Serra, José Francisco Correia da

Serpa, 5 junho 1751 — Caldas da Rainha, 1823

Palavras-chave: estrangeirado, naturalista, simetria em botânica, Academia Real das Ciências de Lisboa. 

DOI: https://doi.org/10.58277/HIEB1148

O Abade José Francisco Correia da Serra foi um naturalista, estrangeirado e mação que participou na fundação da Academia Real das Ciências de Lisboa e foi o primeiro diplomata português nos Estados Unidos da América. A rede de relacionamentos que entreteceu nos meios científicos, políticos e diplomáticos granjeou-lhe um lugar de destaque ao nível da construção e da transmissão do saber.

José Francisco Correia da Serra nasceu em Serpa, em 1751, filho de Luís Dias Correia, médico, e de Francisca Paula Luísa de Leão. Por razões ainda não totalmente esclarecidas, a família fugiu para Itália, quando ele era ainda uma criança de seis anos. Passou os três anos seguintes em Nápoles em casa do seu tutor, o Abade António Genovesi, um dos expoentes do Iluminismo italiano. Mais tarde, já em Roma, contactou com Luís António Verney, que o iniciou nas ciências naturais, área em que, aos vinte anos, já se correspondia com Lineu.

Durante o exílio da família em Itália, e devido às relações estabelecidas pelo seu pai com o Duque de Lafões, o jovem Correia da Serra estabeleceu com este uma amizade que cultivou durante longos anos e que lhe valeu a sua proteção em várias ocasiões difíceis. Em 1775, com 24 anos, Correia da Serra ingressou na vida eclesiástica, ainda que, ao longo da sua vida, tenha, muitas vezes, expressado ideias anticlericais. Regressou a Portugal em 1779, vivendo algum tempo sob a proteção de Frei Manuel do Cenáculo, personalidade da confiança do Marquês de Pombal, e com quem Correia da Serra partilhava afinidades ideológicas. Nesse mesmo ano, colaborou na fundação da  Academia Real das Ciências de Lisboa, a convite do Duque de Lafões, e, em 1788, foi nomeado seu secretário. 

Perante a assembleia da Academia das Ciências, Correia da Serra leu diversas memórias e elogios que, por razões que se desconhecem, não foram publicados na altura. Entre estes manuscritos encontra-se, por exemplo, o elogio a Benjamin Franklin, proferido em 4 de Julho de 1791, pouco tempo depois do estabelecimento de relações diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos. Dos trabalhos sobre ciência útil, o único então publicado foi o “Discurso Preliminar” às Memórias Económicas (1789), em que destacou o papel da Academia no “propagar as luzes” e a contribuição das ciências naturais e das exatas para o desenvolvimento e prosperidade de Portugal. 

As memórias não publicadas incluem relatos de viagens em Portugal e no estrangeiro, considerações sobre monumentos históricos, questões económicas relacionadas com o “progresso da ciência da agricultura” e observações variadas sobre a formação e estrutura física do território português. Nelas, Correia da Serra revela um percurso de investigação que associa a história natural à história geral do país, convicto que esta começava não com a origem dos povos que tinham ocupado um dado espaço geográfico, mas com a origem natural desse espaço.

Em 1795, Correia da Serra abandonou Portugal, na sequência da proteção que deu, nas instalações da Academia, ao médico francês e conhecido girondino Pierre-Marc-Auguste Broussonet. Pina Manique, que mantinha sob suspeita a Academia das Ciências e muitos dos seus membros mais representativos sob a acusação de serem pedreiros-livres, apertou a vigilância sobre Correia da Serra que era, de facto, membro da Maçonaria, obrigando-o a fugir de uma eventual perseguição e prisão.

Até 1801, Correia da Serra residiu em Inglaterra, exercendo, provavelmente graças à influência do Duque de Lafões junto de D. Maria I, o cargo de conselheiro da representação diplomática em Londres. Os contactos científicos que estabelecera enquanto figura dinamizadora da Academia das Ciências permitiram-lhe colocar-se sob a proteção de Sir Joseph Banks, homem rico e influente, patrono das ciências, que acolhia naturalistas de mérito de diversas nacionalidades, promovendo, assim, o intercâmbio científico entre investigadores mesmo em situações de conflito.

Foi durante a sua estada em Inglaterra, e, precisamente, com o apoio de Banks, que Correia da Serra iniciou a sua carreira internacional como botânico, publicando trabalhos nas Philosophical Transactions of the Royal Society of London e nas Transactions of the Linnean Society. Num dos seus primeiros artigos publicado neste período,  “On a Submarine Forest on the east Coast of England”, descreve os resultados do trabalho de campo realizado, na companhia de Sir Joseph Banks, numa localidade situada na costa do Lincolnshire, em Inglaterra, em que, através do estudo de ilhotas de charnecas, essencialmente constituídas por árvores decompostas, respondia a questões de carácter geológico, nomeadamente sobre o período em que a decomposição observada se iniciara e o agente geológico que a tinha provocado.

Entre os naturalistas com quem privou durante o período inglês contam-se, para além de Banks, James Edward Smith, o primeiro presidente da Linnean Society, Richard Anthony Salisbury e Robert Brown, então apenas um jovem botânico que Correia da Serra apresentou a Banks. Começava a desenhar-se o perfil de Correia da Serra como naturalista apostado em promover ligações e contactos, cultivados dentro e fora das associações científicas às quais pertencia, como, por exemplo, a Linnean Society.

Em 1802, Correia da Serra viu-se forçado a trocar Londres por Paris, devido à perseguição, pessoal e política, de que foi alvo por parte do Embaixador português e da sua influente família, os Ponte de Lima, permanecendo na capital francesa até 1812. No Jardin des Plantes encontrou um ambiente de trabalho intelectualmente estimulante, em contacto próximo com naturalistas franceses. Uma vez mais, aproveitou a sua presença em Paris para dar a conhecer aos naturalistas locais o trabalho dos colegas ingleses e vice-versa, promovendo o intercâmbio científico entre ambos os países. Assumiu este papel uma derradeira vez, quando emigrou para os Estados Unidos da América, em 1812, abandonando França por se recusar a obedecer a ordens de Napoleão durante a terceira invasão a Portugal.

Devido à sua notoriedade enquanto naturalista, e munido de inúmeras cartas de recomendação de prestigiados diplomatas e intelectuais¾Joel Barlow e David Warden (ambos diplomatas americanos em Paris), A. von Humboldt, Dupont de Nemours e Lafayette¾, Correia da Serra rumou aos Estados Unidos da América, sabendo bem que a botânica ainda dava os primeiros passos neste jovem país. Antes mesmo de chegar a Filadélfia já era membro do Wistar Party, um círculo restrito de intelectuais, muitos deles pertencendo à American Philosophical Society. Correia da Serra viajou por diversos estados americanos para coligir informação variada, especialmente nas áreas da botânica e da geologia. Em 1815, foi convidado pela Universidade da Pensilvânia para reger cursos de botânica, considerados inovadores e que introduziram as ideias de sistemática de Antoine-Laurent de Jussieu, baseadas na morfologia das plantas, em Filadélfia e, provavelmente, em todos os Estados Unidos.

Em Julho de 1813, visitou o Presidente James Madison, em Washington, e encontrou-se com Thomas Jefferson em Monticello, Virgínia, iniciando com este uma amizade duradoira. Jefferson solicitou-lhe amiúde a sua opinião sobre vários assuntos, entre eles aspectos dos estatutos da futura Universidade da Virgínia. A partir de 1816, Correia da Serra tornou-se o primeiro embaixador de Portugal nos Estados Unidos e desempenhou um papel de relevo na definição do estilo das relações políticas entre os dois países. No entanto, aquele que parecia ser um cargo simples acabou por revelar-se complicado, devido aos numerosos problemas diplomáticos que surgiram na sequência do apoio dado por alguns americanos estabelecidos na América do Sul a movimentos anticoloniais, e por isso também, antiportugueses. Apesar de ter sido uma figura de charneira na aprovação do Neutrality Act de 1817, que pretendia preservar a posição de neutralidade dos EUA, a incapacidade do governo americano em pôr termo aos atos de pirataria contra a armada portuguesa no sul da América, convenceram Correia da Serra de que era altura de abandonar as suas funções diplomáticas. 

Decepcionado com esta experiência, Correia da Serra tencionava retirar-se para o Brasil, desejo que nunca concretizou, apesar do apoio real. Após uma curta estada em Londres, regressou a Portugal em 1821, após a vitória dos Liberais. O novo regime entendeu então premiá-lo, elegendo-o membro da Assembleia Constituinte como representante de Beja. Já com graves problemas de saúde, morreu em 1823 nas Caldas da Rainha.

Do ponto de vista metodológico e teórico Correia da Serra foi influenciado pelo botânico francês Antoine-Laurent de Jussieu e pelo alemão Joseph Gärtner, que também trabalhara sob o patrocínio de Joseph Banks. Os estudos de Gärtner incidiram sobre a carpologia — ramo da botânica que estuda os frutos e as suas sementes — e, apesar da sua pouca popularidade nos Estados Germânicos, influenciaram o trabalho dos naturalistas britânicos e de Jussieu. Porém, ao contrário de Jussieu e a exemplo de Gärtner, Correia da Serra defendia que os métodos da anatomia comparada utilizados na zoologia deveriam ser transpostos para a botânica. Nesta linha, as suas contribuições vieram a influenciar decisivamente o naturalista suíço Augustin Pyramus de Candolle.

As principais investigações de Correia da Serra situam-se no âmbito da fisiologia vegetal, nomeadamente a reprodução das criptogâmicas, e no campo da sistemática e da morfologia, onde propôs teses criativas e originais. A sexualidade das criptogâmicas foi uma questão complexa e controversa, cuja resolução só veio a ocorrer na segunda metade do século XIX. No artigo “On the Fructification of the submersed algae”, investigou a reprodução de algas submersas, argumentando que era importante não só compreender as relações entre estrutura e função, mas também a influência do ambiente específico de cada planta na indução de modificações particulares dos órgãos reprodutores. Comparando estas algas aos animais vivendo em habitat idêntico, relacionou a sua estrutura com a dos ovíparos (rãs e sapos) concluindo que as vesículas encontradas nas algas, desde que contendo “grãos” e muco, deviam ser consideradas flores hermafroditas, correspondendo os grãos às sementes e o muco ao pólen. Nesta altura era impossível a Correia da Serra compreender completamente o mecanismo de reprodução das algas, questão que, só após mais de sessenta anos de controvérsia, veio a ser resolvida por Adolphe Thuret e Nathanael Pringsheim, quando os métodos laboratoriais para o estudo da fisiologia vegetal adquiriram maior sofisticação.

O artigo sobre a família das laranjeiras, “Observations sur la famille des orangers et sur les limites qui la circonscrivent” (1805), introduziu o conceito de simetria que, posteriormente, Augustin Pyramus de Candolle utilizará e aprofundará na obra Théorie Élémentaire de la Botanique, destacando-se como uma das contribuições mais relevantes de Correia da Serra na área da sistemática. Neste artigo, fez a observação crucial de que os botânicos tinham sempre estado mais interessados em estabelecer diferenças entre as plantas do que em procurar as suas semelhanças. A ênfase nas semelhanças, que começava então a ser ensaiada por alguns naturalistas, teve um papel fundamental na inversão dos critérios de classificação tanto de animais como, posteriormente, de plantas. A reconhecida artificialidade da classificação analítica subjacente ao sistema sexual de Lineu, segundo a qual os grupos eram sucessivamente subdivididos, era assim substituída pelo método sintético, baseado na formação sucessiva de grupos de plantas, cada vez maiores e mais inclusivos. Assim, no quadro de um raciocínio tipológico o botânico português apresentou o conceito de simetria como sendo “o arranjo particular das partes, que resulta da sua situação respectiva e das suas formas.

Correia da Serra realizou, também, investigações no domínio da carpologia, centrando-se na origem anatómica das várias partes constituintes dos frutos, em particular, a estrutura dos carpelos e das placentas e a constituição e posições relativas dos embriões. Outro aspecto pioneiro das suas investigações nesta área foi o estudo das modificações do perisperma (endosperma) e o seu valor como elemento de afinidade, de acordo com a sua posição. Nos trabalhos que, neste campo, publicou em 1806 e 1807, nomeadamente “Observations Carpologiques”, “Vues Carpologiques”, “Vues Carpologiques. Article II” e “Suite des Observations Carpologiques”, reiterou as suas críticas à abordagem tradicional, que se restringia à descrição e classificação das plantas mediante a análise da sua estrutura externa. Mais uma vez advogou a transposição para a botânica dos métodos da anatomia comparada então correntes na zoologia e a investigação baseada nas relações de semelhança na organização interna das plantas. Neste trabalho, o botânico de Serpa afirma, de forma peremptória, que a diversidade encontrada na Natureza mais não era mais do que o resultado das variações de um mesmo plano de organização, devendo as plantas ser vistas como objetos tridimensionais que mostravam regularidades estruturais e funcionais. 

Como é visível pelas datas dos artigos acima mencionados, foram as estadas em Inglaterra e França, que permitiram o amadurecimento teórico e metodológico do estrangeirado Correia da Serra, construído sobre a partilha e o debate de conhecimentos, no interior de uma comunidade internacional de naturalistas. Neste contexto construiu, primeiro na cena europeia e depois na americana, a sua reputação como botânico, centrada no seu trabalho pessoal, mas também na forma como teceu, lenta mas duradouramente, uma rede de relações entre naturalistas de diversos países. 

Correia da Serra viveu num período conturbado da história portuguesa, entre o fim do absolutismo e a vitória do liberalismo, marcado pelas ações persecutórias de Pombal, de Pina Manique e da Inquisição, pelas Invasões Francesas e, finalmente, pelas lutas que levaram à Revolução Liberal de 1820. Durante este período, as suas investigações botânicas sofreram uma profunda mutação, revelando um percurso que parte de uma investigação botânica de contornos utilitaristas, típica das Luzes, para uma investigação fundamental em que se afirma como figura de relevo na construção das concepções que foram emergindo no início do século XIX. É assim que, do ponto de vista epistemológico, Correia da Serra se apresenta como uma figura cujo pensamento original se situa na transição entre os séculos XVIII e XIX e se apoia, por um lado, no método de classificação natural, baseado no estabelecimento de semelhanças estruturais entre os organismos, e, por outro, no desenvolvimento de estudos de avaliação da influência do meio na indução da diversidade. 

Olhando retrospectivamente a vida e as contribuições científicas de Correia da Serra, poderíamos classificá-lo, dentro do contexto português, como um dos cientistas mais notáveis da sua época, cujas concepções foram adoptadas pelos mais eminentes botânicos estrangeiros. Num país em que, à exceção dos trabalhos de João Loureiro e Félix de Avelar Brotero, a história natural era incipiente e medíocre, ao transformar o exílio no estrangeiro numa vantagem, Correia da Serra pôde manter-se constantemente atualizado e assim inserir-se, mercê das suas intuições e escolhas, na investigação mais inovadora do seu tempo.

Ana Simões, Ana Carneiro, Maria Paula Diogo

Arquivos

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Manuscritos de Correia da Serra; Arquivo da Casa de Linhares.

Bibliothèque Centrale du Muséum Nationale d’Histoire Naturelle, Ms.2442.

Natural History Museum, Londres, Banks Correspondence.

The Linnean Society, Londres. The Smith Papers; Richard Anthony Salisbury Correspondence. 

Obras

 “On the Fructification of the submersed algae”. Philosophical Transactions of the Royal Society of London (1796): 494−505.

“On a submarine Forest, on the East Coast of England”. Philosophical Transactions of the Royal Society of London(1799): 145−156.

“De l’état des sciences et des lettres parmi les Portugais pendant la seconde moitié du siècle dernier”. Archives Littéraires de L’Europe, 1 (1804) : 63−77, 269−290. 

“Observations sur la Famille des Orangers et sur les Limites qui la Circonscrivent“. Annales du Muséum d’Histoire Naturelle, 6 (1805): 376−387.

“Observations Carpologiques”. Annales du Muséum d’Histoire Naturelle 8 (1806): 59−68. 

“Vues Carpologiques”. Annales du Muséum d’Histoire Naturelle, 9 (1807): 283−293. 

“Vues Carpologiques, Article II”. Annales du Muséum d’Histoire Naturelle, 10 (1807): 151−156. 

“General considerations upon the past and future state of Europe”. American Review of History and Politics, 4 (1812): 354−366.

Catalogus plantarum Americae Septentrionalis, of the late Dr. Muhlenberg, to the natural families of Mr. Jussieu’s system. For the use of the gentlemen who attended the course of elementary and philosophical botany in Philadelphia in 1815. Philadelphia:1815.

Elogio de Benjamin Franklin. Lisboa: FLAD, 1996.

Bibliografia sobre o biografado

Carneiro, Ana, Maria Paula Diogo, Ana Simões, orgs.  José Francisco Correia da Serra: Investigações Botânicas. Porto: Porto Editora, 2003.

Davis, Richard Beale. The Abbé Correa in America, 18121820: The Contributions of the Diplomat and the Natural Philosopher to the Foundations of our National Life. Providence: Gavea Brown, 1993.

Faria, António. Concepção de História e Prática Política. O Abade Correia da Serra (1751-1823). Serpa: Câmara Municipal de Serpa, 2001.

Simões, Ana, Ana Carneiro, Maria Paula Diogo, orgs. José Francisco Correia da Serra: Itinerários Histórico-Naturais. Porto: Porto Editora, 2003.

Simões, Ana, Maria Paula Diogo, Ana Carneiro. Cidadão do Mundo. Uma biografia científica do Abade Correia da Serra. Porto: Porto Editora, 2006. Tradução inglesa: Citizen of the world. A scientific biography of Abbé Correia da Serra. University of California, Berkeley: Institute of Governmental Studies Press, 2012. 

Simões, Ana, Maria Paula Diogo, Ana Carneiro, “Correia da Serra, entre ciência, religião e diplomacia,” in Ana Simões, Marta C. Lourenço, José Alberto Silva, orgs., Ciência, Tecnologia e Medicina na Construção de Portugal. Razão e Progresso, século XVIII, pp. 255-274, 2º volume de Maria Paula Diogo, Ana Simões, eds., Ciência, Tecnologia e Medicina na Construção de Portugal. Lisboa: Tinta da China, 2021, 4 vols.