Mira, Matias Boleto Ferreira de

Canha, 21 fevereiro 1875 — Lisboa, 7 março 1953

Palavras-chave: Faculdade de Medicina de Lisboa, Fisiologia, Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral, jornalista, político, publicista.

DOI: https://doi.org/10.58277/BAPE3649

Matias Boleto Ferreira de Mira era filho único de pais lavradores alentejanos, com alguns meios de fortuna. Sofria de tuberculose vertebral (doença de Pott) desde a infância, doença que se foi agravando ao longo do tempo. 

Fez o curso liceal no Montijo e licenciou-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, em 1898. Depois de terminar o curso exerceu clínica no Hospital da Misericórdia de Canha, no Montijo, e casou com Estrela Rosa da Silva Vassalo, sua conterrânea, em 1904. Deste casamento nasceu um filho único, Manuel Vassalo Ferreira de Mira, médico, que viria a falecer aos 24 anos, vítima de tuberculose, doença sobre a qual investigava, no Instituto que o pai dirigia. 

Em 1910, Ferreira de Mira veio para Lisboa, na sequência do agravamento dos sinais da sua doença e dirigiu-se à Faculdade de Medicina de Lisboa (FML). Aqui começou a trabalhar no Instituto de Fisiologia no ano seguinte, dirigido por Marck Athias, que o entusiasmou a dedicar-se à química biológica, área para a qual nem Athias nem nenhum dos seus discípulos tinha preparação laboratorial. O trabalho que aqui desenvolveu sobre a reacção de Maoiloff, que permitia determinar o sexo dos fetos ainda no ventre materno, permitiu-lhe a nomeação para o lugar de segundo assistente provisório de fisiologia, em 1912. Sete anos depois, a 11 de dezembro de 1919, mediante concurso de provas públicas, foi nomeado primeiro assistente e neste cargo ficou responsável pela regência do curso de química fisiológica, disciplina da qual foi titular até 1945, ano em que atingiu o limite de idade.

Ferreira de Mira foi eleito vereador da Câmara Municipal de Lisboa entre 1913 e 1915, numa lista neutra que envolvia todos os partidos, ao lado dos seus colegas médicos, Henrique de Vilhena, Salazar de Sousa e João Pais de Vasconcelos. Como edil ocupou o pelouro da instrução, para o qual contribuiu com um relatório sobre a estruturação da instrução primária que, não chegou a ser implementado pelos democráticos do movimento de 14 de maio.  

Ferreira de Mira foi vogal da Comissão Executiva da Associação Nacional de Tuberculosos em 1913, cargo que ocupou até 1915. Nunca quis apresentar a sua candidatura à Academia das Ciências de Lisboa, embora por mais de uma vez lhe tivesse sido solicitada, e não recebeu qualquer condecoração. 

Serviu o exército entre 1915 e 1916, como major miliciano, sendo nomeado membro de uma comissão que tinha por objetivo a revisão de um trabalho elaborado em 1916, sobre a mobilização dos médicos e estudantes de medicina para o serviço militar. 

Envolveu-se ativamente na vida política portuguesa a partir de 1914, ao lado de Brito Camacho, seu amigo, líder e fundador do Partido Unionista, cujos membros mais destacados se viam a si mesmos como os “aristocratas” da República. Foi deputado à Assembleia da República pelo distrito de Santarém em 1921 (por três meses) e mais tarde, entre 1923 e 1924. Na última legislatura integrou as comissões de finanças e administração. Em 1921 foi convidado para Ministro da Instrução no governo de Ginestal Machado, mas declinou o convite. A sua carreira política terminou com a ditadura militar e o Estado Novo. De facto, para um homem que rejeitava o totalitarismo e para quem o fascismo era um regime intolerante, por não consentir a crítica, e intolerável, por visar o monopólio do poder com duração ilimitada, seria impossível continuar a desempenhar funções políticas, no quadro saído do 28 de Maio. Embora admitisse a formação de governos com poderes extraordinários em situações de crise, Ferreira de Mira já não apoiara anteriormente a ditadura de de Sidónio Pais, no quadro da Iª República.

Ferreira de Mira, que escrevia desde muito jovem, iniciou-se como publicista no jornal “A Lucta”, jornal fundado pelo seu amigo Brito Camacho. Neste periódio publicou vários artigos de índole científica, pedagógica e política, entre 1912 e 1918. Em 1922 o periódico foi descontinuado e Ferreira de Mira continuou a publicar artigos do mesmo tipo, no Diário de Notícias, entre 1947 e 1953, com uma regularidade semanal. Aqui publicou cerca de 200 artigos que, na sua grande maioria eram de propaganda científica com uma clara intenção de intervenção política. Para além destes periódicos onde Ferreira de Mira manteve uma colaboração regular, outros houve onde pontualmente publicou, como sejam, o Novidades, dirigido por Emídio Navarro, a Sociedade de Estudos Pedagógicos, da qual Ferreira de Mira foi director, em 1934, o Jornal do Comércio, a Seara Nova e ainda O Diabo. Os artigos publicados na Seara Nova foram reunidos com os títulos, Palestras Científicas e Curiosidades Científicas

Nos artigos de opinião escritos em “A Lucta” — cuja direção Ferreira de Mira assumiu quando Brito Camacho foi nomeado para Alto Comissário da República, em Moçambique — reclamara publicamente, por várias vezes, as dificuldades das quais a investigação científica em Portugal sofria, admitindo que no país reinava uma mentalidade alicerçada num anti-cientismo primário. Defendeu insistentemente, a ideia do mecenato para apoiar a construção de centros de investigação privados, com poderes e recursos para gerir a sua própria investigação, a exemplo dos Institutos Rockefeller e Canergie, nos Estados Unidos. Estes apelos tiveram eco em Bento da Rocha Cabral—um multimilionário transmontano emigrado no Brasil—que assim decidiu deixar em testamento a maioria dos seus bens, para que, na sua residência de Lisboa, se construísse um centro privado de investigação em ciências biológicas, bem como a indicação de que o seu primeiro diretor fosse Ferreira de Mira. Assumiu assim o cargo em 1922, com 45 anos, em circunstâncias que denunciavam já as qualidades de um líder de investigação, no Instituto de Fisiologia da FML. 

Para dar integral cumprimento ao testamento de Rocha Cabral foi necessário proceder a uma alteração da legislação portuguesa dado que a criação de um instituto com estas características era inédita em Portugal. Na qualidade de deputado, Ferreira de Mira apresentou na Câmara, um projecto de lei que estabelecia a isenção de quaisquer contribuições ou impostos para os institutos de investigação e propaganda científica. Na sua alocução à Câmara dos Deputados, substituiu a caridade, pelos valores humanitários do mecenato científico, mais conformes ao ideário laico da República. Com ligeiras alterações, o projecto de lei de Ferreira de Mira foi aprovado por unanimidade no parlamento e a 15 de julho de 1922 foi promulgada em conformidade, a Lei nº 1:290 e o Decreto nº 8:315 de 11 de agosto, no qual se reconhecia a utilidade pública do Instituto de Investigação Scientifica de Bento da Rocha Cabral com individualidade jurídica.

Em 1925 iniciaram-se os trabalhos de investigação, após a adaptação do palacete de Rocha Cabral, em Lisboa, na calçada da Fábrica da Louça (que recebeu o seu nome a partir de 1924). O novo espaço albergava no início quatro espaços complementares de investigação: a fisiologia (com Ferreira de Mira, Joaquim Fontes e Mark Athias), Histologia (com Augusto Celestino da Costa e Luís Simões Raposo), Química Biológica (Ferreira de Mira, João Calisto, Anselmo da Cruz e depois, Kurt Jacobsohn) e Bacteriologia (primeiro com Fausto Lopo de Carvalho e Manuel Ferreira de Mira, e depois da morte deste, com Alberto de Carvalho).  

No IRC, Ferreira de Mira dirigia a publicação regular de dois periódicos, Travaux de Laboratoire e Actualidades Biológicas. Os Travaux de Laboratoire, cujo primeiro volume surgiu em 1926, eram publicados em língua francesa, com o objectivo de assegurar a internacionalização da produção científica dos investigadores do instituto. As Actualidades Biológicas, editadas a partir de 1928, consistiam numa coletânea de conferências proferidas anualmente, no instituto, pelos investigadores considerados como os mais conceituados na época, na sua área de investigação, e que, maioritariamente, trabalhavam no instituto.

Para além dos artigos publicados em jornais e das conferências que proferiu na Universidade Popular Portuguesa, Ferreira de Mira foi autor de 71 artigos científicos em revistas portuguesas e estrangeiras da especialidade, muitos deles em colaboração com Joaquim Fontes, e 21 obras de carácter didático ou histórico. Publicou uma coleção de lições de química fisiológica para os alunos da FML, e mais tarde, um manual que teve duas edições, Lições de Química Fisiológica Elementar, uma em 1925 e outra, em 1934. Editou também dois pequenos manuais de fisiologia elementar, com Joaquim Afonso de Guimarães, Alimentação, Digestão e Absorção dos Alimentos, em 1937, e Sangue, Metabolismo e Emunctórios, em 1939 e publicou também um livro de fisiologia geral, com o título, Elementos de Fisiologia: Fisiologia Geral, em 1944. Apenas neste último livro, Ferreira de Mira refere alguns dos seus trabalhos de investigação. Publicou também em colaboração com Pereira Forjaz e com Kurt Jacobsohn, dois manuais de química utilizados na Faculdade de Ciências, um de química geral, publicado em 1942, e outro de química orgânica, publicado em 1938. Além destas obras, editou também algumas de carácter histórico, a História da Medicina Portuguesa, em 1947, e a História da Fisiologia em Portugal, que foi concluída e publicada a título póstumo, pelo IRC, em 1954.

Para além das publicações científicas e didáticas e das diversas crónicas científicas, pedagógicas e de índole política, que escreveu, Ferreira de Mira editou também Cartas de Longe e Em Viagem, no género de literatura de viagem e biografou Manuel Bento de Sousa, Carlos França, Custódio Cabeça, Augusto Monjardino e Brito Camacho.

Faleceu em Lisboa, vitima de edema pulmonar, com 78 anos.

***

A obra de Ferreira de Mira é multifacetada. Não sendo dos médicos do seu tempo, o mais referido, não deixou fazer parte da “geração e 1911” ao lado de Marck Athias, Augusto Celestino da Costa, Henrique de Vilhena ou Sílvio Rebello Alves. Fez assim parte de uma escola de médicos-cientistas que marcou a diferença na formação médica da primeira metade do século XX, pela forma como, veiculados a uma ideia de modernidade assente em pressupostos humboldtianos por um lado, e, positivistas, por outro, agilizaram um conjunto de meios, atores e instituições, que fizeram de Lisboa uma capital científica, por excelência. 

Para além de médico e investigador, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Ferreira de Mira foi publicista, jornalista, político e o primeiro diretor de um instituto privado de investigação para as ciências biomédicas em Portugal, o IRC. Entusiasta do desenvolvimento experimental das ciências biológicas contribuiu para o intercâmbio científico e para a animação daquele espaço de investigação e de aprendizagem mútua e contínua, que complementava a investigação realizada em diferentes espaços públicos, dos quais se destaca o Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, criado em 1892, ou mesmo outros espaços privados como o Instituto Pasteur de Lisboa, fundado por Virgínio Leitão Vieira dos santos, em 1898. 

O laboratório de química biológica foi o último a ser instalado no IRC. Os primeiros trabalhos foram realizados por Ferreira de Mira, mas as condições experimentais em que exerciam a sua atividade não eram consideradas as mais convenientes e a formação científica nesta área também era sentida como bastante precária. Por esta razão e pelo conhecimento que Ferreira de Mira tinha da hegemonia da especialização científica alemã, não hesitou em procurar no Kaiser Wilhelm-Institut für Biochemie, o melhor especialista para recrutar para a sua secção do IRC. Por indicação de Neuberg, o convite foi endereçado a Kurt P. Jacobsohn, que, a partir de 1929, ali criou um grupo de investigação em bioquímica, que esteve na origem da emergência de uma nova área de especialização biológica em Portugal, na fronteira da medicina, da fisiologia e da química, na primeira metade do século XX.

Ferreira de Mira, pelo facto de ter publicado em diferentes canais de publicitação dos ideais republicanos, o número de publicações sobre temáticas de carácter doutrinário associadas à universidade e ao ensino superior é elevado. Se com os artigos publicados no jornal de Brito Camacho, entre 1912 e 1918, Ferreira de Mira pretendeu atingir o grande público, com aqueles que publicou na Seara Nova, entre 1940 e 1943, cumpriam o objectivo de divulgar as descobertas e contribuições científicas entre a elite intelectual portuguesa. Pela sua forte componente ideológica e no período em que são publicados, os artigos de Ferreira de Mira fazem dele o principal tribuno da escola de investigação de Athias na sociedade portuguesa, uma e outra no seu sentido mais lato. As suas intervenções jornalísticas em torno destas mesmas temáticas continuariam durante a ditadura de Salazar. Desta feita, no Diário de Notícias onde, e sempre na primeira página, conseguia com extrema habilidade, elegância e, por vezes, com fina ironia, passar a sua mensagem em total coerência com as ideias anteriormente expressas.  Num estilo muito próprio terá ultrapassado deste modo os mecanismos de censura. Durante este período, é também de salientar o apoio expresso de Ferreira de Mira às tentativas de mudar o curso da política científica portuguesa, do seu condiscípulo Celestino da Costa, “um dos professores que a assuntos universitários mais se dedicam,” então presidente do Instituto para a Alta Cultura.

Não tendo sido professor catedrático na Faculdade de Medicina de Lisboa, Ferreira de Mira deixou um legado muito peculiar para as novas gerações de médicos e investigadores que se lhe seguiram. Pelo IRC, durante a sua primeira fase de existência à frente da qual ele foi o seu director, passaram vários investigadores de referência no panorama científico português, como sejam, o parasitologista Carlos França, a fitopatologista Matilde Bensaúde, o Padre Joaquim da Silva Tavares, fundador da revista Brotéria ou, ainda, Egas Moniz. 

Isabel Amaral

Arquivo

Lisboa, Actas do Conselho de Administração do Instituto Bento da Rocha Cabral.

Obras

Ferreira de Mira, Matias Boleto. “Sur l’influence exercée par les capsules surrénales sur la croissance.” Archives Internationales de Physiologie 14 (1914): 108–125.

Ferreira de Mira, Matias Boleto. “Carlos França.” Jornal da Sociedade de Ciências Médicas 91 (1927): 87–129.

Ferreira de Mira, Matias Boleto. O Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1926.

Ferreira de Mira, Matias Boleto. Crónicas Scientíficas, prefaciadas pelo Dr. Brito Camacho. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928.

Ferreira de Mira, Matias Boleto e Joaquim Fontes. “L’action des extraits surrénaux sur la fatigue musculaire.” Archives Portugaises des Sciences Biologiques 2 (1929) : 221–244.

Ferreira de Mira, Matias Boleto e Kurt Jacobsohn “Les extraits de córtex surrénal et leur influence sur la survie du cobaye décapsulé.” Archives Portugaises des Sciences Biologiques 3 (1931):  23–42.

Ferreira de Mira, Matias Boleto . “O Instituto Rocha Cabral e a sua obra.” Actualidades Biológicas 11 (1939): 6–29.

Ferreira de Mira, Matias Boleto e Anselmo Cruz.  “Sur quelques composéa phosphoriques du muscle du lapin prive de capsules surrénales.” Comptes Rendus de la Société de Biologie de Paris (1937): 1–3.

Ferreira de Mira, Matias Boleto . História da Medicina Portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1947.

Ferreira de Mira, Matias Boleto . História da Fisiologia em Portugal. Lisboa: Oficinas Gráficas da Ramos, Afonso & Moita, 1954.

Bibliografia sobre o biografado

Elogio fúnebre de Ferreira de Mira. Acta nº 1001 do Conselho de Administração do IRC, 7/5/1953.

Moniz de Bettencourt, Jacinto. Miscellanea. Lisboa, 2000. 

Amaral, Isabel. A Emergência da Bioquímica em Portugal: as escolas de investigação de Marck Athias e de Kurt Jacobsoh. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian-Fundação para. a Ciência e Tecnologia, 2006.

Amaral, Isabel. “Na Vanguarda da Modernidade: o dinamismo sinergético de Marck Athias, Celestino da Costa e Ferreira de Mira na primeira metade do séc. XX”. In Estudos do Século XX, ed. Rui Pita e Ana Leonor Pereira, 263–282. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2004.

Aguiar, António Mota de. Sobre Ferreira de Mira (1875-1953). De Rerum Natura, https://dererummundi.blogspot.com/2012/03/sobre-ferreira-de-mira-1875-1953.html, aedido a 7 de Julho de 2022.

Costa, Augusto Pires Celestino da

Lisboa, 16 abril 1884 —  27 março 1956

Palavras-chave: Faculdade de Medicina de Lisboa, Histologia e Embriologia, “Geração de 1911”, Política científica.

DOI: https://doi.org/10.58277/PHZJ6378

Augusto Pires Celestino da Costa nasceu numa família de ascendência açoriana. O pai, Pedro Celestino da Costa, filho do Visconde de Noronha, era oficial do exército e sucumbiu às lutas que levaram à implantação da República, a 4 de Outubro de 1910; sua mãe, Úrsula Cândida de Canto e Castro faleceu quando Celestino da Costa tinha apenas três anos. Celestino da Costa foi criado por Joana Figueira Magalhães, mulher do pai em segundas núpcias. A perda deste e a morte precoce da mãe marcaram-no profundamente, mas foi o médico May Figueira − irmão da madrasta, médico de D. Luís I e professor na Escola Médico-cirúrgica de Lisboa− o seu verdadeiro tutor, que lhe despertou o interesse pelos estudos experimentais em medicina.  

No liceu interessou-se pela investigação histórica que lhe despertaria a curiosidade pela vida científica. Concluído o ensino secundário, decidiu inscrever-se na Escola Médico-cirúrgica de Lisboa. A sua atração pela medicina foi reforçada pela morte precoce de Luiz da Câmara Pestana, vítima da peste, que assim ganhou uma aura de heroicidade no combate à doença. Na Escola Médico-cirúrgica frequentou o laboratório de Marck Athias, que lhe incutiu o gosto pela medicina experimental e pela investigação, especialmente, em histologia. Foi aluno do primeiro curso de técnica histológica lecionado por Athias, sendo o seu trabalho sobre a histofisiologia das glândulas endócrinas (1904) considerado pioneiro em Portugal, por interpretar os resultados laboratoriais ao invés de fazer uso do saber livresco.

Em 1905, concluiu a licenciatura com a tese intitulada, Glândulas Supra-Renais e suas Homólogas, Estudo Citológico. Nos dois anos seguintes, apoiado financeiramente por May Figueira, partiu para a Alemanha com o objetivo de se especializar em histologia, seguindo os passos do tio, que se doutorara em Bruxelas e estagiara com o histologista Charles Robin, na Faculdade de Medicina de Paris, em 1855. Fez um estágio no laboratório de Rudolf Krause em Berlim, no Anatomisch-Biologische Institut, dirigido por Wilhelm Hertwig, citologista, embriologista e um dos pioneiros dos estudos sobre a hereditariedade. Findo o estágio fez várias viagens às principais capitais europeias, visitando vários laboratórios de investigação, o que lhe permitiu desenvolver uma visão médica, científica, cultural e artística mais universalista.

De regresso a Lisboa, ao mesmo tempo que trabalhou durante algum tempo no seu laboratório de análises clínicas na Avenida da Liberdade, deu início à investigação científica no laboratório de Marck Athias, no Instituto Real Bacteriológico Câmara Pestana, dirigido por Aníbal Bettencourt. Athias congregou a segunda geração de “médicos de laboratório”, constituída por Aníbal Bettencourt, Carlos França, Celestino da Costa, Sílvio Rebelo, Azevedo Neves e Henrique Parreira. 

Casou com Emília Hermengarda Croner Celestino da Costa, descendente de uma família de músicos. Deste casamento nasceram quatro filhos: Pedro, Jaime, Elisa e Augusto. Celestino da Costa deixou-se contagiar pela cultura musical da família Croner e escreveu, entre 1930 e 1931, uma série de 18 crónicas radiofónicas e fonográficas com críticas de emissões e discos, sob o pseudónimo de Sehr Musikalisch no semanário Kino, fundado pelo cineasta António Filipe Lopes Ribeiro, em 1930. 

Celestino da Costa viveu na transição da Monarquia para a República, período de transformações importantes no ensino superior e na construção do poder pela classe médica. A reforma republicana do ensino criou as Universidades de Lisboa e Porto, em 1911, tendo as escolas médico-cirúrgicas destas duas cidades sido convertidas em Faculdades de Medicina. Em 1910, com a morte de Miguel Bombarda, titular das cadeiras de Histologia e Fisiologia Geral na Escola Médico-cirúrgica de Lisboa, Celestino da Costa, então com 27 anos, ocupou a cátedra de Histologia, na agora Faculdade de Medicina de Lisboa, onde criou o Instituto de Histologia e Embriologia. 

Foi director técnico do Aquário Vasco da Gama (1913-1921), procurando transformá-lo num verdadeiro instituto de biologia marítima. Nos anos 30, no contexto de uma reorientação da medicina nacional para a investigação laboratorial, Celestino da Costa dedicou-se fundamentalmente à Faculdade de Medicina e à criação de uma escola de investigação que deixasse discípulos continuadores da sua obra. Em 1919, organizou o serviço de análises clínicas dos Hospitais Civis; em 1931, ocupou o cargo de secretário da Faculdade; em 1932, foi nomeado delegado dos professores catedráticos ao senado universitário e eleito vice-presidente da Junta Nacional de Educação, organismo destinado à definição de políticas científicas e ao financiamento da investigação; em 1935, foi nomeado diretor da Faculdade de Medicina. Em 1947, Celestino da Costa, como tantos outros professores universitários foi atingido pela vaga de saneamentos políticos organizada por Salazar e compulsivamente afastado da Faculdade durante alguns meses. A partir de 1950, Celestino da Costa viajou pelo Brasil e por Buenos Aires, onde realizou algumas conferências e cursos. Jubilou em 1954, ao completar 70 anos de idade. 

No contexto do Estado Novo, regime que não tinha o seu apoio, Celestino da Costa empenhou-se na definição e concretização de políticas de investigação, através da Junta Nacional de Educação e do Instituto para a Alta Cultura (IAC), cujos resultados se fizeram sentir em diversas disciplinas científicas, particularmente nas áreas biomédicas. Em 1932, foi eleito vice-presidente da Junta Nacional de Educação; entre 1934 e 1936 assumiu a presidência da comissão executiva e em 1936 passou a dirigir o IAC, com três grandes linhas de ação até 1942: a organização da investigação científica e do fomento cultural, o intercâmbio cultural universitário e a expansão da língua e da história portuguesas.

Celestino da Costa desempenhou vários cargos em sociedades científicas e profissionais. Foi membro fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, em 1907, e da Socieade de Biologia, em 1920; vice-presidente da Association des Anatomistes, em 1927; presidente da secção da Société Anatomique de Paris, em 1933; sócio honorário da Société d’Endocrinologie, em 1939 e, presidente da sociedade portuguesa de endocrinologia, entre 1949 e 1955. Foi ainda presidente da Associação dos Médicos Portugueses, em 1920, presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, entre 1946 e 1949, e da secção de ciências da Academia das Ciências de Lisboa. Foi também fundador da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia e co-fundador da Sociedade Luso-Espanhola de Endocrinologia com Gregorio Marañon.

***

De espírito liberal, movido por um ideal de apostolado científico, influenciado pelo pensamento de Santiago Rámon y Cajal, Celestino da Costa deu início a uma carreira de professor e investigador, que ficaria para a história da medicina portuguesa como um dos representantes mais destacados da “geração de 1911,” e arauto da modernização do sistema científico português, na primeira metade do século XX.

Na tradição inaugurada pela escola de investigação de Marck Athias de quem foi discípulo, Celestino da Costa estruturou um programa de investigação em três áreas fundamentais: a citologia, a embriologia e a histologia, reunindo, ao longo dos anos, diversos discípulos e colaboradores. Entre os mais próximos estão Pedro Roberto Chaves, Alfredo Magalhães Ramalho, Luiz Simões Raposo, Luís Hernâni Dias Amado, Sérgio de Carvalho, Manuel Xavier Morato, Francisco Geraldes Barba, Vasconcelos Frazão e José David-Ferreira. Destes, os quatro primeiros estiveram no centro de decisão do programa e investigação da sua escola, mas, por razões pessoais, políticas e institucionais, nenhum deles veio a suceder a Celestino da Costa, na cátedra de histologia e embriologia. Na segunda geração, iniciada com Xavier Morato, todos se dedicaram à histofisiologia, à carreira universitária e à carreira de investigação nos laboratórios da Faculdade de Medicina. No entanto a influência do grupo de investigação de Celestino da Costa não se restringiu apenas a esta instituição nem às áreas médicas. Por exemplo, o zoólogo Germano Sacarrão, Oliveira e Silva, Tavares de Sousa, António Madeira, Fernando Frade, Diogo Furtado e Rodolfo Iriarte Peixoto, após terem passado pelos laboratórios de Celestino da Costa, expandiram o seu programa de investigação da Faculdade de Medicina de Lisboa para a de Coimbra, e ainda para a Escola Superior de Medicina Veterinária, a Faculdade de Ciências de Lisboa e os Hospitais Civis. Para além destes seguidores mais próximos, integraram também o seu grupo de investigação, os docentes da Faculdade de Medicina, Jacinto Moniz de Bettencourt, Fernando Portela Gomes, Jaime Celestino da Costa, Carlos Alberto Vidal e João Bello de Moraes.  

A investigação realizada no âmbito do seu programa de trabalho foi desenvolvida, quer no Instituto de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina, onde se sediou o Centro de Estudos Histológicos e Embriológicos, financiado pelo IAC, quer na secção de embriologia do Instituto Bento da Rocha Cabral, desde 1927. Para além da componente didática, nestes laboratórios estudava-se o sistema glandular dos pontos de vista da estrutura, funcionamento e desenvolvimento, bem como o estudo embriológico do desenvolvimento do simpático, aparelho suprarrenal e para-gânglios. A difusão deste programa de investigação fez-se através de conferências temáticas e de cursos de verão frequentados por um público diversificado, mas maioritariamente médico, tendo Celestino da Costa promovido o contacto estreito com biólogos, anatomistas, histologistas e embriologistas não só plano nacional, mas também europeu. 

Sendo a histofisiologia uma área recente na Europa da época e carecendo Portugal de uma tradição científica nesta área alicerçada na experimentação, o papel que a escola de Celestino da Costa teve na alteração da mentalidade científica vigente e nas práticas de investigação foi marcante. Para além de mentor, Celestino da Costa encorajou a produção científica dos discípulos e promoveu uma intervenção planeada em sociedades e atividades editoriais, fatores indispensáveis à obtenção dos recursos intelectuais, científicos e financeiros capazes de garantir a continuidade e afirmação desta escola de investigação nas primeiras décadas do século XX. 

A obra de Celestino da Costa compreende 384 publicações, que incluem artigos e biografias científicas, manuais de laboratório, livros de texto, relatórios institucionais e artigos de carácter mais generalista, cuja temática dominante é o ensino médico nas universidades. Para além dos 173 artigos científicos, merecem especial destaque os livros de texto, como sejam: Elementos de Embriologia publicado em 1933, traduzido em francês em 1945, com segunda edição, também traduzida para francês, em 1948, e, o Tratado Elementar de Histologia e Anatomia Microscópica publicado em 1944, com uma segunda edição, em 1949, e tradução em espanhol em 1953. 

No campo científico, Celestino da Costa voltou sempre às suas ideias iniciais para as completar e refazer: no campo da endocrinologia, começou com o estudo da glândula suprarrenal, em 1904, e com ela terminou, em 1956; no âmbito da embriologia, começou com a histogénese da suprarrenal no estudo dos para-gânglios e as suas relações com o simpático, em 1917, e fechou também o ciclo, poucas horas antes de falecer, ao apresentar no último congresso da Association des Anatomistes, realizado em Lisboa, em 1956, um trabalho de revisão sobre a embriologia do simpático. A investigação em histofisiologia das glândulas endócrinas (supra-renal, hipófise, tiroideia e pâncreas) viria a projetar-se além-fronteiras, nomeadamente no desenvolvimento da endocrinologia na Península Ibérica e em França, onde era considerado referência obrigatória.

Isabel Amaral

Arquivo 

David-Ferreira, José. Disponível online em http://jfdf.pt/
Coleção Celestino da Costa, Faculdade de Ciências Médicas, Lisboa.

Obras

Celestino da Costa, Augusto. “Sobre alguns Pormenores da Estructura da Cápsula Supra-Renal dos Mamíferos.” A Medicina Contemporânea 22 (1904): 100–101, 108–109, 115–116, 160–-162, 192–193, 200–202, 214–215.

O Ensino Médico em Lisboa – a Histologia e a Embriologia. Lisboa: Faculdade de Medicina de Lisboa, 1925.

  • Elementos de Embriologia. Lisboa: J. A. Rodrigues, 1933.
  • A Junta de Educação Nacional. Lisboa: Publicação da Sociedade de Estudos Pedagógicos, Série A2, 1934.

O Problema da Investigação Científica em Portugal. Lisboa: Instituto para a Alta Cultura, 1938. 

— “Conception unitaire des paraganglions.” Comptes Rendus de la Société de Biologie de Paris 132 (1) (1940): 103–108.

— e Roberto Chaves, Pedro. Tratado Elementar de Histologia e Anatomia Microscópica. Lisboa: Livraria Luso-Espanhola, 1944.

—“Fomento e Organização da Investigação Científica. O Caso Português.” Ciência e Cultura, 3, nº3 (1951): 194– 207.

— “L’embryologie du sympathique et de ses dérivés. ” Bulletin de l’Association des Anatomistes 88b (1956) : 3–61. 

  • Historia de uma Experiência (manuscrito). s.d.

Bibliografia sobre o biografado

Flores, António. “Elogio histórico do Doutor Celestino da Costa.” Boletim da Academia das Ciências de Lisboa 29 (1957): 161–190. 

Marañon, Gregorio. “Sessão de Homenagem à memória do Professor Doutor Augusto Pires Celestino da Costa.” Revista Iberica de Endocrinologia 20 (1957): 14–144.

Xavier Morato, Manuel. “O Professor Augusto Pires Celestino da Costa.” Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa. 125,6 (1961): 1–39.

Celestino da Costa, Jaime. Um Certo Conceito de Medicina. Lisboa: Gradiva, 2001, 17–21; 147–176.

Amaral, Isabel et al. “A Escola de Histofisiologia de Augusto Celestino da Costa (1911-1956).” Actas do 1º Congresso Luso-Brasileiro de História da Ciência e da Técnica (2001):  615–629.

Celestino da Costa, Jaime. A Geração Médica de 1911 – Origem, realização e destino. Lisboa: Faculdade de Medicina de Lisboa, 2003.

“Sessões de Homenagem no Centenário do Professor Augusto Celestino da Costa na Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa,” Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa 149, nº 6, (1985). 

Salazar, Abel. 96 Cartas a Celestino da Costa. Lisboa; Gradiva, 2006. 

David-Ferreira, José. “Augusto Celestino da Costa (1884-1956) – Professor, Scientist and Science Promoter,” International Journal of Developmental Biology 53 (2009), 1161–1164.

Amaral, Isabel. “Augusto Pires Celestino da Costa (1884-1956): Uma vida, uma obra.” Letras convida – Literatura, Cultura e Arte 3 (2011): 44–45.