Lourosa, Manuel Gomes Galhano

Almada, 1637 – 1675

Palavras-chave: astrologia, almanaques, medicina, Barroco Português.

DOI: https://doi.org/10.58277/JIGL9265

Manuel Gomes Galhano Lourosa foi um dos mais prolíficos autores portugueses de almanaques astrológicos do século XVII. Apesar disto, existem poucos dados biográficos sobre a sua figura. 

Antes de ingressar no ensino superior, tirou o curso de Artes, onde aprendeu matemática, astronomia e astrologia, a qual venerava como a “rainha” de todas as artes liberais. Em seguida estudou e licenciou-se em Medicina na Universidade de Coimbra e exerceu a profissão de médico na Costa de Caparica e em Almada. 

Foi discípulo de Frei Pedro de Menezes (1623–1650), religioso beneditino e lente de Matemática na Universidade de Coimbra e em vários lugares das suas obras deixou transparecer a admiração pelos “doutissimos Padres Conimbricenses, que são a nata de todas as boas letras, e a quem se deve toda a benevolencia, e beneplacito, como primeiros productores de bom leite, que todos os estudantes mamamos nas suas Academias, e Universidades”. 

Apesar de se inserir na tradição cosmológica aristotélico-ptolemaica, aceite pela maioria dos astrólogos portugueses seus contemporâneos, Lourosa acompanhou de perto os debates científicos e filosóficos mais atuais da sua época e, especialmente, as teorias sobre a natureza dos cometas de astrónomos como Tycho Brahe (1546–1601), Manuel Bocarro Francês (1588–1662) ou o jesuíta Cristóvão Borri (1583–1632). No que respeita à tradição médica, Lourosa socorreu-se da medicina hipocrática. 

Os lunários e prognósticos escritos pelo autor foram obras vendidas a preços muito baixos (custavam apenas 4 reis  na década de 1640) e conseguiram chegar a um público muito amplo. Este facto garantiu-lhe um sucesso editorial imediato e trouxe-lhe uma grande fama, que não foi afetada nem pelas polémicas acaloradas com outros ilustres cientistas. A controvérsia com António Pimenta (1620–1700), professor de Matemática em Coimbra, está patente no Tratado nas Ephemeridas de Euclides, em o qual refuta certas opinioens de Manuel Alvares Galhano Medico de Almada divulgadas no seu Prognostico do anno de 1662. A disputa com Francisco Guilherme de Casmach (1570–1650), cirurgião e médico da Família Real, foi a que se tornou particularmente violenta. A causa que provocou a acesa discussão entre os dois intelectuais foi um pequeno tratado sobre a praga de gafanhotos de 1639 – publicado anonimamente – que Lourosa reivindicara como seu num prognóstico datado de 1641. A diatribe,[2]  ao contrário do que era de esperar, reforçou o prestígio social de Lourosa, que ficou tão famoso que até D. Francisco Manuel de Melo (1608–1666), numa das suas Cartas familiares, o indicou como um “acreditado vaticinador de tempos e novidades”. Lourosa ficou conhecido também pelo seu empenho na Restauração da Independência de Portugal. O apoio dado ao novo governo foi evidente no prognóstico de 1669, no qual o autor festejou o tratado de paz entre Portugal e Espanha de 1668 e a independência de Portugal.

A sua carreira astrológica foi intensa. Ao longo de quarenta anos, publicou regularmente almanaques astrológicos. Para além de prognósticos e lunários, editou também versos em latim e escreveu um comentário ao primeiro canto d’Os Lusíadas de Camões. As obras científicas de Lourosa foram editadas por oito impressores diferentes: Manuel da Silva (1644?), Vicente de Lemos (1645?), António Alvarez (1643–1653), João Alvarez de Leão (1655–1657), Domingos Carneiro (1662?–1665), João Pereira (1666), António Craesbeeck de Melo (1659 e 1666–1668) e Francisco Vilela (1672–1674). Muitas das suas obras nunca foram impressas, apenas existindo versões manuscritas. Entre estas, salienta-se uma das suas primeiras obras juvenis, o Alvitre matemático, que ficou inédita por não ter recebido a autorização da Inquisição. A Polymathia Exemplar, onde expôs a sua teoria sobre a natureza dos cometas e analisou a passagem de um cometa em 1664–1665, é considerada a sua obra maior. 

Faleceu em Almada e foi sepultado no Convento dos Capuchos da Caparica da Ordem dos Frades Menores da Província da Arrábida. 

Luana Giurgevich

Obras

Lisboa, Biblioteca Nacional. Lourosa, Manuel Gomes Galhano.  1641. Alvitre Mathematico. Tratado Politico, physiologico, democratico, ethico, aristocratico e theologico. Dado et dirigido ao novo monarcha da lusitania, aos briosos fidalgos et leays deste reyno, aos nobres vassalos seus et ao fidelissimo povo de Portugal. Repartido em quatro discursos breves et ultimamente em hum epilogo succinto de todo tratado historico. Offerecido ao mesmo monarcha excelso Dom João IIII Rey do nome dado pelo ceo a esta monatchia[?] lusitana. Composto pelo licenciado Manuel Gomes Galhano Louroza Medico et Mathematico natural da villa de Almada. Almada: s. n. Cod. 517.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Documentos varios para todos, e segundo prognostico: Tirados da Astrologia, Dignos de se observarem em todas as Luas dos doze mezes do anno de 1645… Lisboa: Manuel da Silva, s. d., 1644?.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e Lunario do Anno de 1646: Com todos os aspectos assi do Sol com a Lua, como dos mais Planetas: Vão juntamente 7 notabilidades deste mesmo Anno de 46 dignas de ponderação: Calculado ao meridiano de Lisboa… Lisboa: Vicente de Lemos, s. d., 1645?.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1644: com todos os aspectos da Lua com o Sol, & dos mais Planetas com a mesma Lua: leva mais seis notabilidades dignas de ponderar neste mesmo anno de 644.: calculado ao Meridiano de Lisboa…: offerecido, não a quem o ler de emprestimo, mas a quem o comprar por seu dinheiro.Lisboa: Antonio Alvarez Impressor del Rey N. Senhor, 1643. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognosto, e Lunario do anno de 1647: com os aspectos mais principaes de todos os 7. Planetas: vam tambem 4. notabilidades do mesmo anno, que são dignas de notar: calculado ao Meridiano de Lisboa… dedicado aos Medicos Astrologos deste Reyno. Lisboa: Antonio Alvarez Impr. DelRey N. S., 1647. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e Lunario do Anno de 1648: Com todos os aspectos mais notaveis de todos os 7 Planetas: Vam tambem 6 notabilidades do mesmo Anno de 48: Calculado ao meridiano da Cidade de Lisboa…Lisboa: Antonio Alvarez, 1647. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e Lunario do Anno de 1649: Com os mais principaes aspectos dos Planetas: Vam tambem 7 notabilidades do mesmo Anno de 49: Calculado ao meridiano da Cidade de Lisboa… Lisboa: Antonio Alvarez Impr. DelRey N. S., 1648.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1650: com as conjunçoens, quadrados, & opposiçoens de todos os 7. Planetas: vam tambem 5. notabilidades do mesmo anno de 50: calculado ao Meridiano da Cidade de Lisboa…Lisboa: Antonio Alvarez Impr. Del Rey N. S., 1649. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1651: com os aspectos dos Planetas mais notaveis, vam tambem 2. notabilidades do mesmo anno de 51.: calculado ao Meridiano da Metropoli deste Reyno… Lisboa: Antonio Alvarez Impr. Del Rey N. S., 1650. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1652: com as suas notabilidades dignas de ponderação: estas seram 4. abaixo referidas: calculado ao Meridiano de Lisboa, cabeça da Lusitania… Lisboa: Antonio Alvarez, 1651.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1653: com 6. notabilidades dignas de consideração: calculado ao Meridiano de Lisboa, cabeça da Lusitania…Lisboa: Antonio Alvarez Impressor Del Rey N. S., 1652. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1654: com 3. notabilidades dignas de consideração: calculado ao Meridiano de Lisboa, cabeça da Lusitania… Lisboa: Antonio Alvarez Impressor Del Rey N. S., 1653.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1656: calculado ao Meridiano da Cidade de Lisboa… desempenho do anno passado de 1655. que tambem servirà de prologo ao leitor deste presente de 1656. Lisboa: João Alvarez de Leão, Impressor de livros, 1655. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Pronostico e Lunario do anno de 1658: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: João Alvarez de Leão, 1657. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1660: calculado ao Meridiano de Lisboa… vay acrecentado com algumas annotações, & notabilidades raras de cousas preteritas, & futuras, tudo digno de ponderação, que nota cautellas & advertencias. Lisboa: Officina d’Antonio Craesbeeck, 1659. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhan. Prognostico e lunario do anno de 1662… Lisboa: Antonio Craesbeeck, 1661. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1663: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: Domingos Carneiro?], 1662. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1665: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: Domingos Carneiro?], 1664. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1666: calculado, ao Meridiano da Cidade de Lisboa… vai acrecentado com huma advertencia breve, ou annotação succinta sobre a noticia do Cometa passado, que todos vimos neste anno de 1665. Lisboa: Domingos Carneyro, 1665. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1667: calculado ao Meridiano da Cidade & Corte de Lisboa… Lisboa: Joam Pereira Mercador de Livros, 1666. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano Lourosa. Polymathia exemplar: doctrina de discursos varios: offerecido ao Conde de Castel-Melhor: Cometographia Meteorologica do prodigioso, e duturno Cometa, que appareceo em Novembro do anno de 1664, occupação curiosa do Licenciado Manoel Gomez Galhano Lourosa, Medico Lusitano. Lisboa: Officina de Antonio Craesbeeck de Mello Impressor de S. Alteza, 1666. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Discurso Medico, appendis de contagios ao tratado do Cometa. Lisboa: Officina de António de Craesbeeck de Mello Impressor de S. Alteza, 1666. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario de 1668: calculado ao Meridiano da Cidade de Lisboa… Lisboa: Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, Impressor del Rey N. Senhor, & de Sua Alteza, 1667.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e Lunario do anno de 1669: calculado ao Meridiano de Lisboa…: prognostico de Pazes, & de aplausos Lusitanos. Lisboa: Impressão de Antonio Craesbeeck de Mello, Impressor de Sua Magestade, & Alteza, 1668.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico & Lunario do anno de 1673: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: Officina de Francisco Villela, 1672.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1674: com todos os aspectos da Lua com o Sol, & mudanças do tempo: calculado ao Meridiano da Cidade de Lisboa… Lisboa: Officina de Francisco Villela, 1673.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico & lunario do anno de 1675: com as particularidades mais necessarias das mudanças dos tempos dos 12, mezes do anno: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: Officina de Francisco Villela, 1674. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e lunario do anno de 1669… Lisboa: Impressão de Antonio Craesbeeck de Mello, 1681?. 

Bibliografia relevante sobre o biografado

Camenietzki, Carlos Ziller. “O Astrônomo e a Restauração. Manuel Gomes Galhano Lourosa e sua intervenção na política de Portugal Restaurado.” In History of Astronomy in Portugal, Proceedings of the International Conference History of Astronomy in Portugal: Institutions, Theories, Practices, Lisboa, 24-26 September, 2009, ed. Luís Saraiva, vol. 1, 183-202. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Astronomia, 2014. 

Camenietzki, Carlos Ziller e Luís Miguel Carolino, “Astrologers at War: Manuel Gomes Galhano Lourosa and the Political Restoration of Portugal, 1640-1668.” Culture and Cosmos 13 (2009): 63-85.

Mota, Carlos Henrique Vólaro Caminha. “Sinais de soberania. Leitura dos céus e ação política na guerra da Restauração portuguesa (1640-1668)”. Dissertaçãao de mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010 

Machado, Diogo Barbosa. “Antonio Pimenta.” In Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e Cronologica…, tomo 1, 353-353. Lisboa: Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1741.

Machado, Diogo Barbosa., “Manoel Gomes Galhano de Lourosa.” In Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e Cronologica…, tomo 3, 278 Lisboa: Officina de Ignacio Rodrigues, 1752.

Melo, D. Francisco Manuel de. “Centuria Quarta: Carta I. Ao Doutor Manuel Temudo da Fonseca Vigairo Geral do Arcebispado de Lisboa. Acha-se impressa em a terceira parte das suas Decisões Eclesiasticas. Estampadas em Lixboa ano de 1650.” In Primeira Parte das Cartas Familiares de D. Francisco Manuel escritas a varias pessoas sobre assuntos diversos…, ed. António Luís de Azevedo, 492. Roma: fficina de Filipe Maria Mancini, 1664. 

Silva, Inocêncio Francisco da. “Manuel Gomes Galhano Lourosa.” In Diccionario Bibliographico Portuguez, tomo 5, 444. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860.

Carolino, Luís Miguel Carolino. A Escrita Celeste. Almanaques astrológicos em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Access, 2002. 

Carolino, Luís Miguel Carolino. Ciência, astrologia e sociedade. A teoria da influência celeste em Portugal (1593-1755). Porto: Imprensa Portuguesa, 2003.

Carolino, Luís Miguel. “Tokens of the future: comets, astrology and politics in early modern Portugal.” Cronos 9 (2006): 33-58. 

“Manuel Gomes Galhano de Lourosa (16–).” In Obras de Luiz de Camões Precedidas de um Ensaio Biographico no qual se relatam alguns factos não conhecidos da sua vida Augmentadas com algumas composições ineditas do poeta pelo Visconde de Juromenha, vol. 1, 347. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860. 

Casmach, Francisco Guilherme (Kasmach, Casmak)

ca.1570 — ca.1650

Palavras-chaves: medicina, astrologia, Restauração, almanaques.

DOI: https://doi.org/10.58277/UPQL3741

Astrólogo, médico e cirurgião licenciado pela Universidade de Salamanca. Filho de Nicolao Guilherme e de Catherina Manrique Casmak. Trabalhou para a corte portuguesa durante os reinados de D. Filipe II (1598–1621), D. Filipe III (1621–1640) e D. João IV (1640–1656). Aplicou os seus conhecimentos astrológicos tanto na sua prática médica como na elaboração de almanaques, afirmando-se desta forma como homem de ciência, tanto na corte, como perante um público mais vasto.

A sua primeira obra conhecida é relatório um médico intitulado Relação chirurgica de hum caso grave, impresso em 1623. Casmach apresenta-se já como intitula Chyrurgião del Rey nosso Senhor, & do seu Hospital Real em que se cura a Infantaria Espanhola. A obra descreve um grave acidente e a respectiva cura: “Tristam da Cunha de Mello, & Ataide, fidalgo muy conhecido neste Reyno (pella ilustre ascendência de seus progenitores) sobindo em hua mula, Domingo as cinco horas da tarde a vinte hu de Iunho, no anno de 1620. se lhe impinou, & querendo elle saltar della, por se liurar do perigo em que se via, cahio em terra, leuando-se diante a mao esquerda, paraque sustentandose nella, liurasse a cabeça & corpo. E soccedeo por no braço tanta força, que deslocãdose o osso pelo sangradouro, sahio fora, fazendo hua ferida transversal pella parte de dentro, que rompeo, & dilacerou veas, artérias, neruos, músculos, tendães, & ligamentos.” Segue-se uma detalhada e cruenta narração dos tratamentos a que o paciente foi sujeito, até à cura, finalmente alcançada a 20 de novembro de 1620.

Da sua obra sobrevivem também dois almanaques: Almanach Prototypo e exemplar de pronosticos, com previsões para o ano de 1645, dedicado à rainha D. Leonor de Gusmão, e Brachyologia astrológica e apocatastasis, para o ano de 1646, dedicado à “muito insigne, antigua, & ilustre nobreza lusitana”. Uma leitura dos prefácios destas publicações sugere que Casmach teria escrito outras obras, entre elas um estudo da conjunção máxima de Júpiter e Saturno, oferecido a D. João IV.

Estes almanaques consistiam na previsão dos principais eventos de cada ano, sendo estes deduzidos a partir do horóscopo do ingresso do Sol em Carneiro (ingresso Venal), que ocorre em Março. Estas publicações, bastante elaboradas, integram referências de literatura grega, latina e portuguesa (incluindo Camões), citações bíblicas, alusões a astrólogos reconhecidos (Ptolomeu, Marcus Manilius, Alfarganus, Alcabitius, Ali ben Ragel, Luca Gaurico, Origanus, Gerolamo Cardano, Guido Bonatti, entre outros) e a diversos astrónomos. Incluem também o desenho do horóscopo do ingresso do Sol em Carneiro para o respectivo ano—uma característica única das publicações de Casmach, omitida nas de outros autores. A presença dos horóscopos exige um processo de impressão mais complexo (e portanto mais dispendioso), sugerindo que parte dos leitores estaria familiarizada com o simbolismo astrológico. Esta escolha editorial vem confirmar a ideia de que estas publicações se dirigiam a um público culto, ajudando a explicar a disparidade de preços entre estes almanaques (quarenta reais) e o custo médio de outras publicações astrológicas coevas (quatro reais).

Casmach teve participação activa na política pós-Restauração, tendo usado os seus almanaques como veículos de propaganda da nova dinastia. Assim, a par de conteúdos relativamente inócuos de astrometeorologia (que versavam sobre eventos naturais e suas consequências na agricultura e economia), surgem várias incursões no terreno arriscado da astrologia judiciária, designadamente previsões sobre a família real. Estas eram duplamente perigosas: por um lado, versavam a instável política da época pós-Restauração, por outro, arriscavam a condenação da Igreja, por interferência com o livre arbítrio. Estes riscos, contudo, parecem não demover Casmach; a sua proximidade ao rei, associada ao seu prestígio como homem de saber, ter-lhe-ão certamente conferido alguma impunidade nesta área.

No seu Almanach Prototypo, de 1645, Casmach combina as habituais considerações meteorológicas com diversos argumentos astrológicos e numerológicos, constituindo-se como discurso patriótico e legitimador da recém-formada dinastia de Bragança. Assim, aponta a Stella Nova (a supernova de 1604) como sinal inequívoco do destino redentor de D. João IV: “apareceo esta Estrella no anno de 1604 em que nasceo nosso Serenissimo Rey, & Senhor Dom Joam o IV no signo a que esta sogeito Portugal” e acrecenta que “Deos nos manifestou nesta estrela ser este Rei o prometido, cujo Reyno se trocara muy cedo em Imperio, & Suprema Monarchia, com felicidades nunca vistas, nem ouvidas”.

Para além de legitimar a monarquia portuguesa, o almanaque pretendia ainda corrigir erros de cálculo de outros autores, mostrando assim aos estrangeiros “que ainda há em Portugal quem cultive & exercite esta sciencia & que não faltam ainda os Pedros Nunes Portugueses que tanto no século passado venerarão & ainda hoje reconhecem por oráculos desta ciência”.

Casmach decidiu ir mais longe na sua Brachyologia Astrologica e Apocatastasis, de 1646, onde fez previsões directas sobre o irmão do rei, Dom Duarte de Bragança (1605–1649), que na altura se encontrava cativo em Passau. Dom Duarte saíra de Portugal em 1636 para participar na Guerra dos Trinta Anos, lutando ao lado do imperador Fernando III do Sacro Império Romano-Germânico. Contudo, o Imperador mandou prendê-lo a pedido dos espanhóis em janeiro de 1641, quando lhe chegaram notícias da Restauração. É a esta situação que se refere Casmach quando expressa a esperança “de se por em liberdade o nosso sereníssimo infante, & concluir as pazes universais”. Esta esperança foi contudo gorada: as negociações falharam, tendo Dom Duarte permanecido em cativeiro, passado por diversas prisões, até à sua morte, em 1649 em Milão.

A carreira astrológica de Guilherme Casmach foi marcada por um aceso confronto com um outro astrólogo, Manuel Gomes Galhano Lourosa, também ele autor de almanaques. A disputa centrou-se na autoria de um tratado anónimo sobre uma invasão de gafanhotos que ocorreu em Lisboa em 1639. A obra colheu aprovação geral, pelo que não faltaram interessados em apresentar-se como autores. Lourosa chamou a si a autoria, no seu almanaque de 1641. Três anos mais tarde, Casmach insinuou o mesmo, no prefácio do Almanach Prototypo, ao afirmar “dado que até agora não desse ao prelo semelhantes obras, não deixei de fazer alguns tratados tocantes a esta ciência de não menos estima, que de certeza como poderão bem testemunhar os que os leram, e por meus os reconhecem, apesar de quem tão falsamente o contradiz”. Afrontado, Lourosa refirmou-se como autor no seu almanaque para o mesmo ano, acrescentando, num ataque directo a Casmach, que “chega um destes, prenhe de presunção, a apregoar ao mundo que é seu certo tratado meu que de mão anda na mão dos curiosos”. A discussão agravou-se, passando rapidamente da questão da autoria para a da competência astrológica: surgiram acusações mútuas de enganos nos cálculos, de erros crassos na determinação da posição dos astros e de má interpretação das regras astrológicas para a escolha do regente do ano (o planeta que maior peso teria na determinação dos acontecimentos). A provocações sucederam-se até ao final da década, sem que nenhuma das partes capitulasse. Longe de diminuir a reputação dos intervenientes, esta disputa acabou por beneficiar a ambos, dando-lhes grande visibilidade e apresentando-os ao grande público como homens de saber e de erudição.

Helena Avelar de Carvalho
Revista por Luís Campos Ribeiro

Obras

Casmach, Francisco Guilherme. Relação chirurgica de hum caso grave em que succedeo mortificar-se hum braço, e cortar-se com bom sucesso. Lisboa: Gerardo da Vinha, 1623.

Casmach, Francisco Guilherme. Almanach Prototypo e exemplar de pronósticos. Com particulares Ephemerides das conjunções, & aspectos dos planetas, Eclypses do Sol, & da Lua, & pronosticação de seus efeitos pera o presente anno de 1645. Calculado pela nova, & genuína theorica do motu celeste, & tesouro das observaçoens astronómicas Lansbergienses, Argolicas, & de Origano ao Meridiano desta Cidade de Lisboa. Lisboa: por Paulo Craesbeek, 1644. http://purl.pt/14186/1/index.html#/5/html

Casmach, Francisco Guilherme. Brachyologia astrologica e apocatastasis Apographica do Sol, Lua, & mais planetas, com todos seus aspectos, Eclypses, & pronosticação de seus effeitos, pera o presente anno de 646: Calculado pella nova, e genuina theorica do motu celeste, & thesouro das obseruações Astronomicas Lansbergienses, & Argolicas, Parisienses, & de Orîgano, tychomicas, & proprias pera o Meridiano desta Cidade de Lisboa. Lisboa: por Paulo Craesbeek, 1646. http://purl.pt/13996/1/index.html#/3/html

Bibliografia sobre o bibliografado

Carolino, Luís Miguel. A escrita celeste. Almanaques astrológicos em Portugal nos séculos XVII & XVIII, 42–43, 52–61.Rio de Janeiro: Access, 2002.

Carolino, Luís Miguel. Ciência, Astrologia e Sociedade. A teoria da influência celeste em Portugal (1593-1755), 207–208, 223–224.  Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian-Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2003.

Camenietzki, Carlos Ziller, and Luís Miguel Carolino. “Astrologers at War: Manuel Galhano Lourosa and the Political Restoration of Portugal, 1640-1668.” Culture and Cosmos 13 (2009): 63–85.