Erédia, Manuel Godinho de

Malaca, 1563 — Goa, ca. 1623

Palavras-chave: Manuel Godinho de Erédia, Ásia, Malaca, cartografia, geografia, botânica, XVI, XVII.

DOI: https://doi.org/10.58277/ZAGJ1026

Manuel Godinho de Erédia foi autor de uma vasta obra cartográfica e geográfica sobre o mundo oriental, a qual na época permaneceu manuscrita e apenas modernamente tem sido editada. Filho de um soldado português de ascendência aragonesa e de uma princesa originária das Celebes (Sulawesi), Erédia foi educado no colégio jesuíta de Malaca. Mais tarde, em muitos dos seus mapas e escritos utilizaria palavras e expressões malaias, para além de se referir a fontes escritas de origem malaia ou javanesa, o que leva a supor que conhecia bem a língua malaia. Com 13 anos de idade, Manuel Godinho mudou-se para Goa, a fim de continuar a sua educação formal com os padres jesuítas, estudando gramática, artes, filosofia e matemática. Distinguiu-se no estudo desta última disciplina, pois durante alguns anos exerceu funções no colégio jesuíta de Goa como mestre de matemática. Era também um artista talentoso, pois as fontes jesuítas atribuem-lhe a autoria de uma pintura religiosa remetida para a corte do Grão-Mogol em Agra. A vocação religiosa de Erédia, contudo, não se revelou sólida, pois em 1586 abandonou a Companhia de Jesus, para se dedicar a outras atividades. Contudo, não se encontra confirmação documental para a alegação do próprio Erédia de que teria passado a desempenhar funções de cosmógrafo-mor do Estado da Índia.

O vice-rei D. Duarte de Meneses, que governou o Estado da Índia entre 1584 e 1588, fez-se acompanhar por GiovanniBattista Cairato, engenheiro de origem italiana que fora encarregado por Felipe II de Espanha (e I de Portugal) de realizar um cuidadoso levantamento das fortalezas orientais dos portugueses. Cairato viajou extensamente pelo Oriente até 1596, e parece certo que Erédia o serviu como desenhador; durante estas deslocações, o cartógrafo reuniu elementos para muitos dos seus posteriores desenhos de cidades e fortalezas. A primeira obra conhecida de Erédia, a Informação da Aurea Chersoneso, ou Peninsula, e das Ilhas Auriferas, Carbunculas e Aromaticas, foi escrita após este período, entre 1598 e 1600. Tratava-se de uma descrição da Península Malaia e das principais ilhas do arquipélago indonésio, com notícias referentes à história, costumes, crenças e lendas, e com a preocupação de identificar minas de metais preciosos e fontes locais de especiarias valiosas. Desde as primeiras décadas do século XVI que nenhum outro autor tinha analisado de forma tão cuidadosa estas regiões orientais. Este primeiro escrito de Erédia, paralelamente a informações geográficas inovadoras, incluía dezenas de referências livrescas, citando numerosos autores ocidentais, clássicos e modernos, como Ptolomeu, Estrabão, Plínio, Pompónio Mela, Marco Polo ou Ludovico de Varthema. Este procedimento foi depois repetido em todos os subsequentes escritos de Erédia, que gostava de alardear erudição, a qual, contudo, nem sempre era de primeira mão. 

Entre 1600 e 1605, Erédia estanciou na Península Malaia, dedicando-se a trabalhos de engenharia militar, relacionados com as fortalezas portuguesas da região, e a atividades de prospeção mineira no sertão de Malaca. Preparou entretanto diversos planos de fortificações e detalhados mapas das regiões malaias visitadas, que conduziram a cartografia portuguesa para a representação inovadora de regiões interiores do continente asiático. Nada se consegue apurar sobre o seu paradeiro nos cinco ou seis anos seguintes, mas regressou decerto a Goa, pois muitas das suas cartas e plantas de fortalezas, cidades e regiões orientais, como o Atlas produzido em 1610 a instâncias do vice-rei Rui Lourenço de Távora, que governou o Estado da Índia entre 1609 e 1612, parecem datar deste obscuro período. Em 1611, efetuou uma viagem de prospeção mineira nas regiões setentrionais do Indostão, regressando na posse de vários mapas corográficos muito detalhados e inovadores, e de uma breve relação intitulada Discursos sobre a Província do Indostão, que descrevia esta região indiana. Como era habitual nos seus escritos, apresentava uma complexa combinação de observações em primeira mão e de informações orais, com diversas notícias recolhidas em fontes livrescas. Estas últimas incluíam não só referências ocidentais, mas também alusões a manuscritos persas. Erédia preparou também, durante esta expedição, um álbum de desenhos de árvores e plantas indianas, a Suma de Árvores e Plantas da índia Intra Ganges, dedicado a Rui Lourenço de Távora, que comprovava a sua curiosidade pela história natural e os seus dotes artísticos. Aparentemente satisfeito com este metódico trabalho de exploração, o novo vice-rei, D. Jerónimo de Azevedo, que governou entre 1612 e 1617, enviou-o em mais uma empresa de prospeção mineira na região de Goa. Erédia deve ter desempenhado este encargo nos anos de 1612 e 1613, descobrindo importantes jazidas de cobre e de ferro, e produzindo, como de costume, diversos mapas e cartas.

A partir de 1613, e até ao seu desaparecimento uma década mais tarde, Manuel Godinho viveu em Goa, a partir de onde dirigiu diversas cartas para Portugal, algumas das quais continham propostas de realização de viagens de descobrimento em partes inexploradas dos mares asiáticos. Mas nenhum desses projetos mereceu apoio régio. Dedicou-se, entretanto, a diversos afazeres. Trabalhou como pintor, sendo nomeadamente responsável pela elaboração de numerosos retratos de governadores e vice-reis portugueses, e também como cartógrafo, desenhando mapas e plantas de cidades e fortalezas, que andam reunidos em diversos atlas manuscritos. Erédia atravessou então o seu mais prolífico período de criação literária, pois no curto espaço de quatro anos produziu três tratados históricos e geográficos. Em primeiro lugar, em finais de 1613 concluiu a Declaraçam de Malaca e India Meridional com o Cathay, o seu mais ambicioso projeto textual, dedicado a Felipe III de Espanha (e II de Portugal), composto por três partes, e que desenvolvia a anterior Informação. Primeiro, uma detalhada corografia de Malaca e do seu sertão, ilustrada por mapas e desenhos diversos (pessoas, plantas, animais e embarcações), que abordava temas tão variados como a topografia urbana e rural, a história política local, as práticas comerciais, as produções naturais, as crenças religiosas ou o folclore tradicional. Depois, uma compilação de notícias sobre terras desconhecidas, alegadamente ricas em minérios auríferos, que se poderiam encontrar nos mares para sul de Timor, também ilustrada por diversos mapas especulativos. A partir desta secção da obra tem-se desenvolvido um debate, ainda não concluído, sobre o possível descobrimento da Austrália pelos portugueses. Enfim, em terceiro lugar, a Declaraçam continha uma geografia geral do continente asiático, desde a parte setentrional do Indostão até às regiões mais orientais da China, que procurava conciliar o saber geográfico ocidental com informações orais recolhidas na Índia e com cartografia produzida na Europa, recorrendo talvez a algumas fontes asiáticas. Esta secção era ilustrada por mapas parciais e globais da Ásia, que, como geralmente sucedia em toda a cartografia erédiana, tentavam reconciliar a diversidade de fontes utilizadas pelo cosmógrafo, que incluíam nomeadamente mapas analisados em edições bíblicas e edições do cartógrafo flamengo Abraham Ortelius. Pesem embora os muitos equívocos cometidos relativamente à real configuração das regiões tratadas, atribuíveis às limitadas possibilidades de exploração então disponíveis, a Declaraçamconstituiu um feito notável do ponto de vista do conhecimento europeu da geografia asiática, pois abordava áreas e temáticas pouco estudadas anteriormente. Tal como o seu primeiro tratado, também este estava recheado de referências eruditas, numa clara exibição de conhecimentos livrescos. Mas desta vez Erédia atribuía uma maior importância aos autores seus contemporâneos, citando nomeadamente João de Barros, Brás de Albuquerque, Benito Arias Montano, Diogo do Couto ou João de Lucena, entre outros. 

Neste período, em finais de 1615, Erédia redigiu também a Historia de serviços com martirio de Luis Monteiro Coutinho, relato apologético das façanhas militares de um capitão português capturado e executado em 1588 por ordem do soberano do Achém, sultanato do norte da ilha de Samatra, que lhe fora encomendado por familiares. Manuel Godinho tentou situar a carreira de Luís Monteiro no contexto mais alargado da presença portuguesa na Ásia, mostrando de passagem que estava bastante bem informado sobre as passadas atividades militares do Estado da Índia. Tal como outras das suas produções, também esta obra (que se mantém inédita, num manuscrito autógrafo da Biblioteca Nacional de Portugal) era acompanhada de detalhadas ilustrações representando cenas bélicas. De finais de 1616 data o Tratado Ophirico, última das produções erédianas, também dedicada ao monarca Felipe III. As partes principais desta obra constituíam um ambicioso dossiê de exegese bíblica. A partir de uma edição latina da Bíblia, talvez a Poliglota de Arias Montano, e com o apoio de meia-dúzia de comentadores, Erédia lançou-se na resolução de um problema que durante séculos tinha estado na primeira linha de preocupações de estudiosos da tradição cristã. Procurando conciliar a tradicional geografia bíblica com a sua visão da configuração dos espaços asiáticos, obtida em tratados livrescos, através de informações orais, e também em repetidas viagens terrestres, o cosmógrafo luso-malaio procurava determinar a exata localização da região de Ofir, de onde vinha o ouro de Salomão. 

Erédia, nos seus últimos anos, continuou a produzir materiais artísticos e cartográficos. O cronista Diogo do Couto, que também residia em Goa, mencionava numa carta enviada para Portugal em 1616 o ‘pintor Godinho’, que então trabalhava sob a sua supervisão na restauração das pinturas das armadas da carreira da Índia. Manuel Godinho parece ter falecido por volta de 1623. Nenhuma das suas inúmeras produções textuais ou cartográficas mereceu durante a sua vida as honras da impressão; e nenhum dos seus diversos projetos de descobrimento foi patrocinado pelas autoridades portuguesas. As suas obras rapidamente caíram no esquecimento, apenas sendo regularmente convocadas, em tempos mais recentes, no contexto da discussão sobre o descobrimento da Austrália pelas potências marítimas da Europa. Os variados e extensos escritos de Erédia foram produto do específico mundo cultural da Índia portuguesa, onde os saberes, os valores e as tradições da Europa e da Ásia se interligavam, formando uma única e complexa simbiose cultural. Manuel Godinho de Erédia produziu nas suas muitas obras uma síntese por demais curiosa, usando uma combinação complexa de experiência pessoal, de testemunhos vivenciais, de rumores dispersos, de tradições malaias, e de fontes cartográficas e literárias. As suas origens miscigenadas permitiram-lhe acesso franco às mais atualizadas fontes da educação humanista europeia, aos mais recentes descobrimentos portugueses no campo da geografia asiática, e a um vasto corpo de sabedoria asiática, consignada em manuscritos e em tradições orais. Estas contribuições múltiplas colocavam os seus tratados geográficos e as suas produções cartográficas num lugar de fronteira e de cruzamento, onde se ensaiava uma impossível ponte entre três heranças culturais muito distintas, a clássica europeia, a portuguesa e a malaia. Esta natureza simbiótica explica o singular destino dos escritos de Erédia, condenados durante séculos ao esquecimento. Mas os escritos históricos e geográficos de Erédia, de uma forma muito própria, eram bastante inovadores e estavam na linha da frente das preocupações de outros cosmógrafos contemporâneos. O infortúnio editorial de Erédia explica-se sobretudo pelos conturbados tempos em que lhe foi dado viver, numa época que assistiu à expansão holandesa e inglesa na Ásia marítima e ao sistemático assalto às posições ibéricas desencadeado pelas potências do Norte da Europa. Nessa conjuntura, as autoridades ibéricas não estimularam particularmente a difusão e a impressão de materiais de natureza geográfica sobre as Índias Orientais. E muitos dos escritos de Manuel Godinho de Erédia eram dedicados a tópicos demasiado sensíveis, como a localização de fontes produtoras de metais preciosos e o descobrimento de desconhecidas ilhas auríferas. O Estado da Índia, certamente, não gostaria de ver cair este tipo de informações estratégicas em mãos erradas.

Rui Manuel Loureiro
ISMAT e CHAM/NOVA

Obras

Erédia, Manuel Godinho de. Historia de serviços com martirio de Luis Monteiro Coutinho (Goa, 1615), ms., Biblioteca Nacional de Portugal, FG 414.
Erédia, Manuel Godinho de. Malaca, l’Inde Orientale et le Cathay, ed. Léon Janssen. Bruxelas: E. Lambert-Stevelinck, 1881.

Erédia, Manuel Godinho de. Eredia’s Descrition of Malaca, Meridional India, and Cathay, ed. J.V. Mills & Cheah Boon Kheng. Kuala Lumpur: Malaysian Branch of the Royal Asiatic Society, 1997.
Erédia, Manuel Godinho de. O Lyvro da Plantaforma das Fortalezas da Índia, ed. Rui Carita Lisboa: Edições INAPA e Ministério da Defesa Nacional, 1999.

Erédia, Manuel Godinho de. Suma de Árvores e Plantas da Índia Intra Ganges, ed. John G. Everaert, J. E. Mendes Ferrão e Maria Cândida Liberato. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descorbimentos Portugueses, 2001.
Erédia, Manuel Godinho de. Informação da Aurea Quersoneso, ed. Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau, 2008.

Erédia, Manuel Godinho de. Tratado Ophirico, 1616, ed. Juan Gil e Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau, 2016.

Bibliografia sobre o biografado

Flores, Jorge. “Between Madrid and Ophir: Erédia, a Deceitful Discoverer?” In Dissimulation and Deceit in Early Modern Europe, ed. Miriam Eliav-Feldon & Tamar Herzig, 184–210. London: Palgrave Macmillan, 2015.
Loureiro, Rui Manuel. “Manuel Godinho de Erédia e os seus tratados geográficos.” Oriente 9 (2004): 94–107.

Loureiro, Rui Manuel. “Manuel Godinho de Erédia revisited.” In Indo-portuguese History: Global Trends, ed. Fátima da Silva Gracias, Celsa Pinto e Charles Borges, 411–439. Goa: s.n., 2005.
Richardson, W.A.R. “A Cartographical Nightmare: Manuel Godinho de Erédia’s Search for India Meridional.” In The Portuguese and the Pacific, ed. Francis A. Dutra e João Camilo dos Santos, 314–348. Santa Barbara, Califórnia: Center for Portuguese Studies-University of California, 1995.

Subrahmanyam, Sanjay. “Pulverized in Aceh: On Luís Monteiro Coutinho and his ‘Martyrdom.’” Archipel 78 (2009): 19–60.

Pires, Tomé

Lisboa, ca. 1470 — Cantão, ca. 1527

Palavras-chave: Tomé Pires, Suma Oriental, Ásia, século XVI.

DOI: https://doi.org/10.58277/ZMMP4461

Tomé Pires, autor da Suma Oriental, a primeira grande geografia europeia moderna dos espaços asiáticos, desempenhou funções de boticário de vários membros da Casa Real portuguesa na passagem dos séculos XV para XVI. Nada se consegue apurar sobre um eventual percurso académico, pelo que terá realizado a sua aprendizagem de forma empírica com o pai, também ele boticário de príncipes. Em 1511 Pires partiu para a Índia como feitor das drogarias, com o encargo de supervisionar todo o processo de escolha, aquisição e acondicionamento das drogas asiáticas enviadas do Oriente para Portugal, de modo a evitar o embarque de mercadorias de fraca qualidade. Após alguns meses de residência em Cananor, Pires foi despachado para Malaca por Afonso de Albuquerque, que então exercia funções de governador do nascente Estado da Índia, com o encargo de tirar inquirição sobre irregularidades que ali estavam a ser cometidas pelos funcionários portugueses. Em Junho de 1512 Tomé Pires já se encontrava naquela cidade portuária, onde residiria nos anos seguintes, desempenhando funções de escrivão da feitoria e vedor das drogarias. Numa carta ao irmão João Fernandes, em finais desse ano, dizia-se extremamente rico, lamentando embora a aspereza do clima e a dureza das condições de vida. Tanto quanto se consegue apurar, a estada em Malaca foi repetidas vezes interrompida por participações em viagens mercantis a Samatra, Java, e talvez ao Pegu. Pires regressou à Índia em Janeiro de 1515, com intenção de voltar logo de seguida a Portugal, na posse da considerável fortuna que acumulara. Em cartas dirigidas à família falava com saudade do enorme ‘prazer que era estar cada um onde nasceu e [onde] falam todos português’. Mas os eventuais planos de regresso à Europa foram rapidamente postos de parte, pois em Setembro de 1515 chegava à Índia o novo governador Lopo Soares de Albergaria, que no seu regimento trazia o encargo de despachar uma armada sob o comando de Fernão Peres de Andrade, para assentar relações de amizade com a China. O cargo de embaixador veio a ser atribuído a Tomé Pires graças a um curioso conjunto de circunstâncias. Era pessoa de muito crédito, que, para além da dignidade que lhe era conferida pela idade, juntara considerável fortuna durante escassos anos de residência no Oriente. Ao mesmo tempo, era homem de baixa condição, facilmente sacrificável caso o relacionamento com os chineses não decorresse da melhor forma. Depois, em virtude das suas inegáveis habilitações profissionais, o boticário seria o homem mais apropriado para avaliar as possibilidades mercantis oferecidas pela China. Por último, Tomé Pires era amigo pessoal de Lopo Soares de Albergaria, com quem convivera durante os anos de juventude. Em finais de Abril de 1516, Fernão Peres de Andrade largava do litoral da Índia com rumo a Malaca, levando a bordo o boticário e feitor Tomé Pires, temporariamente promovido à dignidade de embaixador de el-Rei Dom Manuel I (r. 1495–1521). A expedição comandada por Fernão Peres de Andrade teve um estrondoso sucesso, pois aquele capitão português conseguiu levar os seus navios até ao porto de Cantão durante o ano de 1517, ultrapassando os sucessivos obstáculos que lhe foram colocados pelas autoridades costeiras chinesas. Durante longos meses, vários navios portugueses estiveram ancorados diante da grande metrópole da província de Guangdong, efetuando proveitosos negócios e colhendo amplas notícias sobre a realidade chinesa, por ocasião de sucessivas visitas à cidade e de múltiplos contactos com a população local e com os mandarins cantonenses. Fernão Peres regressaria a Malaca em 1518, com as encorajadoras notícias de que a terra ficava assentada, como então se dizia, e que Tomé Pires e a sua comitiva haviam sido desembarcados em Cantão, onde ficavam a aguardar despacho imperial para rumarem a Pequim. Entretanto, a embaixada portuguesa não chegou a atingir os seus objetivos, em virtude de uma complexa sucessão de

eventos. Inicialmente, tudo parecera correr da melhor forma, pois os membros da comitiva haviam sido devidamente alojados em Cantão pelas autoridades provinciais chinesas. Mas um documento chinês da época sublinha que os fulangji—nome pelo qual os portugueses passaram desde então a ser designados—não figuravam nas listas oficiais de estados tributários do Império do Meio, circunstância que motivou uma demorada troca de correspondência entre os mandarins da província de Guangdong e a burocracia de Pequim. Tomé Pires e os seus companheiros de embaixada residiriam em Cantão até Janeiro de 1520, dedicando-se a frutuosas transações mercantis e contactando com os grupos de portugueses que, a partir de Malaca, afluíam ao litoral chinês em busca de negócios proveitosos, trocando mercadorias oriundas das regiões tropicais, como especiarias e incensos, por produtos chineses manufaturados, como sedas e porcelanas.

A autorização de entrada em território chinês chegou finalmente a Cantão em 1520, e Tomé Pires e os seus companheiros foram conduzidos a Pequim, seguindo ao longo de vários meses o trajeto normal das embaixadas estrangeiras. Em Nanquim, os portugueses tiveram oportunidade de efetuar uma demorada paragem, onde, de acordo com algumas fontes portuguesas, o embaixador se encontrou repetidamente com o imperador Zhengde (r. 1505– 1521), que então fazia um périplo pelas províncias meridionais do seu vasto império. Estas informações algo invulgares são confirmadas por documentação chinesa e coreana da época, que refere que o imperador chinês teria convivido com alguns dos membros da embaixada portuguesa, interessando-se pela sua língua e pelos seus costumes. Porém, após a chegada da comitiva portuguesa à capital imperial chinesa, os acontecimentos precipitaram-se, culminando no total fracasso da embaixada. Em primeiro lugar, começaram a chegar a Pequim relatórios oriundos do litoral do Guangdong a respeito das expedições lusitanas que agora ali aportavam anualmente. Os portugueses desobedeciam amiúde às diretivas das autoridades provinciais, quebrando algumas das regras protocolares que regiam o comportamento dos estrangeiros. De acordo com o testemunho mais tardio do dominicano Gaspar da Cruz, no seu Tratado das cousas da China (Évora, 1570), os ‘Fancui, que quer dizer homens do diabo’, como também eram apelidados os portugueses, adotavam uma postura turbulenta e irreverente, perfeitamente inaceitável para os oficiais em serviço na região de Cantão. Depois, estas notícias, que indispuseram desde logo os oficiais pequinenses contra a embaixada portuguesa, foram agravadas pela chegada a Pequim de um emissário do antigo sultão de Malaca, que apresentou queixas contra a violenta atuação dos portugueses, que em 1511 haviam ocupado aquele centro portuário. Deve referir-se que o sultanato de Malaca estivera ligado à China por laços formais de dependência até à data da ocupação portuguesa. Em terceiro lugar, a carta de el-rei Dom Manuel ao soberano chinês, de que Tomé Pires era portador, causou enorme perplexidade em Pequim, pois verificou-se que o seu conteúdo não correspondia à respetiva tradução, que fora preparada em Cantão por intérpretes locais. Enquanto a versão chinesa respeitava o cerimonial usual em tais documentos, a missiva original assumia um tom igualitário perfeitamente intolerável do ponto de vista chinês num documento originário de um pretenso estado tributário. Finalmente, para complicar ainda mais a situação da comitiva lusitana, o imperador Zhengde, que estava de regresso à sua capital setentrional, contraiu uma grave doença e veio a falecer em princípios de 1521, ainda antes de ter recebido Tomé Pires. O embaixador e os seus acompanhantes, na sequência de todos estes eventos, foram encaminhados para Cantão, onde foram colocados debaixo de prisão. E as autoridades imperiais, na sequência de um curto período de confrontos entre as armadas chinesas e as embarcações mercantis oriundas de Malaca que continuavam a afluir ao litoral de Cantão, interromperam formalmente as relações com os portugueses, proibindo os fulangji de comerciarem em território chinês. Em anos seguintes, transferidos de cárcere em cárcere, os membros da embaixada acabariam por

sucumbir um a um, sem voltarem a abandonar a China. O próprio Tomé Pires, de acordo com o testemunho de um dos capitães de Malaca, teria morrido em 1527 ou 1528, no seu cativeiro cantonense. Entretanto, não pode deixar de ser tomado em conta o testemunho bastante mais tardio de Fernão Mendes Pinto, que por volta de 1580 escrevia na sua Peregrinaçam (Lisboa, 1614) que anos antes encontrara no interior da China uma chinesa de nome Inês de Leiria, alegadamente filha do antigo embaixador Tomé Pires.

Quando em 1515 regressou à Índia, Tomé Pires tinha trazido consigo um extenso manuscrito composto durante a permanência em Malaca, a que dera o título de Suma Oriental e no qual descrevia com enorme riqueza de pormenores um significativo número de regiões e de povos da Ásia marítima. Dotado de um singular poder de observação, de uma curiosidade insaciável e de evidentes capacidades inquiridoras, o boticário português conseguira reunir por escrito, em escassos três anos de vivência asiática, um prodigioso acervo de dados sobre inúmeras realidades orientais até então perfeitamente desconhecidas dos europeus. É difícil concluir se a ideia de compor um tratado de geografia oriental partiu do próprio Tomé Pires ou se resultou de uma encomenda expressa formulada por Afonso de Albuquerque. O governador estava então empenhado na consolidação da presença portuguesa na Ásia, através da construção de uma vasta rede de feitorias e fortalezas, complementadas por uma política de aproximação a determinadas potências asiáticas. E este processo de contornos vagamente imperiais não podia dispensar uma ampla e rigorosa recolha de notícias sobre as áreas que direta ou indiretamente interessavam aos portugueses. Era esse precisamente o objetivo da Suma Oriental: apresentar um alargado e circunstanciado panorama de todas as regiões da Ásia marítima que poderiam interessar a Portugal, em termos de uma intervenção lucrativa no comércio asiático. O comércio e a mercadoria, aliás, são os fundamentos primeiros do tratado de Tomé Pires, que escrevia que o ‘trato de mercadoria é tão necessário que sem ele não se susteria o mundo’ e que ‘este é o que enobrece os reinos, que faz grandes as gentes e nobilita as cidades, e o que faz a guerra e a paz’. Este programa, enunciado desde as primeiras linhas da obra, é efetivamente cumprido, pois Tomé Pires, de forma sistemática, e começando no Mar Vermelho, vai descrevendo sucessivamente todo a Ásia marítima, destacando em cada região os principais portos, as mercadorias que ali eram intercambiadas, os preços cobrados, as moedas, pesos e medidas utilizadas, os direitos alfandegários vigentes, os câmbios praticados, as rotas seguidas e os calendários de viagem praticados. Paralelamente, a Suma Oriental era enriquecida com outros dados direta ou indiretamente relacionadas com as realidades mercantis. Assim, a propósito de numerosas regiões abordadas, o boticário fornecia informações complementares sobre sistemas políticos, crenças da população, potencialidades bélicas, embarcações disponíveis localmente, existência e estatuto de comunidades estrangeiras, bem como determinadas particularidades linguísticas.

A organização da obra, tal como aparece no único manuscrito completo que hoje se conserva, pode ser esquematizada da seguinte forma: Livro primeiro: do Egipto a Cambaia, incluindo secções sobre as Arábias, o Egipto, a Pérsia, Cambaia, o Canará, Narsinga e o Malabar. Livro segundo: de Cambaia a Goa, incluindo secções sobre o Decão e Goa. Livro terceiro: de Bengala à Indochina, incluindo secções sobre Bengala, Arracão, o Pegu, o Sião, o Bramá, o Camboja, o Champá e a Cochinchina. Livro quarto: da China ao Bornéu e a Lução, incluindo secções sobre a China, Java, as ilhas da Sunda Menor, as ilhas de Maluco, o Ceilão, os Léquios, o Japão, o Bornéu, os Luções e Samatra. Livro quinto: com uma única secção dedicada a Malaca. Contudo, em termos quantitativos, o núcleo informativo essencial da Suma Oriental era dedicado ao Sudeste Asiático, que abarcava sessenta por cento do texto total. Esta excecional importância atribuída por Tomé Pires àquela parte da Ásia, e sobretudo

à Insulíndia, tem várias explicações. Por um lado, os portugueses tinham vindo para o Oriente sobretudo por razões comerciais, em demanda das mais raras e valiosas drogas e especiarias. Ora muitos dos produtos naturais que estavam na origem dessas cobiçadas mercadorias eram precisamente oriundos do Sudeste Asiático e mormente do grande arquipélago indonésio, não se encontrando alguns deles (como o craveiro ou a moscadeira, por exemplo) em nenhuma outra parte do mundo. Por outro lado, a parte insular da Ásia que se estendia de Samatra para leste, compreendendo mais de três mil ilhas, era, para os europeus da época, uma das mais misteriosas e menos bem conhecidas. Enfim, por outro lado ainda, e tal como já foi referido, Tomé Pires preparou o seu tratado geográfico em Malaca, que era então o ponto de confluência de vastíssimas redes mercantis que cruzavam toda a Insulíndia. A obra de Tomé Pires constitui uma fonte histórica de extraordinário valor a múltiplos níveis. Em primeiro lugar, como obra revolucionária no contexto da história da geografia europeia, pois impôs um momento de total rutura no processo de conhecimento europeu de muitas regiões da Ásia e mormente das suas partes mais orientais. Depois, como documento insubstituível na construção da história asiática, já que apresenta um circunstanciado panorama político e económico de vastas regiões orientais. Em terceiro lugar, a Suma Oriental vale como vastíssimo repositório de informações etnográficas, muitas delas inéditas e obtidas em primeira mão, sobre muitos povos orientais. Finalmente, como testemunho de um momento privilegiado na história das relações da Europa com a Ásia, pois a obra do boticário português apresentava o último grande retrato do Ásia marítima antes da chegada em força dos europeus.

Tomé Pires, antes de partir na expedição de Fernão Peres de Andrade rumo ao litoral chinês, deve ter enviado o original da Suma Oriental para Portugal, nas naus da carreira da Índia, já que a obra estava explicitamente dedicada ao monarca lusitano. O manuscrito autógrafo terá efetivamente chegado a Lisboa em 1515 ou 1516, mas desapareceu nos arquivos reais, pois não se lhe consegue descortinar o rasto na documentação dos anos seguintes. Embora contendo preciosíssimas notícias de caráter geográfico e etnográfico sobre a Ásia, a Suma oriental conheceu uma reduzida difusão na época da sua redação. Com efeito, parece ter circulado apenas nos círculos luso-indianos ligados a Afonso de Albuquerque e também, naturalmente, nos meios ultramarinos da corte régia portuguesa. Atualmente conhecem-se apenas duas cópias manuscritas da obra, uma completa, conservada em Paris, e outra incompleta, guardada em Lisboa. O manuscrito parisino, intitulado “Somma oriemtall que trata do maar Roxo athee os chijs compilada por thome pirez”, terá sido copiado por volta de 1516, talvez para Afonso de Albuquerque, a partir da versão original redigida pelo próprio Tomé Pires. Por caminhos que se desconhecem, acabou por ser depositado na Bibliothèque de l’Assemblée Nationale (Ms. 1248), em Paris, onde hoje se encontra. Sabendo-se que esta biblioteca francesa foi constituída na sequência da revolução de 1789 com fundos bibliográficos confiscados a aristocratas gauleses, será difícil determinar a exata origem do códice português, que continha igualmente o chamado “Livro de Francisco Rodrigues”. O manuscrito lisboeta, que tem por título “Soma horiemtall que trata do mar Roxo ate os chims”, não contém nome de autor e terá sido copiado em Lisboa por volta de 1526, conservando-se hoje na Biblioteca Nacional de Portugal (Cód. 299/2). Mas contém apenas uma versão parcial da Suma Oriental, com cerca de um terço da obra original. Faltam-lhe as secções dedicadas a Malaca e à Insulíndia, precisamente aquelas que incorporavam as notícias mais relevantes para leitores europeus. Um emissário do erudito veneziano Giovanni Battista Ramusio, que visitou Lisboa entre 1525 e 1528, conseguiu adquirir uma cópia da Suma Oriental muito semelhante à do manuscrito lisbonense, mas o exemplar obtido não tinha nome de autor, certamente por lhe faltarem as páginas da dedicatória, único local onde figurava a referência a Tomé Pires. Ramusio veio a publicar uma versão italiana, anónima, do

texto obtido em Lisboa, no primeiro volume da sua célebre coletânea de viagens Navigationi et Viaggi, impresso em Veneza em 1550. No prefácio ao texto de Tomé Pires, o editor queixava-se das dificuldades encontradas na obtenção do manuscrito. Precisamente na altura em que o agente de Ramusio visitou Lisboa, as ilhas de Maluco estavam a ser intensamente disputadas entre as coroas de Portugal e Espanha. Por esse motivo, todas as informações relativas àquelas longínquas paragens eram tratadas em Portugal com o maior sigilo, de modo a não fornecer a eventuais antagonistas um excessivo conhecimento do terreno. Essa conjuntura explica, certamente, a impossibilidade de um estrangeiro obter em Lisboa uma cópia integral da Suma Oriental, que era então o tratado geográfico mais exaustivo sobre a Insulíndia. O manuscrito de Paris foi redescoberto em 1937 por Armando Cortesão, que dele preparou uma edição para a Hakluyt Society, The ‘Suma Oriental’ and the ‘Book’ of Francisco Rodrigues (Londres, 1944), integrando o texto original e uma tradução inglesa, além de extensa introdução e prolixas anotações. A edição portuguesa, da responsabilidade do mesmo historiador, e contendo a versão portuguesa da obra e traduções da introdução e das notas inglesas, seria publicada em Coimbra em 1978, com o título A Suma Oriental de Tomé Pires e o Livro de Francisco Rodrigues. A edição de Cortesão, louvável a todos os títulos, está hoje, passado mais de meio século, algo envelhecida, pelos critérios de transcrição utilizados, pelos numerosos lapsos cometidos, pelo facto do aparato crítico estar em numerosos pontos ultrapassado, por se terem entretanto desenvolvido exponencialmente as investigações em torno das matérias e época abordadas na Suma Oriental, e pela circunstância de ter sido respeitada a confusa organização atual do manuscrito, que não respeita a conceção original de Tomé Pires, talvez por em algum momento os fólios terem sido reorganizados por algum dos seus possuidores. Uma nova edição crítica deste manuscrito, preparada por Rui Manuel Loureiro, foi publicada recentemente em Lisboa (2017). Quanto ao manuscrito lisboeta, apesar de não incluir uma porção substancial dos materiais originalmente preparados pelo boticário português, apresenta-se, ainda assim, como um tratado bastante exaustivo sobre a geografia do litoral asiático compreendido entre o Mar Vermelho e a cidade de Cantão. Esta versão foi publicada em Macau, também por Rui Manuel Loureiro, em edição crítica prolixamente anotada: O Manuscrito de Lisboa da “Suma Oriental” de Tomé Pires (1996).

Rui Manuel Loureiro
ISMAT e CHAM/NOVA

Obras:

A Suma Oriental de Tomé Pires e o Livro de Francisco Rodrigues, ed. Armando Cortesão. Coimbra. Acta Universitatis Conimbrigensis, 1978.
Loureiro, Rui Manuel. O Manuscrito de Lisboa da “Suma Oriental” de Tomé Pires. Macau, Instituto Português do Oriente, 1996.

Pires, Tomé. Suma Oriental, ed. Rui Manuel Loureiro. Lisboa, Centro Científico e Cultural de Macau. Fundação Jorge Álvares-Fundação Macau, 2017.

Bibliografia sobre o biografado:
Loureiro, Rui Manuel. “A Malograda Embaixada de Tomé Pires a Pequim.” In Portugal e a China, ed. Jorge M. dos Santos Alves, 39–55. Lisboa, Fundação Oriente, 1999.

Loureiro, Rui Manuel. “O Sudeste Asiático na Suma Oriental de Tomé Pires.” Revista de Cultura / Review of Culture 4 (2002): 106–123.