Lisboa, 25 setembro 1759 —Tavira, 6 Março 1829
Palavras chave: matemático, historiador, académico, reformador.
DOI: https://doi.org/10.58277/TXLO1188
Garção Stockler é o mais importante matemático português de fins do século XVIII e início do século XIX, e um dos mais distintos homens de cultura do seu tempo. Para além de matemático, foi historiador, militar, político, homem de letras, reformador e académico.
Começou a sua carreira militar muito cedo, ingressando no Regimento de Infantaria nº 11, onde assentou praça a 2 de Julho de 1775. Foi sucessivamente promovido até alcançar o posto de Brigadeiro efectivo de Infantaria em 1807.
Entrou para a Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra aos 25 anos.
Em 1787 foi admitido como sócio da Academia Real das Sciencias de Lisboa, vindo a ser nomeado seu Secretário em 1799. Em 1789 foi docente na Academia Real de Marinha, local onde se mantém em 1801 quando participa da desastrosa “Guerra das Laranjas”, como braço-direito do Duque de Lafões. Isto levou à sua marginalização na Academia Real da Marinha.
A atividade científica de Stockler centrou-se na matemática. Rejeitou as noções de infinitos de diversas ordens e colocou-se decididamente do lado da perspectiva newtoniana do Cálculo, reconhecendo contudo as fraquezas existentes no método das fluxões. Ao contrário da maioria dos matemáticos continentais seus contemporâneos, que optaram por seguir a perspectiva leibniziana, Stockler considerou a noção de limite como o conceito fundamental para dar rigor ao Cálculo. Essa foi a sua intenção quando em 1794 publicou o seu primeiro livro, o Compendio da Theorica dos Limites. É explícita a sua admiração por José Anastácio da Cunha (1744-1787), o melhor matemático português do século XVIII, e a influência deste em Stockler pode ser vista não só na economia do seu estilo mas igualmente na procura constante do rigor, embora esta não seja sempre bem sucedida.
Em 1797, no volume I das Memórias da Academia publicou a sua Memoria sobre os Verdadeiros Principios do Methodo das Fluxões, a propósito da qual travou mais tarde uma polémica com os editores da revista de Edinburgo Monthly Review. Em 1799 saiu o Volume II das Memórias da Academia, que inclui mais 3 artigos matemáticos seus. Em 1805 publicou o Volume I das suas obras, que não inclui artigos matemáticos. De referir neste volume o Elogio de João le Rond D’Alembert, e uma longa Memoria sobre a Originalidade dos Descobrimentos Marítimos dos Portugueses no Século Decimoquinto.
Em 1796 foi encarregado de elaborar um plano para a Instrução pública em Portugal, texto que é submetido anonimamente à Academia em 1799 com o título Plano e Regimento de Estudos. Esse plano dividia a Instrução Pública em quatro graus, e colocava a Academia das Ciências como a única instituição capaz de dirigir e inspecionar os Estudos Públicos, incluindo a educação de adultos, a elaboração de livros e a publicação de jornal literário. O Plano admitia o princípio da obrigatoriedade escolar para todos. O texto de Stockler acaba por ser recusado pela Academia, sendo a base essencial das críticas feitas por António Ribeiro dos Santos (1745-1818). Argumentou-se que o plano era impraticável pois então não havia meios para o realizar, com encargos financeiros excessivos e implicando alterações demasiado radicais das escolas nas suas estruturas internas e nos seus planos de estudos.
Em 1807, a sua atitude favorável aos franceses, durante a primeira invasão, foi muito polémica, tendo sido passado compulsivamente à reserva e demitido de todas as suas funções em 1809. Igualmente a partir de então a Academia passou a ter uma relação conflitual com Stockler, que terminaria em 1824, com a sua demissão de sócio.
A Academia começou por recusar a publicação de uma sua resposta ao livro de José Acúrsio das Neves Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino (Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 5 vols, 1810-1811) no qual era acusado de colaboracionista. Estando a Corte no Rio de Janeiro desde 1808, aí se deslocou para argumentar a favor da sua reabilitação. Conseguiu que fosse anulada a sua passagem compulsiva à reserva, tendo sido então promovido em marechal de campo efectivo. Simultaneamente publicou no Rio de Janeiro em 1813 uma sua resposta a José Acúrsio das Neves, Cartas ao autor da “História geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da restauração deste Reino” (Rio de Janeiro: Imprensa Régia).
Em 1815 entrou para a Junta da Direção da recém-fundada Academia Real Militar do Rio de Janeiro, cargo onde se manteve até 1820. Em 1816 foi encarregado de escrever um Plano para a Instrução Pública no Brasil (com a exceção das chamadas Ciências Eclesiásticas), a exemplo do pedido análogo que já se lhe tinha feito para o Portugal Europeu. Este plano foi submetido com o título Projecto sobre o estabelecimento e organisação da Instrucção Pública no Brazil (incluído no tomo II das suas Obras) mas nunca chegou a ser discutido com vista a uma possível aprovação.
Em 1818 foi promovido a Tenente General, e começou a escrita da sua última obra matemática, o Methodo Inverso dos Limites. No ano seguinte foi promovido a Tenente-General efectivo.
Em 1819 publicou em França o seu Ensaio Histórico sobre as Origens e Progressos das Mathematicas em Portugal, a primeira história da matemática num só país publicada no Ocidente (1819), antecedendo em cerca de 20 anos a obra de Guglielmo Libri (1803-1869) sobre a história da Matemática italiana (Histoire des Sciences Mathématiques en Italie, 4 vols, Paris Jules Renouard et Cie, 1838-1841). Stockler faz a primeira análise global da história da matemática portuguesa, dos seus primórdios à fundação da Academia das Ciências (1779), análise essa que foi aceite e repetida sem questionamento pelos historiadores da matemática portuguesa até aos princípios do século XX. Stockler considera que o trabalho em história da matemática é essencialmente um trabalho de historiador num domínio específico do conhecimento, os seus métodos são essencialmente os que são utilizados em história. Nunca faz uma análise da evolução e prática dos conceitos matemáticos. A sua principal influência foi o historiador francês Jean Etienne Montucla (1725-1799) e a sua monumental Histoire des Mathématiques, com a primeira edição em 1758 (Paris: Charles-Antoine Jombert), e a segunda, grandemente aumentada e parcialmente publicada após a morte de Montucla, entre 1799 e 1802 (Paris: Henri Agasse).
Em 1819 propõs à Academia a publicação das suas Poesias Lyricas, mas esta só autorizava a publicação com cortes (por, dizia, ter afirmações contrárias a ortodoxia católica), o que Stockler recusou, publicando o seu livro em 1821 em Londres.
Regressou a Portugal em 1820, e submeteu o seu Methodo Inverso dos Limites para publicação pela Academia. O parecer que esta deu foi negativo. Stockler enviou então o seu texto para a Royal Society of London, que o tinha aceite como sócio estrangeiro em Abril de 1819. Em 1823, saiu no Quarterly Journal of Science (15, (1), 1823: 357-360) um resumo da obra e uma crítica, colocando reservas a alguns procedimentos técnicos nela utilizados. O livro acabou por ser impresso independentemente por Stockler em 1824. Esta última recusa da Academia levou -o a deixar de ser seu sócio.
Por duas vezes, em 1820 e 1823, foi Governador e Capitão general das Ilhas dos Açores no complexo contexto das lutas entre liberais e absolutistas.
Em 1826 saiu o Tomo II das suas obras, que, tal como o primeiro, não contém artigos matemáticos.
Obras
Compendio da Theorica dos Limites, ou Introducção ao Methodo das Fluxões (Lisboa: Academia R. das Ciências de Lisboa, 1794).
“Memoria sobre os verdadeiros principios do Methodo das Fluxões”, Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo I (1797): 200-217.
“Demonstração do Theorema de Newton sobre a relação, que tem os coefficientes de qualquer equação algébrica com as sommas das potencias das suas raizes, e applicação do mesmo Theorema ao desenvolvimento em serie dos productos compostos de infinitos factores”, in Memorias de Mathematica e Phisica da Academia Real as Sciencias de Lisboa, tomo II (1799): 1-46.
“Memoria Sobre as Equações de condição das Funcções Fluxionaes”, Memorias de Mathematica e Phisica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo II (1799): 196-295.
“Memoria Sobre algumas propriedades dos Coefficientes dos termos do Binómio Newtoniano”, Memorias de Mathematica e Phisica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo II (1799): 480-511.
Lettre a M. Le Redacteur du Monthly Review ou Réponse aux Objections qu’on a faites dans ce journal à la methode des limites de fluxions hypothétiques, (Lisbonne: de l’Imprimerie de l’Académie Royale des Sciences, 1800).
Obras, tomo I (Lisboa: Academia das Sciencias, 1805); tomo II (Lisboa: Typ. Silviana, 1826).
Ensaio sobre a Origem e Progressos das Mathematicas em Portugal, (Paris: Officina de P. N. Rougeron, 1819).
Poesias Lyricas (Londres: T. C. Hansard, 1921)
Methodo Inverso dos Limites, ou Desenvolvimento Geral das Funções Algorithmicas (Lisboa:, Typographia de Thaddeo Ferreira, 1824).
Bibliografia sobre o biografado
Honório, Cecília, A Natureza e o Homem nos Caminhos do Saber e do Poder: Francisco de Borja Garção Stockler (1759-1829),Manuais Universitários (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2012).
Saraiva, L M R, On the first History of Portuguese Mathematics, Historia Mathematica, vol. 20, 4 (1993): 415-427.
Idem, Um matemático português no Brasil: Francisco de Borja Garção Stockler e o Methodo Inverso dos Limites, ou desenvolvimento geral das funções algorítmicas (1819-1824), Episteme, 11 (2000): 119-135.
Idem, Garção Stockler and the Foundation of the Calculus at the End of the 18th Century, Revista Brasileira de História da Matemática, vol.1, nº 2 (2001): 75-100.
Silva, Inocêncio Francisco da, Diccionario Bibliographico Portuguez, volume II, (Lisboa: Imprensa Nacional, 1859): 354~358, e volume IX (Lisboa: Imprensa Nacional, 1870): 271-273 e 448-449