corte e simultaneamente um sábio e um médico proeminente.
O reconhecimento da sua importância pelos seus pares está patente numa vasta disseminação pela Europa e esta só foi possível, porque vários professores das principais universidades europeias tinham Montalto e as suas obras como referências a serem transmitidas aos seus alunos. Para além disso, não se pode descurar o papel das academias a que pertenceram muitos dos leitores das obras de Montalto, nomeadamente a Academia Real das Ciências, da qual foram membros Francisco da Fonseca Henriques e Bluteau, que integrou ainda a Academia dos Generosos e as reuniões informais na casa do conde da Ericeira. Para além disso, Harry Campbell era membro do Royal College of Physicians que teve um papel fundamental na classificação das doenças e na melhoria da prática da Medicina.
Montalto faleceu subitamente em Tours, quando acompanhava o cortejo de Isabelle de Bourbon. O seu corpo foi embalsamado por ordem da rainha-mãe de França e enviado para Ouderkerk, o cemitério judaico da Nação Portuguesa de Amesterdão. A sua pedra tumular perpetuou em língua portuguesa a sua importância como médico e como rab raby Eliau Montalto.
Florbela Veiga Frade
CHAM
Obras
Montalto, Eliah. Tratado Sobre o capitulo 53, de Isahias do sapientissimo e celebre varao o Doutor Eliau Montalto de gloriossa memoria conselheiro e Medico, del Rey e da Reina da Franca de Nauarra. Amsterdão: Isaac Navarro, 1652.
Montalto, Philippi. Optica Intra Philosophiae, & Medicinae aream. De visu, de visus organo, et obieto theoricamaccurate complectens. Florença, Cosmum Iuntam, 1606.
Montalto Lusitani, Philothei Eliani. Archipathologia in qua internarum capitis affectionum essentia, causae, signa, praesagia & curatio accuratissima indagine edisseruntur. Paris: F. Jacquin, 1614.
Montalto Lusitano, Philotheo Eliano. Tractatus Accuratissimus de Morbis Capitis. Saint Gervais: Iac de la Pierre, 1628.
Philo-Veritas [Montalto]. A Jewish tract, on the fifty-third chapter of Isaiah written by Dr. Montalto, in Portuguese and translated from his manuscript, by Philo-Veritas. Londres: s. n., 1790.
Bibliografia sobre o biografado
Cardoso, Adelino. “Aproximação à Archipathologia de Filipe Montalto.” In Humanismo, Diáspora e Ciência. Séculos XVI e XVII, ed. António e Júlio Costa Andrade, 41–50. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto, 2013.
Dias, José Lopes. “Laços Familiares de Amato Lusitano e Filipe Montalto (novas investigações).” Imprensa Médica 25 (1-2) (1961): 22–36 e 53–69.
Rooden, Peter van. “A Dutch Adaptation of Elias Montalto’s Tractado Sobre o Principio do Capitulo 53 de Jesaias. Text, Introduction and Commentary.” Lias 16 (1989): 1–50.
Roth, Cecil. “Quatre Lettres d’Elie de Montalto.” Revue des Études Juives 87 (174) (1929): 139–165.
Salomon, Herman Prins. Lettre Inédite du Docteur Felipe Rodrigues Montalto. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.