Athias, Marck Anahory

Funchal, 11 Dezembro 1875 — Lisboa, 30 Setembro 1946

Palavras-chave: “Geração de 1911”, escola de investigação, fisiologia, histofisiologia e histopatologia, cancro, Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, Sociedade Portuguesa de Biologia.

DOI: https://doi.org/10.58277/XRDX5586

Marck Anahory Athias nasceu numa família de origem judaica que se fixou na Madeira no século XIX. O pai, Abrahão Athias, era director de um estabelecimento bancário no Funchal; sua mãe, Deborah Anahory Athias, era doméstica. Fez os estudos secundários na Madeira e cedo manifestou interesse pelas Ciências Naturais, por influência de um dos seus professores. Aos dezasseis anos persuadiu o seu pai a deixá-lo frequentar o curso de medicina, em Paris. Os anos que passou na faculdade permitiram-lhe privar com histologistas e fisiologistas de renome internacional, entre os quais se contava Mathias Duval, discípulo de Santiago Ramón Y Cajal, Prémio Nobel da Medicina e Fisiologia de 1906, que muito influenciou a sua carreira como médico-cientista. Concluiu o curso de medicina, em 1897, com uma tese intitulada Histogènese du Cortex Cérébelleux, que lhe valeu a atribuição da medalha comemorativa da Faculdade de Medicina de Paris e as palmas académicas (Officier de L’Instruction Publique), do Ministério da Educação francês. 

Ao terminar o curso teria preferido continuar no laboratório de Duval, mas não ganhou o concurso. O lugar foi ocupado por outro discípulo, de nacionalidade francesa, o que condicionou o seu regresso ao Funchal, no mesmo ano. Após a morte do pai e insatisfeito com a ideia de exercer clínica na Madeira, veio para Lisboa, na expectativa de dar continuidade à sua carreira científica, já que regressar a França não se lhe afigurava viável devido ao caso Dreyfus (1894) e à onda de antissemitismo que então se gerou. 

Vivia na Rua de S. Bento. Foi apresentado por Xavier da Costa, histologista no Instituto Oftalmológico Gama Pinto, a Miguel Bombarda, que o convidou para trabalhar num pequeno laboratório de histologia, que instalou no Hospital de Rilhafoles, destinado ao ensino e à investigação desta disciplina. Aí acorreram Carlos França, Azevedo Neves, Pinto de Magalhães, Aníbal de Castro, Borges de Sousa, Oliveira Soares e António Barbosa, a que se associaram depois, no curso de 1901, Costa Santos, Manchego, Santiago, Arbuès Moreira e Augusto Celestino da Costa, interessados no conhecimento das novas técnicas histológicas, que Athias dominava. Ao mesmo tempo assumiu a direção de um laboratório médico privado de análises clínicas e preparação de soros, do Instituto Pasteur de Lisboa, propriedade de Virgílio Leitão. Em 1903, tornou-se preparador de histologia e fisiologia na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, onde elaborou a apresentação da nova dissertação inaugural, “Anatomia da célula nervosa”, para obter equivalência na Universidade portuguesa.

Por dificuldades financeiras, o laboratório de Rilhafoles encerrou e, em 1905, Athias entrou para o quadro do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, dirigido por Annibal Bettencourt, como médico-auxiliar, responsável pelo serviço da raiva.

Athias colaborou ativamente na elaboração do projecto da nova escola, a Escola Médico-cirúrgica de Lisboa, no Campo de Santana, que seria inaugurada em 1906, para acolher também o XV Congresso Internacional de Medicina, organizado por Miguel Bombarda. A este evento Athias apresentou vários trabalhos de investigação que lhe deram visibilidade para a criação, em 1907, da primeira sociedade científica especializada em ciências biológicas (entenda-se experimentais), a Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais (SPCN). A Sociedade foi fundada a 8 de Janeiro de 1907 com sede no Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, sendo Fernando Mattoso Santos seu presidente e Athias, 1º secretário. Nesta qualidade organizava as sessões, tratava da correspondência e publicava o Boletim e as Memórias da Sociedade, em francês, dando assim cumprimento às disposições estatutárias que não só incluíam a criação da Estação de Biologia Marítima, que tinha um programa bem mais ambicioso: o de  “cultivar e desenvolver o estudo das Ciências Naturais e publicar trabalhos relativos a estas ciências, assim como patrocinar outras organizações que, junto dela se organizassem com os mesmos objectivos”, como indica Toscano Rico. A esta sociedade seguiu-se a Sociedade Portuguesa de Biologia fundada em 1920, com Augusto Celestino da Costa e Abel Salazar, que viveu vários anos sob o patrocínio da SPCN e da Société de Biologie de Paris, abrindo assim caminho à divulgação da investigação médica portuguesa.

Em 1909, por intervenção de Miguel Bombarda, foi designado pelo governo para visitar, durante três meses, alguns laboratórios e fábricas de equipamento laboratorial no estrangeiro, juntamente com Pinto de Magalhães, com a missão de equipar os laboratórios e as bibliotecas, na Faculdade de Medicina. A 9 de Novembro de 1910 Marck Athias substituiu Miguel Bombarda na cátedra de fisiologia, para a qual foi nomeado com dispensa de provas públicas, e um ano depois, instalou o Instituto de Fisiologia na faculdade. Em 1919, foi nomeado Professor de histologia e fisiologia e diretor da biblioteca da Faculdade. Casou no mesmo ano com Judite Brou, filha de Aníbal Brou, um colega seu que vivia no Porto. Deste casamento nasceram duas filhas.

Em 1923, António Sérgio criou o Instituto Português para o Estudo do Cancro, que funcionou provisoriamente na Iª Clínica Cirúrgica de Francisco Gentil e no Instituto de Fisiologia de Athias, na Faculdade de Medicina. Após a sua inauguração em 1927, como Instituto Português de Oncologia (IPO), os laboratórios de investigação foram confiados a Athias, e de forma particular, a secção de patologia experimental e de histofisiologia. O seu primeiro trabalho sobre o cancro foi apresentado em 1907, na Sociedade de Ciências Médicas, mas apenas após a responsabilidade que assumiu na direção da investigação do IPO, se dedicou inteiramente a esta problemática. 

Nos primeiros anos da ditadura militar instaurada em 1926, foi membro da Junta de Educação Nacional, tendo sido seu presidente em 1931.

No ano seguinte, foi convidado por Ferreira de Mira para trabalhar consigo no laboratório de fisiologia, do Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral (IRC), passando assim a integrar o quadro dos investigadores deste instituto privado de investigação. Aqui permaneceu até 1943, tendo realizado os primeiros estudos sobre a histofisiologia das glândulas endócrinas, que abririam caminho à endocrinologia, na década de 50. 

Em 1933 foi nomeado professor do Instituto de Hidrologia, onde realizou ainda alguns estudos de águas termais portuguesas, com características medicinais. 

Em 1935 chegou à conclusão de que a sua missão de histologista na Faculdade de Medicina estava terminada e que não tinha condições para dar continuidade ao seu trabalho. Para além de orientar alguns trabalhos de investigação, dava apenas aulas, fazia os exames, comparecia aos conselhos e participava nos concursos. Até 1944, continuou a ocupar-se da redação e revisão das publicações das sociedades científicas de que era secretário. Controlou as suas atividades editoriais cujo objetivo visava, por um lado, difundir a sua produção científica, por outro, controlar a produção científica nacional nas áreas de influência da escola. Foi precisamente através destes canais de difusão do conhecimento que Marck Athias e a sua escola não só internacionalizaram a medicina portuguesa durante a primeira metade do séc. XX, como também criaram na comunidade científica local a necessidade de uma produção científica original e regular, orientada por padrões internacionais.

Nos últimos 15 anos da sua vida dedicou-se, quase exclusivamente, ao Instituto Português de Oncologia: teve uma participação ativa no estudo e instalação do instituto; dirigiu alguns trabalhos laboratoriais, colaborou na redação do Boletim do Instituto Português de Oncologia e na direção e redação do Arquivo de Patologia. Fez ainda outras publicações sob a forma de artigos relacionados com o cancro e contribuiu ativamente para a luta contra o cancro nas diversas funções do instituto. 

Em 1945, abandonou o cargo de secretário da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, passando a ser sócio benemérito e manteve-se na Sociedade Portuguesa de Biologia até adoecer. No mesmo ano, ano em que atingiu o limite de idade, foi homenageado pela Faculdade de Medicina e pelo Instituto Português de Oncologia, tendo sido inaugurados um retrato e um busto seus, concebidos por Abel Salazar, seu colaborador e amigo. No ano seguinte, faleceu a sua esposa vítima de cancro e Athias, faleceria poucos meses depois, vítima da mesma doença.

Athias propôs-se criar uma dinâmica interna na comunidade científica portuguesa, servindo-se do seu próprio trabalho para abrir um precedente e estabelecer um padrão de produção científica regular, através do seu percurso individual. Interessava-lhe mais estabelecer uma rede de condições que permitissem sustentar a atividade da comunidade científica, através da criação das várias sociedades científicas e periódicos que fundou e secretariou. Por esse motivo não publicou um grande número de obras nem o fez no circuito internacional. Publicou 138 trabalhos originais: 9 biografias científicas (D. Carlos I, Miguel Bombarda, Fernando Mattoso Santos, A. Laveran, Santiago Ramón y Cajal, Albert Dustin, Max Askanazy, Henrique Parreira e Carlos França); 4 textos didáticos escritos para os alunos da Faculdade de Medicina (em colaboração com Ferreira de Mira e Joaquim Fontes), os guias dos trabalhos práticos de fisiologia, e os exercícios de química fisiológica (em colaboração com Joaquim Fontes); 35 artigos de divulgação, relatórios de viagens ao estrangeiro ou das instituições em que trabalhou ou dirigiu e, os restantes, são artigos científicos. Estes artigos distribuem-se pelas áreas segundo as quais orientou a sua escola de investigação ¾ a fisiologia, a histologia, a histofisiologia, a histopatologia e a química fisiológica.

No início do século XX, a investigação científica em Portugal no domínio médico restringia-se a aspetos da prática clínica. Foi com a criação das estruturas basilares do novo paradigma médico inaugurado pela “geração de 1911” que Marck Athias introduziu uma nova tradição científica na comunidade médica, ao mesmo tempo que influenciou vários discípulos e colaboradores, em diferentes instituições médicas de ensino e investigação. A escola que fundou e o impacto da sua influência intersecta os ideais de inspiração positivista com os quais a “geração de 1911” se identificava, e que permitiu a criação de um verdadeiro “esprit de corps” que atraiu várias gerações de discípulos e seguidores. A escola que Athias fundou teve continuidade pela mão dos seus discípulos e seguidores permitindo consolidar o novo paradigma experimental na medicina portuguesa da primeira metade do século XX.

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Marck Anahory Athias exerceu clínica durante escassos meses, mas inaugurou, na primeira metade o século XX, um novo capítulo na história da medicina portuguesa e no panorama científico nacional. Elemento da “geração de 1911”, partilha dos ideais republicanos que conferem à investigação experimental e ao laboratório um estatuto privilegiado. Criticou o estilo livresco do ensino médico em Portugal, em defesa da investigação laboratorial. Esta nova perspetiva iria introduzir, alterações sem precedentes na comunidade médica portuguesa, tradicionalmente orientada apenas para a clínica, e far-se-ia sentir em dois planos: o da prática da investigação biomédica propriamente dita, e o da organização da investigação científica, no sentido da especialização e da profissionalização, o que virá a ter reflexos significativos no panorama científico nacional. 

Pela sua vivência em Paris, Athias estava consciente da importância de formar discípulos e de fazer escola, pelo que, logo que iniciou a sua atividade científica em Portugal, foi congregando em torno de si jovens interessados em prosseguir uma carreira científica. Estes, mais do que estudantes de investigação, foram efetivamente discípulos, já que sustentaram e deram continuidade à dinâmica da escola em vários planos. Recrutados maioritariamente na Faculdade de Medicina e unidos por um ideal comum de universidade e de investigação científica, constituíram um grupo coeso e com identidade própria, ficando indelevelmente ligados à “geração de 1911.”

A investigação da escola de Athias expandiu-se por vários laboratórios. O crescimento em espaço e em equipamento foi sendo gradualmente melhorado: no laboratório do Hospital de Rilhafoles (1897-1903) havia apenas uma sala relativamente pequena e deficientemente equipada; o da Escola Médico-Cirúrgica, (1903–1906) tinha melhores condições que o anterior, mas Athias considerava-o ainda desajustado à investigação; o do Instituto de Fisiologia (1911–1946) e dos laboratórios do Instituto Rocha Cabral estavam, desde o início, bem equipados para responder às necessidades da escola; finalmente o laboratório de patologia experimental do IPO (1933–1946), era de todos o que tinha as melhores condições. O financiamento da investigação realizada nestes laboratórios provinha do Estado, nomeadamente das verbas da Faculdade de Medicina, da Junta de Educação Nacional e do Instituto para a Alta Cultura, bem como de donativos particulares de somas consideráveis. 

O programa de investigação desenvolvido pela escola de Marck Athias iniciou-se pela histofisiologia nervosa, em 1897, área na qual Athias fizera as primeiras contribuições científicas em 1895, e prolongou-se até 1915. Esta área alargou-se para abranger a histofisiologia geral a partir de 1905 e diversificou-se para a fisiologia e a química fisiológica, a partir de 1911, e a histopatologia a partir de 1923. Os métodos e técnicas da histofisiologia, “migraram para novas áreas de ignorância” das quais se destaca endocrinologia. Na histologia do sistema nervoso, a escola centrou-se no estudo do desenvolvimento do neurónio e das infiltrações celulares no cérebro; no domínio da histofisiologia, procedeu ao estudo das glândulas endócrinas; na fisiologia dedicou-se à fisiologia muscular, glandular e de alguns órgãos como o rim e o coração; na química fisiológica, procurou encontrar uma explicação química para os fenómenos fisiológicos estudados no âmbito da fisiologia. O programa da escola de investigação de Athias operou duas mudanças importantes, na investigação biológica em Portugal: primeiro consolidou na investigação fisiológica portuguesa uma abordagem ao nível da célula e não somente ao nível do órgão; com a química fisiológica anunciou a transição do nível celular para o molecular, no âmbito da fisiologia. 

Em torno deste programa de investigação Athias deixou discípulos não só nas instituições em que liderou a investigação, como também noutras instituições de ensino e de investigação em Lisboa, no Porto, e em Coimbra. Athias promoveu um estilo próprio para a disseminação do seu próprio trabalho, criando vários periódicos, cujos artigos eram escritos maioritariamente em língua francesa, o que leva a supor que Athias estaria determinado a criar hábitos de publicação científica regular na comunidade científica portuguesa.

A escola de Marck Athias atravessou dois períodos históricos e políticos marcantes do séc. XX. Os ideais republicanos foram favoráveis ao desenvolvimento da ideologia e das práticas científicas com as quais a escola de Marck Athias se identificava e, portanto, os primeiros passos dados no âmbito da reforma dos estudos médicos com a criação da Universidade de Lisboa, em 1911, e da Junta de Educação Nacional, em 1929, foram fundamentais para os resultados desta escola. O Estado Novo, apesar de lhe ser desfavorável, não conseguiu, no entanto, travar de imediato a tradição que a escola inaugurara. A escola de Marck Athias converteu-se, no plano da investigação científica, numa referência durável até à segunda geração de discípulos e, no plano ideológico, numa referência da intelectualidade portuguesa que viveu os anos mais duros da ditadura.

Isabel Amaral

Arquivo

Lisboa, Coleção Marck Athias, Faculdade de Medicina

Obras

Athias, Marck. “Recherches sur l’histogénèse de l’écorce du cervelet.” Journal d’Anatomie 33 (1897): 372–373.

Athias, Marck. Anatomia da cellula nervosa. Dissertação Inaugural. Lisboa: Centro Tipografico Colonial, 1905.

Athias, Marck. “Introdução do método experimental e as suas principais aplicações às ciências médicas e biológicas em Portugal (Discurso)”. Actas do Congresso de História da Actividade Científica Portuguesa (1940): 465–491.

Athias, Marck. “La vacuolisation de la cellule nerveuse.” Anatomischer Anzeiger 28 (1905): 492–494. 

Athias, Marck. “Cytologia Geral do Cancro.” Jornal da Sociedade de Sciencias Médicas de Lisboa 72 (1908): 110–142.

Athias, Marck. “Études Hystologiques sur la Greffe Ovarienne.” In Libro en Honor de D. Santiago Ramón y Cajal, trabajos originales de sus admiradores e discipulos extranjeros y nacionales, 78–118. Madrid: Jiménez y Molina Impresores, 1922.

Athias, Marck. “Contribuição para o Estudo da Enervação dos Tumores.” Arquivo de Patologia 4 (1932): 138–161. [com Maria Teresa Furtado Dias].

Athias, Marck. “Le Cancer et la lutte anticancéreuse au Portugal”. Communications du IIe Congrés International de la lutte scientific et sociale contre le cancer, 519–525. Bruxelles: Marcel Hayez, 1936.

Athias, Marck. “Conception unitaire des paraganglions.” Comptes Rendus de la Société de Biologie de Paris 132 (1) (1940): 103–108.

Athias, Marck. Catálogo das obras da colecção portuguesa anteriores à fundação das Regias Escolas de Cirurgia. Lisboa: Faculdade de Medicina, 1942.

Athias, Marck. “O Ensino da Fisiologia na Régia Escola de Cirurgia e na Escola Médico Cirúrgica de Lisboa.” Clinica Contemporânea 1 (6) (1946): 333–341.

Bibliografia sobre o biografado

Celestino da Costa, Augusto. “Athias e a investigação científica.” Cadernos Científicos 3 (1) (1946): 249–262.

Celestino da Costa, Augusto. “A vida e obra Científica de Marck Athias.” Arquivo de Anatomia e Antropologia 26 (1948): 14–-227.

Rico, Toscano. “Mark Athias.” Arquivo de Patologia 21 (2) (1949): 117–140.

Dias, Maria Thereza Furtado. “Mark Athias.” Arquivo de Patologia 21 (2) (1949): 141–148.

Ferreira de Mira, Matias Boleto. “Athias e a Investigação Científica.” Clínica, Higiene e Hidrologia, 13, (1947), 269-270. 

Ferreira de Mira, “Athias e a Investigação Científica,” Clínica Higiene e Hidrologia, 13, (1947), 269-270.

Guimarães, J. A., “A Personalidade do Professor Marck Athias,” Clínica, Higiene e Hidrologia, 13 (1947), 266-273

Botelho, Luís da Silveira. “Marck Athias.” Revista Medicina 5 (1990): 69–71.

Amaral, Isabel. A Emergência da Bioquímica em Portugal: as escolas de investigação de Marck Athias e de Kurt Jacobsohn. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian-Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2006.

Amaral, Isabel. “The emergence of new scientific disciplines in Portuguese medicine: Marck Athias’s histophysiology research school, Lisbon (1897-1946).” Annals of Science 63 (1) (2006): 85–110.

Amaral, I. “The New Face of Portuguese Medicine: the generation of 1911 and the Research School of Marck Athias.” Acta Medica Portuguesa 24 (1) (2011): 165-162.

Amaral, Isabel. “Marck Athias e a ‘geração de 1911.’” Letras convida – Literatura, Cultura e Arte 3 (2011): 94–95.

Amaral, Isabel. Marck Anahory Athias (1875-1946). Instituto Camões. Versão digital em http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p41.html, consultado a 7 de julho de 2022. 

Mira, Matias Boleto Ferreira de

Canha, 21 fevereiro 1875 — Lisboa, 7 março 1953

Palavras-chave: Faculdade de Medicina de Lisboa, Fisiologia, Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral, jornalista, político, publicista.

DOI: https://doi.org/10.58277/BAPE3649

Matias Boleto Ferreira de Mira era filho único de pais lavradores alentejanos, com alguns meios de fortuna. Sofria de tuberculose vertebral (doença de Pott) desde a infância, doença que se foi agravando ao longo do tempo. 

Fez o curso liceal no Montijo e licenciou-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, em 1898. Depois de terminar o curso exerceu clínica no Hospital da Misericórdia de Canha, no Montijo, e casou com Estrela Rosa da Silva Vassalo, sua conterrânea, em 1904. Deste casamento nasceu um filho único, Manuel Vassalo Ferreira de Mira, médico, que viria a falecer aos 24 anos, vítima de tuberculose, doença sobre a qual investigava, no Instituto que o pai dirigia. 

Em 1910, Ferreira de Mira veio para Lisboa, na sequência do agravamento dos sinais da sua doença e dirigiu-se à Faculdade de Medicina de Lisboa (FML). Aqui começou a trabalhar no Instituto de Fisiologia no ano seguinte, dirigido por Marck Athias, que o entusiasmou a dedicar-se à química biológica, área para a qual nem Athias nem nenhum dos seus discípulos tinha preparação laboratorial. O trabalho que aqui desenvolveu sobre a reacção de Maoiloff, que permitia determinar o sexo dos fetos ainda no ventre materno, permitiu-lhe a nomeação para o lugar de segundo assistente provisório de fisiologia, em 1912. Sete anos depois, a 11 de dezembro de 1919, mediante concurso de provas públicas, foi nomeado primeiro assistente e neste cargo ficou responsável pela regência do curso de química fisiológica, disciplina da qual foi titular até 1945, ano em que atingiu o limite de idade.

Ferreira de Mira foi eleito vereador da Câmara Municipal de Lisboa entre 1913 e 1915, numa lista neutra que envolvia todos os partidos, ao lado dos seus colegas médicos, Henrique de Vilhena, Salazar de Sousa e João Pais de Vasconcelos. Como edil ocupou o pelouro da instrução, para o qual contribuiu com um relatório sobre a estruturação da instrução primária que, não chegou a ser implementado pelos democráticos do movimento de 14 de maio.  

Ferreira de Mira foi vogal da Comissão Executiva da Associação Nacional de Tuberculosos em 1913, cargo que ocupou até 1915. Nunca quis apresentar a sua candidatura à Academia das Ciências de Lisboa, embora por mais de uma vez lhe tivesse sido solicitada, e não recebeu qualquer condecoração. 

Serviu o exército entre 1915 e 1916, como major miliciano, sendo nomeado membro de uma comissão que tinha por objetivo a revisão de um trabalho elaborado em 1916, sobre a mobilização dos médicos e estudantes de medicina para o serviço militar. 

Envolveu-se ativamente na vida política portuguesa a partir de 1914, ao lado de Brito Camacho, seu amigo, líder e fundador do Partido Unionista, cujos membros mais destacados se viam a si mesmos como os “aristocratas” da República. Foi deputado à Assembleia da República pelo distrito de Santarém em 1921 (por três meses) e mais tarde, entre 1923 e 1924. Na última legislatura integrou as comissões de finanças e administração. Em 1921 foi convidado para Ministro da Instrução no governo de Ginestal Machado, mas declinou o convite. A sua carreira política terminou com a ditadura militar e o Estado Novo. De facto, para um homem que rejeitava o totalitarismo e para quem o fascismo era um regime intolerante, por não consentir a crítica, e intolerável, por visar o monopólio do poder com duração ilimitada, seria impossível continuar a desempenhar funções políticas, no quadro saído do 28 de Maio. Embora admitisse a formação de governos com poderes extraordinários em situações de crise, Ferreira de Mira já não apoiara anteriormente a ditadura de de Sidónio Pais, no quadro da Iª República.

Ferreira de Mira, que escrevia desde muito jovem, iniciou-se como publicista no jornal “A Lucta”, jornal fundado pelo seu amigo Brito Camacho. Neste periódio publicou vários artigos de índole científica, pedagógica e política, entre 1912 e 1918. Em 1922 o periódico foi descontinuado e Ferreira de Mira continuou a publicar artigos do mesmo tipo, no Diário de Notícias, entre 1947 e 1953, com uma regularidade semanal. Aqui publicou cerca de 200 artigos que, na sua grande maioria eram de propaganda científica com uma clara intenção de intervenção política. Para além destes periódicos onde Ferreira de Mira manteve uma colaboração regular, outros houve onde pontualmente publicou, como sejam, o Novidades, dirigido por Emídio Navarro, a Sociedade de Estudos Pedagógicos, da qual Ferreira de Mira foi director, em 1934, o Jornal do Comércio, a Seara Nova e ainda O Diabo. Os artigos publicados na Seara Nova foram reunidos com os títulos, Palestras Científicas e Curiosidades Científicas

Nos artigos de opinião escritos em “A Lucta” — cuja direção Ferreira de Mira assumiu quando Brito Camacho foi nomeado para Alto Comissário da República, em Moçambique — reclamara publicamente, por várias vezes, as dificuldades das quais a investigação científica em Portugal sofria, admitindo que no país reinava uma mentalidade alicerçada num anti-cientismo primário. Defendeu insistentemente, a ideia do mecenato para apoiar a construção de centros de investigação privados, com poderes e recursos para gerir a sua própria investigação, a exemplo dos Institutos Rockefeller e Canergie, nos Estados Unidos. Estes apelos tiveram eco em Bento da Rocha Cabral—um multimilionário transmontano emigrado no Brasil—que assim decidiu deixar em testamento a maioria dos seus bens, para que, na sua residência de Lisboa, se construísse um centro privado de investigação em ciências biológicas, bem como a indicação de que o seu primeiro diretor fosse Ferreira de Mira. Assumiu assim o cargo em 1922, com 45 anos, em circunstâncias que denunciavam já as qualidades de um líder de investigação, no Instituto de Fisiologia da FML. 

Para dar integral cumprimento ao testamento de Rocha Cabral foi necessário proceder a uma alteração da legislação portuguesa dado que a criação de um instituto com estas características era inédita em Portugal. Na qualidade de deputado, Ferreira de Mira apresentou na Câmara, um projecto de lei que estabelecia a isenção de quaisquer contribuições ou impostos para os institutos de investigação e propaganda científica. Na sua alocução à Câmara dos Deputados, substituiu a caridade, pelos valores humanitários do mecenato científico, mais conformes ao ideário laico da República. Com ligeiras alterações, o projecto de lei de Ferreira de Mira foi aprovado por unanimidade no parlamento e a 15 de julho de 1922 foi promulgada em conformidade, a Lei nº 1:290 e o Decreto nº 8:315 de 11 de agosto, no qual se reconhecia a utilidade pública do Instituto de Investigação Scientifica de Bento da Rocha Cabral com individualidade jurídica.

Em 1925 iniciaram-se os trabalhos de investigação, após a adaptação do palacete de Rocha Cabral, em Lisboa, na calçada da Fábrica da Louça (que recebeu o seu nome a partir de 1924). O novo espaço albergava no início quatro espaços complementares de investigação: a fisiologia (com Ferreira de Mira, Joaquim Fontes e Mark Athias), Histologia (com Augusto Celestino da Costa e Luís Simões Raposo), Química Biológica (Ferreira de Mira, João Calisto, Anselmo da Cruz e depois, Kurt Jacobsohn) e Bacteriologia (primeiro com Fausto Lopo de Carvalho e Manuel Ferreira de Mira, e depois da morte deste, com Alberto de Carvalho).  

No IRC, Ferreira de Mira dirigia a publicação regular de dois periódicos, Travaux de Laboratoire e Actualidades Biológicas. Os Travaux de Laboratoire, cujo primeiro volume surgiu em 1926, eram publicados em língua francesa, com o objectivo de assegurar a internacionalização da produção científica dos investigadores do instituto. As Actualidades Biológicas, editadas a partir de 1928, consistiam numa coletânea de conferências proferidas anualmente, no instituto, pelos investigadores considerados como os mais conceituados na época, na sua área de investigação, e que, maioritariamente, trabalhavam no instituto.

Para além dos artigos publicados em jornais e das conferências que proferiu na Universidade Popular Portuguesa, Ferreira de Mira foi autor de 71 artigos científicos em revistas portuguesas e estrangeiras da especialidade, muitos deles em colaboração com Joaquim Fontes, e 21 obras de carácter didático ou histórico. Publicou uma coleção de lições de química fisiológica para os alunos da FML, e mais tarde, um manual que teve duas edições, Lições de Química Fisiológica Elementar, uma em 1925 e outra, em 1934. Editou também dois pequenos manuais de fisiologia elementar, com Joaquim Afonso de Guimarães, Alimentação, Digestão e Absorção dos Alimentos, em 1937, e Sangue, Metabolismo e Emunctórios, em 1939 e publicou também um livro de fisiologia geral, com o título, Elementos de Fisiologia: Fisiologia Geral, em 1944. Apenas neste último livro, Ferreira de Mira refere alguns dos seus trabalhos de investigação. Publicou também em colaboração com Pereira Forjaz e com Kurt Jacobsohn, dois manuais de química utilizados na Faculdade de Ciências, um de química geral, publicado em 1942, e outro de química orgânica, publicado em 1938. Além destas obras, editou também algumas de carácter histórico, a História da Medicina Portuguesa, em 1947, e a História da Fisiologia em Portugal, que foi concluída e publicada a título póstumo, pelo IRC, em 1954.

Para além das publicações científicas e didáticas e das diversas crónicas científicas, pedagógicas e de índole política, que escreveu, Ferreira de Mira editou também Cartas de Longe e Em Viagem, no género de literatura de viagem e biografou Manuel Bento de Sousa, Carlos França, Custódio Cabeça, Augusto Monjardino e Brito Camacho.

Faleceu em Lisboa, vitima de edema pulmonar, com 78 anos.

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A obra de Ferreira de Mira é multifacetada. Não sendo dos médicos do seu tempo, o mais referido, não deixou fazer parte da “geração e 1911” ao lado de Marck Athias, Augusto Celestino da Costa, Henrique de Vilhena ou Sílvio Rebello Alves. Fez assim parte de uma escola de médicos-cientistas que marcou a diferença na formação médica da primeira metade do século XX, pela forma como, veiculados a uma ideia de modernidade assente em pressupostos humboldtianos por um lado, e, positivistas, por outro, agilizaram um conjunto de meios, atores e instituições, que fizeram de Lisboa uma capital científica, por excelência. 

Para além de médico e investigador, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Ferreira de Mira foi publicista, jornalista, político e o primeiro diretor de um instituto privado de investigação para as ciências biomédicas em Portugal, o IRC. Entusiasta do desenvolvimento experimental das ciências biológicas contribuiu para o intercâmbio científico e para a animação daquele espaço de investigação e de aprendizagem mútua e contínua, que complementava a investigação realizada em diferentes espaços públicos, dos quais se destaca o Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, criado em 1892, ou mesmo outros espaços privados como o Instituto Pasteur de Lisboa, fundado por Virgínio Leitão Vieira dos santos, em 1898. 

O laboratório de química biológica foi o último a ser instalado no IRC. Os primeiros trabalhos foram realizados por Ferreira de Mira, mas as condições experimentais em que exerciam a sua atividade não eram consideradas as mais convenientes e a formação científica nesta área também era sentida como bastante precária. Por esta razão e pelo conhecimento que Ferreira de Mira tinha da hegemonia da especialização científica alemã, não hesitou em procurar no Kaiser Wilhelm-Institut für Biochemie, o melhor especialista para recrutar para a sua secção do IRC. Por indicação de Neuberg, o convite foi endereçado a Kurt P. Jacobsohn, que, a partir de 1929, ali criou um grupo de investigação em bioquímica, que esteve na origem da emergência de uma nova área de especialização biológica em Portugal, na fronteira da medicina, da fisiologia e da química, na primeira metade do século XX.

Ferreira de Mira, pelo facto de ter publicado em diferentes canais de publicitação dos ideais republicanos, o número de publicações sobre temáticas de carácter doutrinário associadas à universidade e ao ensino superior é elevado. Se com os artigos publicados no jornal de Brito Camacho, entre 1912 e 1918, Ferreira de Mira pretendeu atingir o grande público, com aqueles que publicou na Seara Nova, entre 1940 e 1943, cumpriam o objectivo de divulgar as descobertas e contribuições científicas entre a elite intelectual portuguesa. Pela sua forte componente ideológica e no período em que são publicados, os artigos de Ferreira de Mira fazem dele o principal tribuno da escola de investigação de Athias na sociedade portuguesa, uma e outra no seu sentido mais lato. As suas intervenções jornalísticas em torno destas mesmas temáticas continuariam durante a ditadura de Salazar. Desta feita, no Diário de Notícias onde, e sempre na primeira página, conseguia com extrema habilidade, elegância e, por vezes, com fina ironia, passar a sua mensagem em total coerência com as ideias anteriormente expressas.  Num estilo muito próprio terá ultrapassado deste modo os mecanismos de censura. Durante este período, é também de salientar o apoio expresso de Ferreira de Mira às tentativas de mudar o curso da política científica portuguesa, do seu condiscípulo Celestino da Costa, “um dos professores que a assuntos universitários mais se dedicam,” então presidente do Instituto para a Alta Cultura.

Não tendo sido professor catedrático na Faculdade de Medicina de Lisboa, Ferreira de Mira deixou um legado muito peculiar para as novas gerações de médicos e investigadores que se lhe seguiram. Pelo IRC, durante a sua primeira fase de existência à frente da qual ele foi o seu director, passaram vários investigadores de referência no panorama científico português, como sejam, o parasitologista Carlos França, a fitopatologista Matilde Bensaúde, o Padre Joaquim da Silva Tavares, fundador da revista Brotéria ou, ainda, Egas Moniz. 

Isabel Amaral

Arquivo

Lisboa, Actas do Conselho de Administração do Instituto Bento da Rocha Cabral.

Obras

Ferreira de Mira, Matias Boleto. “Sur l’influence exercée par les capsules surrénales sur la croissance.” Archives Internationales de Physiologie 14 (1914): 108–125.

Ferreira de Mira, Matias Boleto. “Carlos França.” Jornal da Sociedade de Ciências Médicas 91 (1927): 87–129.

Ferreira de Mira, Matias Boleto. O Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1926.

Ferreira de Mira, Matias Boleto. Crónicas Scientíficas, prefaciadas pelo Dr. Brito Camacho. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928.

Ferreira de Mira, Matias Boleto e Joaquim Fontes. “L’action des extraits surrénaux sur la fatigue musculaire.” Archives Portugaises des Sciences Biologiques 2 (1929) : 221–244.

Ferreira de Mira, Matias Boleto e Kurt Jacobsohn “Les extraits de córtex surrénal et leur influence sur la survie du cobaye décapsulé.” Archives Portugaises des Sciences Biologiques 3 (1931):  23–42.

Ferreira de Mira, Matias Boleto . “O Instituto Rocha Cabral e a sua obra.” Actualidades Biológicas 11 (1939): 6–29.

Ferreira de Mira, Matias Boleto e Anselmo Cruz.  “Sur quelques composéa phosphoriques du muscle du lapin prive de capsules surrénales.” Comptes Rendus de la Société de Biologie de Paris (1937): 1–3.

Ferreira de Mira, Matias Boleto . História da Medicina Portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1947.

Ferreira de Mira, Matias Boleto . História da Fisiologia em Portugal. Lisboa: Oficinas Gráficas da Ramos, Afonso & Moita, 1954.

Bibliografia sobre o biografado

Elogio fúnebre de Ferreira de Mira. Acta nº 1001 do Conselho de Administração do IRC, 7/5/1953.

Moniz de Bettencourt, Jacinto. Miscellanea. Lisboa, 2000. 

Amaral, Isabel. A Emergência da Bioquímica em Portugal: as escolas de investigação de Marck Athias e de Kurt Jacobsoh. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian-Fundação para. a Ciência e Tecnologia, 2006.

Amaral, Isabel. “Na Vanguarda da Modernidade: o dinamismo sinergético de Marck Athias, Celestino da Costa e Ferreira de Mira na primeira metade do séc. XX”. In Estudos do Século XX, ed. Rui Pita e Ana Leonor Pereira, 263–282. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2004.

Aguiar, António Mota de. Sobre Ferreira de Mira (1875-1953). De Rerum Natura, https://dererummundi.blogspot.com/2012/03/sobre-ferreira-de-mira-1875-1953.html, aedido a 7 de Julho de 2022.