Moimenta da Serra, Gouveia, 21 março 1702 — Lisboa, 27 Janeiro 1776
Palavras-chave: Bento de Moura Portugal, Royal Society, Inquisição, Marquês de Pombal.
DOI: https://doi.org/10.58277/LWRF4720
Físico e engenheiro português, Bento de Moura Portugal notabilizou-se como engenheiro na criação de máquinas e promoção de obras públicas, após ter adquirido experiência em vários países europeus. Descendente do lado do pai de Cristóvão de Moura Portugal, primeiro marquês de Castelo Rodrigo, consta que efetuou estudos no colégio jesuíta de Gouveia, mas esta escola só foi fundada em 1723, quando Moura Portugal já tinha 21 anos. Certo é que Moura Portugal se formou em Direito na Universidade de Coimbra em 11 de maio de 1731 (deve ter interrompido estudos, pois se tinha matriculado no 1.º ano em 1 de outubro de 1720). Em contraste com a sua formação de base jurídica, Moura Portugal foi um engenheiro e gestor, que trabalhou em diversas obras públicas de mecânica e hidráulica. Pode ser considerado um dos “estrangeirados” do século das Luzes, por ter passado um período da sua vida fora do país e dessa experiência ter trazido ensinamentos para a sua terra natal. Tornou-se Cavaleiro da Ordem de Cristo, em 12 de agosto de 1744, e Cavaleiro da Casa Real, por alvará régio de 24 de março de 1750 (D. João V, que assim o distinguiu, faleceria pouco depois).
Moura Portugal começou por exercer atividades de advocacia, para as quais se tinha preparado. Contudo, a fim de desenvolver as suas invulgares competências técnicas em assuntos mecânicos, foi enviado em 1736 por D. João V numa viagem de formação ao estrangeiro, para a qual lhe atribuiu o que chamaríamos hoje uma bolsa de estudo. Viajou pela Europa durante quatro anos, observando diversas obras públicas, designadamente na Inglaterra (onde aprendeu a filosofia newtoniana), na Hungria (onde ensaiou um invento náutico, que consiste na aplicação de remos a navios de grande porte), na Áustria, na Alemanha (onde inventou uma máquina pneumática), na França, em Espanha e, provavelmente, também na Holanda. Um ministro português escreveu assim ao embaixador em Londres recomendando a pessoa enviada: “passa a essa Corte para aprender algumas sciencias, e particularm.te a profissão de Enginheiro mellitar para a qual tem especial propensão, e capacidade”. Foi admitido como sócio da Real Sociedade de Londres em 5 de Fevereiro de 1741 e viu publicado nas Philosophical Transactions dessa sociedade em 1751 um artigo que apresentava o novo modelo de máquina a vapor (“máquina de fogo”) que tinha demonstrado na praia de Belém, Lisboa, em 1742 perante o rei D. João V e a família real. Tratava-se de um melhoramento da máquina de vapor do inventor inglês Thomas Savery (c. 1650–1715). A nova máquina era capaz de funcionar autonomamente, segundo um progresso que foi muito apreciado pelo engenheiro inglês John Smeaton (1724–1792), um dos pioneiros da locomotiva, que apresentou a comunicação nas Transactions.
Regressado a Portugal em 1740, foi mentor de diversas obras hidráulicas, para benefício da agricultura, designadamente projetos de um dique no rio Tejo em Vila Velha de Ródão para evitar as inundações dos terrenos agrícolas limítrofes e de diques semelhantes no rio Mondego; uma roda hidráulica para secar terras alagadas no paúl de Fôja, em Coimbra; drenagem dos paúis de Vila Nova de Magos, do Juncal e de Tresoito, no Ribatejo; etc. Desempenhou o cargo de “superintendente e Conservador das fabricas reais da fundiçam da artelharia da Comarca de Thomar” (as chamadas “ferrarias”, em Figueiró dos Vinhos, onde se construíam não só armas como alfaias agrícolas).
Apesar da notoriedade das suas obras, enfrentou adversidades e conheceu finalmente uma sorte trágica. Em 1743 viu-se acusado pela Inquisição, por alegadamente duvidar da existência de milagres (escreveu o frade franciscano que o denunciou: “o tal sojeito por ser bastante subtil, e ao mesmo tempo muito amante da sua opinião, causará damno e prejuízo ás almas, continuando semelhantes disputas”). Foi por isso interrogado pelo Santo Ofício em 1746. Um inquisidor escreveu: “Que todas as questões e duvidas que altercava nas suas praticas e conversas sobre lugares da Sagrada Escriptura o dito Bento de Moura Portugal eraõ nascidas de ter andado e assistido nos reynos estrangeyros como Inglaterra e Olanda onde reyna a heresia calviniana e lutherana”. Em 1748, Moura Portugal entregou uma carta de retractação, prometendo não mais se meter em matérias “alheias da sua profissaõ”. Os inquisidores, embora não convencidos, arquivaram o processo.
Depois de ter trabalhado na construção de uma ponte de barcas no Porto, de ter voltado a problemas de irrigação do Tejo e de ter voltado à ideia da navegação auxiliada por remos agora não no Danúbio mas no Tejo, ter lidado com problemas do paúl da Ota e de ter estudado novos processos de aplicação de impostos, nomeadamente o “quinto” do ouro do Brasil (consta que terá viajado até ao Brasil, mas provavelmente tal nunca ocorreu), viu-se envolvido, num período marcado por intensas perseguições político-religiosas ordenadas pelo Marquês de Pombal (paradoxalmente, também ele membro da Sociedade Real de Londres, para onde entrou em 15 de maio de 1740, pouco antes de Moura Portugal), no processo político dos Távoras ao ser acusado, por denúncia anónima, de conspirar contra o governo. Foi encarcerado na prisão do forte da Junqueira em Lisboa, em 9 de Julho de 1760, interrogado duas vezes e deixado sem culpa formada na prisão, de onde nunca mais saiu. A sua estada na prisão ao longo de seis anos levou-o à demência e a uma tentativa falhada de suicídio, pouco antes de morrer. Foi sepultado no próprio forte da Junqueira.
Vários dos seus contemporâneos o elogiaram, tanto no estrangeiro como em Portugal. O físico alemão Herman Osterrieder (1719–1783) declarou com algum exagero que “depois do grande Newton em Inglaterra, só Bento de Moura em Portugal”. O oratoriano Teodoro de Almeida (1722–1804) elogiou a sua teoria das marés, procurando reabilitar um cientista caído em desgraça. Em conjunto com uma crítica ao comportamento despótico do Marquês de Pombal, Almeida incluiu, no terceiro volume da sua obra Cartas físico-mathemáticas, uma carta com o título Sobre huma máquina para provar a causa das marés, segundo a doutrina do grande Bento de Moura Portugal. Num gesto que pode ser considerado de homenagem, a Imprensa da Universidade de Coimbra deu à estampa em 1821 um livro que resultou dos 28 cadernos de manuscritos sobre obras públicas escritos no cárcere em condições dramáticas, com papel pardo, um pauzinho ou ossinho e o fumo da candeia e resgatados postumamente por um amigo do autor: Inventos e Vários Planos de Melhoramento para Este Reino… Note-se a data da publicação: 55 anos após a morte, numa altura em que a maior parte desses “melhoramentos” já não faziam sentido. Uma carta de Moura Portugal contida nesse livro enumera uma lista de 18 dos seus inventos, onde destaca “um artefacto por modo de Navio para conduzir madeira do Pinhal de Leiria, ou de outra qualquer parte do Reino, para Lisboa”. Num jardim em Moimenta da Serra existe uma estátua que homenageia Moura Portugal.
Carlos Fiolhais
Centro de Física da Universidade de Coimbra
Arquivos
Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, [Memória de Bento de Moura Portugal dirigida a uma sociedade científica]. 1750. MSS. 21, n.º 66.
Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, Novos Inventos Por Bento de Moura Portugal extrahidos das margens de hum Livro intitulado Nouvelles decouvertes sur la Guerre aonde o Auctor entre outros escreveu os três projectos q[ue] contem este traslado. 1776. MSS. 60, n.º 1.
Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, Modo de affructar os paues e terra alagadiças : Providencias para conter, e diminuir as cheyas dos Rios Mondego e Tejo / Obra posthuma que para benificio comum, e utilidade da Real Corôa, e do Reino, estando prezo nos Carceres do Forte da Junqueira, onde faleceo, a 27 de Janeiro de 1766 compos e trabalhou Bento de Moura Portugal Cavalleiro Professo na Ordem de Christo, Fidalgo da Casa de Sua Magestade Fidelissima, Socio da Academia Real das Sciencias de Londres, e Superintendente das Reaes Ferrarias da Comarca de Tomar. 1801.COD. 10751.
Nova Iorque, Metropolitan Museum of New York, Dialogo sobre hua nova obra no Rio Tejo … 1776 (?). GB1321.M68 1766.
Obras
Portugal, Bento de Moura. Inventos e Vários Planos de Melhoramento para Este Reino. : escriptos nas prisões da Junqueira por Bento de Moura Portugal. Coimbra: na Imprensa da Universidade, 1765 (?).
Bibliografia sobre o biografado:
Almeida, Teodoro de. Cartas físico-mathemáticas de Theodosio a Eugenio: para servir de complemento á Recreaçaõ Filosophica, Lisboa: Tipografia Régia, 3 tomos, 1784–[1798].
Amaral, Abílio Mendes do. Bento de Moura Portugal na Lisboa da século XVIII. Lisboa: [s.n.], 1973.
Baião, António. Episódios Dramáticos da Inquisição em Portugal, 3ª ed. Vol. II: 41–52. Lisboa: Seara Nova, 1973.
Bento de Moura Portugal – O homem, o cientista e a obra na história do seu tempo e na perenidade do seu génio. Gouveia, Câmara Municipal de Gouveia, 1973.
Carvalho, Rómulo de. Bento de Moura Portugal, Homem de Ciência do Século XVIII, Memórias da Academia de Ciências de Lisboa, XXXIII (1993–1994): 153–224. [Reimpresso em Actividades Científicas em Portugal no Século XVIII, pp. 323–429. Évora, Universidade de Évora, 1996].
Carvalho, Rómulo de. “Portugal nas ‘Philosophical Transactions’ nos Séculos XVII e XVIII”, Revista Filosófica 11 (1956): pp. [Reimpresso em Colectâneea de Estudos Históricos (1953-1994), pp. 9–68. Évora: Universidade de Évora, 1997].
Pinto, Donzília Alves Ferreira Pires da Cruz. “Vida e obra de Bento de Moura Portugal.” Dissertação de mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1993.
Fiolhais, Carlos, ed., Membros Portugueses da Royal Society / Portuguese Fellows of the Royal Society. Coimbba: Universidade de Coimbra, 2011. [NB: Ver lista de sócios].
Machado, Alberto Teles de Utra. Bento de Moura Portugal: memória. Lisboa: Typographia da Academia Real das Ciências, 1890.
Smeaton, John. “An engine for raising Water by Fire, being an Improvement of Savery’s Construction, to render it capable of working itself, invented by Mr. De Moura of Portugal, F.R.S.” Philosophical Transactions 47 (1751–1752): 436–439. [NB: contém gravura em folha desdobrável].