Folque, Filipe de Sousa

Portalegre, 28 novembro 1800 – Lisboa, 27 dezembro 1874

Palavras-chave: geodesia, cartografia, astronomia, ensino de ciência, institucionalização de ciência.

DOI: https://doi.org/10.58277/QPPJ6606

Filipe de Sousa Folque foi determinante na institucionalização dos trabalhos geodésicos e da astronomia em Portugal no século XIX. Enquanto diretor da Comissão Geodésica e Topográfica do Reino, coordenou os trabalhos de levamento geodésico que resultaram na elaboração, entre outras, da Carta Geographica de Portugal, editada em 1865. Folque foi também o professor de Astronomia e Geodesia da Escola Politécnica de Lisboa e um dos principais impulsionadores da criação do Observatório Astronómico da Ajuda, contribuindo decisivamente para moldar a natureza desta área científica e da comunidade astronómica em Portugal durante a segunda metade do século XIX e inícios do século XX. Folque foi sócio da Academia de Ciências de Lisboa.

Filho do general Pedro Folque e de Maria Micaela de Sousa Folque, o jovem Filipe seguiu a carreira militar tal como seu pai, assentando praça como aspirante a piloto da Marinha em 1817. Após ter estudado na Academia Real da Marinha, Folque ingressou na Universidade de Coimbra onde se dedicou ao estudo de matemática, geodesia e topografia. Em 20 de julho de 1826, obteve o grau de doutor em Matemática pela Universidade de Coimbra. Ainda neste ano, Folque foi nomeado ajudante do diretor das obras do rio Mondego e, em 1827, ajudante do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra. Foi provavelmente nesta qualidade que iniciou a atividade letiva, área em que mais tarde se distinguiu na Academia Real da Marinha e, sobretudo, na Escola Politécnica de Lisboa. Vivia-se, nessa altura, o início das guerras entre liberais e absolutistas (1828–1834). De acordo com José Maria da Ponte e Horta (1824–1892), seu sucessor na cadeira de Astronomia e Geodesia na Escola Politécnica e responsável pelo Elogio Histórico do Doutor Filipe Folque lido na sessão publica da Academia Real das Sciencias em 12 de Dezembro de 1875, Folque colocou-se desde a primeira hora do lado dos liberais, facto que lhe terá custado o afastamento da Universidade de Coimbra.

Na sequência destes acontecimentos, Folque regressou a Lisboa, onde se casou em 1831 com Maria Luísa Possolo, com quem teve dois filhos, Pedro e Virgínia Folque. Dois anos mais tarde, em 1833, transitou da Marinha para o Exército, onde alcançou o posto de general no Corpo de Engenheiros, em 1872. Deste período data a estreita colaboração com Almeida Garrett na fundação do Conservatório Nacional de Lisboa. Folque, que era um exímio flautista amador, assumiu gratuitamente as funções de conservador da Escola de Música, chegando mesmo a participar como solista e membro da orquestra em várias festas escolares. Uma destas ocasiões foi justamente a sessão solene do Conservatório de 21 de dezembro de 1841, que teve lugar na Sala de Atos da Escola Politécnica de Lisboa e que foi a última a que Garrett assistiu.

Uma vez no Corpo de Engenheiros, Folque começou a trabalhar sob direção do seu pai, Pedro Folque, na Comissão para os Trabalhos de Triangulação Geral e Levantamento da Carta Corográfica do Reino, sob a alçada do Ministério da Guerra. Esta comissão pretendia retomar os trabalhos de triangulação iniciados em 1790 por Francisco António Ciera (1763–1814). Uma das dificuldades com que o levantamento geodésico do reino se deparava era a escassez de pessoal técnico devidamente qualificado. Folque fez constante menção a este facto na sua Memória sobre os trabalhos geodésicos elaborados em Portugal, obra em quatro volumes publicada a partir de 1841, que oferece uma visão épica sobre o processo de elaboração de uma cartografia rigorosa do reino. Folque teve oportunidade de solucionar em parte este problema ao assumir funções como lente de Astronomia e Geodesia na recém-criada Escola Politécnica de Lisboa, em 1837. Pensada como peça essencial no processo de modernização do país, a Escola Politécnica de Lisboa teve um papel crucial na formação da elite técnico-científica que contribuiu para a consolidação do Estado-nação no século XIX. Foi neste contexto que Folque transitou da Academia Real da Marinha, agora extinta, onde ensinava Matemática desde 1834, para a Escola Politécnica, onde se manteve como professor da quarta cadeira (Astronomia e Geodesia), até se jubilar em 1859.

Quando Folque assumiu o ensino de Astronomia na Escola Politécnica, esta ciência dividia-se em dois ramos, que os seus contemporâneos nomeavam de “astronomia teórica”, também designada por vezes de “mecânica celeste”, graças à influência decisiva de Pierre Simon Laplace (1749–1827) e da sua incontornável Mécanique Céleste, e “astronomia esférica”. Se a primeira se dedicava à investigação das leis do movimento dos corpos celestes de acordo com a aplicação da teoria da gravitação universal de Newton, a segunda consistia no estudo da posição e direções  dos corpos celestes em momentos e localizações concretas. À medida que o século XIX se aproximava do fim, alguns astrónomos passaram a incluir na sua área disciplinar a designada “física cósmica” ou “astronomia física”, que estudava a estrutura do universo e a constituição física dos corpos celestes e que, mais tarde, beneficiando dos desenvolvimentos na área da espectroscopia, esteve na origem da “astrofísica”. Folque estava familiarizado com esta distinção, reconhecendo que, com Newton, a astronomia se havia reduzido “a não ser mais do que um grande problema de mecânica”. Contudo, perante a necessidade de formar um conjunto de engenheiros que pudessem levar a bom termo o levantamento geodésico e topográfico do país, ele não hesitou em valorizar a dimensão aplicada da astronomia no seu curso da Escola Politécnica. Ao fazê-lo, acabou por traçar um percurso semelhante a outros professores de escolas técnico-científicas da Europa e das Américas, optando conscientemente pela “astronomia esférica”. Foi neste contexto que escreveu o livro Elementos d’Astronomia coordenados para uso dos alunos da Eschola Polytechnica, publicado pela litografia da Escola Politécnica em 1840. Como outros manuais de astronomia esférica, os Elementos de Folque tinham como objetivo familiarizar o estudante com os métodos de determinação, não apenas da posição dos corpos celestes em determinado momento e local na superfície da terra, mas, também, das suas distâncias relativas tal como eram observáveis na esfera celeste. Tal exigia o domínio prévio dos processos de determinação e conversão dos sistemas de coordenadas esféricas e retangulares, o conhecimento da forma, dimensões e movimentos da terra, dos princípios da teoria do Sol e da Lua, o domínio de conceitos como o tempo solar e o tempo sideral, bem como de outros fenómenos astronómicos, como seja a aberração, a precessão dos equinócios, nutação e paralaxe. Uma introdução aos principais instrumentos utilizados para medir o tempo, os movimentos e as distâncias dos corpos celestes e sua calibração era, ainda, parte crucial dos manuais de astronomia esférica, como os Elementos de Folque.

O programa de astronomia esboçado por Folque e que se consubstanciava nos seus Elementos manteve-se em vigor até à década de 1890. Assim, parte significativa dos homens de ciência que, em Portugal, receberam formação em astronomia no século XIX, fizeram-no nos moldes traçados por Folque. Esse foi, em particular, o caso dos engenheiros que trabalharam da Comissão Geodésica e Topográfica do Reino. De facto, número significativo dos engenheiros que participaram nos trabalhos da designada alta geodesia desta Comissão, ou seja na determinação dos valores das coordenadas de latitude e longitude dos vértices dos triângulos de “primeira ordem” e do azimute entre um dos lados do triângulo e a linha norte-sul de forma a ajustar a orientação da cadeia de triangulação, foram alunos de Folque na Escola Politécnica de Lisboa. Após os estudos nesta e na Escola do Exercito, ao ingressarem na Comissão Geodésica e Topográfica do Reino, estes engenheiros reencontraram Folque, que dirigia Comissão desde 1852. Nesta função, Folque coordenava o planeamento dos trabalhos não apenas do ponto de vista técnico e científico, mas também administrativo. Neste contexto, produziu um conjunto preciso de instruções relativas aos métodos de observação, calibração de instrumentos, protocolo de observação, que por vezes chegavam mesmo a incluir referência ao pagamento por estes trabalhos.

Em 1856, a Comissão Geodésica e Topográfica do Reino deu origem à Direcção-Geral dos Trabalhos Geodésicos, Corográficos e Hidrográficos, dependendo do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria. Filipe Folque foi reconduzido na direção desta instituição. Nos anos que se seguem, o processo de elaboração de uma cartografia do reino avançou. Em 1865, foi publicada a Carta Geographica de Portugal à escala 1:500,000. O objetivo inicial foi a elaboração de um mapa topográfico com informação cadastral. Contudo, perante as manifestas dificuldades em concretizar este desiderato, decidiu elaborar um mapa corográfico à escala 1:100 000. O projeto de publicação deste mapa, que deveria incluir informação relativa às linhas de água, principais elevações, localização das estradas, principais cidades e vilas, bem como as divisões administrativas do país, só foi completado em inícios do século XX. Para além destes espécimes cartográficos, os serviços dirigidos por Folque elaboraram, entre outros, a Carta Topográfica de Lisboa na escala 1:1,000 em 65 folhas manuscritas e coloridas, o Plano Hidrográfico da Barra do Porto de Lisboa na escala 1:10 000 e a primeira Carta Geográfica e Geológica de Portugal continental na escala de 1:500 000.

Um dos motivos de demora na produção de mapas, sobretudo na primeira fase, relacionou-se com a técnica de impressão. Foi assim, que, provavelmente por iniciativa e Folque, se estabeleceu um contrato entre o governo português e o desenhador de origem polaca, exilado em França, Jan Lewiscki (1795–1871) com vista ao seu estabelecimento em Lisboa. Nesta cidade, foi, assim, fundada a primeira oficina litográfica dedicada à publicação de mapas e à preparação dos técnicos portugueses neste domínio.

Os mapas elaborados sob os auspícios da Direcção-Geral dos Trabalhos Geodésicos, Corográficos e Hidrográficos foram cruciais não apenas no planeamento de obras públicas e de desenvolvimento do país, mas também na projeção de uma imagem de modernidade fora das fronteiras. A Carta Geographica de Portugal tornou-se, assim, uma presença obrigatória nas exposições mundiais que ocorreram em várias cidades europeias e americanas durante a segunda metade do século XIX. Acompanhando várias destas Cartas, encontrava-se uma descrição do seu processo de produção escrita por Folque e publicada pela Imprensa Nacional, em 1868, com o título Rapport sur les travaux géodésiques du Portugal et sur l’état actuel de ces mèmes travaux.

Filipe Folque esteve ainda na origem do Observatório Astronómico de Lisboa. Surgido no contexto de uma controvérsia internacional sobre a paralaxe da estrela de Argelander, o projeto de um observatório astronómico dedicado à astronomia sideral depressa se converteu numa iniciativa de Estado, tendo sido designada uma comissão para promover a sua edificação. Folque destacou-se nesta comissão. Ele estabeleceu os contactos iniciais com a comunidade científica internacional, soube reunir apoios políticos para a sua concretização, nomeadamente o patrocínio do rei D. Pedro V (1837-1861), e escolheu, ainda, o astrónomo que iria materializar o projeto, o seu ex-aluno na Escola Politécnica Frederico Augusto Oom (1830–1890), futuro diretor do Observatório Astronómico de Lisboa. Este observatório foi edificado entre 1861 e 1867, tendo como modelo o Observatório Astronómico de Pulkovo, São Petersburgo, Rússia.

Como era frequente entre os homens de ciência no Portugal oitocentista, Filipe Folque seguiu, também, uma careira política, tendo sido eleito nas legislaturas de 1840–1842 e 1860–1861. Apesar de se traçar com certa frequência o perfil de um homem comprometido com a ciência e um pouco avesso às discussões parlamentares, Folque integrou as Comissões de Guerra e de Administração Pública e apresentou, na Câmara dos Deputados, propostas relativas ao ensino e política científica, como, por exemplo, a necessidade de melhorar o ensino de matemática nas instituições de ensino superior em Portugal.

Em vida, Filipe Folque viu reconhecido o seu importante papel no âmbito do ensino e institucionalização da ciência em Portugal. Logo em 1834 foi eleito sócio efetivo da Academia Real das Ciências de Lisboa, sendo nomeado diretor da classe das ciências exatas em 1850. Ele foi, também, mestre de Matemática de D. Pedro V e D. Luís, tendo feito parte do séquito que acompanhou os príncipes no seu tour europeu de 1854 e 1855, sobre o qual escreveu um interessantíssimo diário, ainda manuscrito. Entre as inúmeras distinções que recebeu, encontram-se a de Fidalgo da Casa Real e Par do Reino e a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, bem como as Comendas da Real Ordem de S. Bento de Avis, Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, Ordem de Leopoldo (Bélgica), Ordem da Coroa de Carvalho e Ordem do Leão (Países-Baixos), Legião de Honra (França) e da Ordem de S. Jorge (Reino das Duas Sicílias). Filipe Folque foi, ainda, sócio fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa, instituída um ano antes da sua morte.

Luís Miguel Carolino
CIES – Centro de Investigação e Estudos de Sociologia
ISCTE – IUL

Obras

Folque, Filipe. Ephemerides das distancias do centro do Sol e planetas Venus, Marte, Jupiter e Saturno ao centro da Lua e dos lugares heliocêntricos e geocêntricos destes astros para 1833. Lisboa: Impressão Régia, 1832.

Folque, Filipe. Elementos d’Astronomia coordenados para uso dos alumnos da Eschola Polytechnica. Lisboa: Lithografia da Escola Polytechnica, 1840.

Folque, Filipe.  Memória sobre os trabalhos geodésicos executados em Portugal. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1841-56.

Folque, Filipe. Diccionário do Serviço dos Trabalhos Chorographicos do Reino. Lisboa: Imprensa Nacional, 1853.

Folque, Filipe. Instrucções para a execução, fiscalisação, e remuneração dos trabalhos geodésicos e chorographicos do Reino. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858.

Folque, Filipe. Taboas para o cálculo trigonométrico das cotas de nível. Lisboa: Imprensa Nacional, 1864.

Folque, Filipe. Taboas para o cálculo das distâncias à meridiana e à perpendicular do Observatório do Castelo de Lisboa segundo a projecção de Flamsteed modificada. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867.

Folque, Filipe. Rapport sur les travaux géodésiques du Portugal e sur L’état actuel de ces mèmes travaux pour être présenté à la commission permanente de la Conférence Internationale. Lisboa: Imprensa Nacional, 1868.

Folque, Filipe. Relatório dos trabalhos executados no Instituto Geographico durante o ano de 1866-1867. Lisboa: Imprensa Nacional, 1868.

Folque, Filipe. Instrucções sobre o Serviço Geodesico de primeira ordem. Lisboa: Imprensa Nacional, 1870.

Bibliografia sobre o biografado

Alegria, Maria Fernanda e João Carlos Garcia. “Aspectos da evolução da Cartografia Portuguesa (séculos XV a XIX).” In Os mapas em Portugalda tradição aos novos rumos da cartografia, ed. Maria Helena Dias, 27–84. Lisboa: Cosmos, 1995.

Branco, Rui Miguel C. Branco. O mapa de Portugal: estado, território e poder no Portugal de oitocentos. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.

Carolino, Luís Miguel Carolino. “Measuring the heavens to rule the territory: Filipe Folque, the teaching of astronomy at the Lisbon Polytechnic School and the modernization of the State apparatus in nineteenth century Portugal.” Science & Education 21 (1) (2012): 109–133.

Costa, Maria Clara Pereira da Costa. “Filipe Folque – O homem e a obra (1800–1874).” Revista do Instituto Geográfico e Cadastral 6 (1986): 95–160.

Leitão, Vanda Leitão “Filipe de Sousa Folque (1800–1874): breve biografia.” In Medir os céus para dominar a terra: a astronomia na Escola Politécnica de Lisboa / medir o tempo, medir o mar, medir o tempo (catalogo de exposição), ed. Luís Miguel Carolino e Teresa Salomé Mota, 12–15. Lisboa: Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, 2009.

Ciera, Francisco António

Lisboa, 15 junho 1763— Lisboa, 6 abril 1814

Palavras-chave: carta geral do reino, geodesia, telegrafia visual, triangulação.

DOI: https://doi.org/10.58277/NQEJ5591

Francisco António Ciera nasceu em Lisboa, em 15 de junho de 1763. Seu pai, Miguel António Ciera, era um engenheiro do Piemonte, que viera para Portugal para integrar a delegação científica portuguesa que participou na delimitação de fronteiras da América do Sul. Estas foram acordadas entre Espanha e Portugal, através do Tratado de Madrid de 1750-1751. Alguns autores referem que Francisco era italiano, pelo facto de ter herdado o apelido do seu pai. Após ter terminado os trabalhos no Brasil, Miguel Ciera foi convidado para dirigir os estudos no Colégio dos Nobres, fundado pelo Marquês de Pombal em 1761. Devido a esta proximidade ao Ministro de D. José, os padrinhos de batismo de Francisco Ciera foram a condessa de Oeiras, mulher do marquês de Pombal, e Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão deste, que na altura desempenhava funções de Ministro e Secretário de Estado da Marinha.

Francisco Ciera começou, muito jovem, a acompanhar o pai nas observações astronómicas que este fazia. Com dezoito anos concluiu a sua formação em matemática, na Universidade de Coimbra. Quando Miguel Ciera faleceu, o filho foi o seu sucessor na cadeira de Astronomia e Navegação que ele ministrava na Academia Real de Marinha. Além da docência de matérias ligadas à astronomia continuou a fazer inúmeras observações astronómicas. Foi responsável, em conjunto com Custódio Gomes de Vilas Boas e com Garção Stockler, pela publicação das Efemérides Náuticas, a partir de 1788. Esta publicação, que continha tabelas com diversos valores astronómicos era imprescindível para os praticantes da navegação, especialmente para a determinação da longitude, que envolvia uma série de cálculos bastante complexos. Esses cálculos eram feitos previamente em terra firme, por matemáticos treinados. Naquela altura, as Efemérides Astronómicas eram elaboradas com base em publicações estrangeiras, nomeadamente no Nautical Almanach, publicado em Inglaterra desde 1767. Ainda no campo da astronomia foi um dos responsáveis pela edição portuguesa do famoso Atlas Celeste de Flamsteed.

Francisco Ciera foi um dos membros fundadores da Sociedade Real Marítim, criada por D. Rodrigo de Sousa Coutinho para proceder ao levantamento de cartas hidrográficas e topográficas do território e dos mares frequentados pelos Portugueses. Esta sociedade, que integrava muitos elementos da elite intelectual da época, promoveu a publicação de diversos trabalhos de carácter científico redigidos pelos seus membros. Entre esses contam-se vários textos da autoria de Francisco António Ciera: Exposição das observações e seus resultados sobre a determinação dos principais portos, e cabos da costa de PortugalApontamentos para as observações das marésDeterminação da marcha do Timekepeer (nº 66) d’ArnoldInformação sobre a notícia do Baixo visto pelo capitão Woley. O primeiro daqueles trabalhos foi premiado pela Sociedade Real Marítima, estando Ciera entre os primeiros a receber tão alta distinção. 

Francisco António Ciera foi escolhido pelo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. Luís Pinto de Sousa Coutinho, para levar a cabo os trabalhos necessários para a elaboração da Carta Geral do Reino. Para realizar as operações de triangulação, necessárias para o levantamento geodésico do reino, teve como adjuntos Pedro Folque e Carlos Frederico Caula, ambos oficiais do Exército. Além das tarefas necessárias à publicação da dita carta, Ciera queria também realizar algo com interesse para a ciência a nível mundial. Aproveitando a rede de triangulação que iria estabelecer, como base para a geodesia nacional, tencionava efetuar cálculos que pudessem contribuir para um melhor conhecimento da forma da Terra.

Estavam também entre os seus objetivos realizar os trabalhos de campo e os cálculos necessários para a medição de um grau de meridiano. Para isso deveria medir um arco de aproximadamente sete graus, entre o Cabo Ortegal, na Galiza, e o Cabo de São Vicente. Tencionava ainda fazer a ligação das triangulações de Espanha e de Portugal com as de França e de Inglaterra, contribuindo deste modo para uma melhor descrição geométrica da Europa. Os primeiros passos desta tarefa tinham sido dados recentemente, por diversos cientistas que tinham conseguido a ligação geodésica entre os Observatórios de Paris e de Greenwich.

Os trabalhos de campo, para reconhecimento dos pontos a escolher para a rede de triangulação iniciaram-se em outubro de 1790. Deles nos deixou o próprio Ciera um relato intitulado Viagem Geográfica & Astronómica pelo Reino de Portugal para a Construção da Carta Topográfica e Determinação do Grau do Meridiano. Este texto foi por ele apresentado numa reunião da Academia Real das Ciências. Nele são descritos com algum detalhe a sequência das observações, os valores conseguidos e os cuidados a ter na sua obtenção, assim como as dificuldades sentidas, numa época em que as vias de comunicação eram praticamente inexistentes. As dificuldades eram agravadas pelo facto de que, para proceder a uma boa triangulação, as observações deveriam ser feitas em locais bastante elevados, onde as condições de acessibilidade eram bastante complicadas. Os trabalhos de reconhecimento estenderam-se até à Galiza, onde Ciera se dirigiu no final de 1791, acompanhado por oficiais espanhóis. Os reconhecimentos levados a cabo permitiram a Ciera publicar a Carta dos pontos da série de triângulos para a medida do grau do meridiano entre os paralelos 37º e 45º 15’ de latitude N.

Definidos os pontos que constituíam a rede geodésica, iniciou, em 1793, os trabalhos de triangulação. Mediu uma primeira base, Batel-Montijo. Um dos problemas com que se deparou foi a inexistência de uma unidade padrão para medida de comprimento. Definiu ele próprio uma unidade que ficou conhecida como braça de Ciera. Precisava, igualmente, de um instrumento de medida, para determinar com rigor o comprimento da base. Recorreu a um dos seus mestres da Universidade de Coimbra, Monteiro Rocha. Este último concebeu umas réguas de precisão, para medir as bases da rede de triangulação. Com essas réguas, Ciera mediu a base de Batel-Montijo e mais tarde, em 1796, a de Buarcos-Monte Redondo. Esta última, maior que a primeira, ficou como base de operações, enquanto a anterior ficou como base de verificação.

Simultaneamente, começou, em 1793, a determinar os ângulos entre os diversos vértices da rede. Para tal usou um círculo repetidor Adams, encomendado em Londres. Estes trabalhos decorreram durante cerca de dez anos, não tendo sido possível medir com rigor todos os ângulos previstos, pois os mesmos implicavam observações de grande precisão, entre pontos bastante afastados entre si. Em 1803, os trabalhos foram interrompidos, por ordem do governo, devido à guerra que grassava na Europa e que se refletia em Portugal. Os trabalhos estiveram interrompidos até à década de 1830. Com o fim da Guerra Civil, o governo liberal decidiu retomar os trabalhos iniciados por Ciera. Para tal, encarregou Pedro Folque, que ainda era vivo na época, tendo este contado com a colaboração de seu filho, Filipe Folque, que acabou por ser o principal obreiro da concretização do levantamento geodésico do reino.

A interrupção dos trabalhos geodésicos está também relacionada com a atribuição de uma outra tarefa a Ciera, a implementação de um sistema de telegrafia visual, para comunicação com os navios a navegar nos portos, e nas suas imediações, para comunicação entre tropas em terra firme e ainda para assegurar as comunicações entre os diferentes palácios onde a família real costumava estar: Ajuda, Mafra, Queluz e Salvaterra. Existem documentos que mostram que em 1803 já se dedicava a estas tarefas, continuando a receber uma gratificação que lhe fora atribuída para realizar os trabalhos geodésicos. Ciera conhecia bem vários dos sistemas de telegrafia visual, em uso na Europa. No entanto, sugeriu ele próprio dois sistemas diferentes, um de ponteiro e outro de persianas. Qualquer deles permitia a transmissão de um número reduzido de sinais individuais, geralmente identificados por um algarismo. Ciera propôs publicou um vocabulário de sinais, no qual apresentava cerca de dez mil sinais numéricos diferentes, e respetivo significado, para uso com o telégrafo de ponteiros. Em 1810 foi criado o Corpo Telegráfico, sendo Ciera o seu primeiro diretor.

Ciera foi membro da Academia Real das Ciências de Lisboa. Na homenagem que lhe foi prestada naquela academia, quando faleceu, foi realçado o facto de ter consagrado grande parte da sua vida à utilidade do Estado. No discurso de homenagem foram lembrados os seus trabalhos de geodesia, o desenvolvimento do telégrafo e as observações astronómicas que efetuou e cujos resultados a Academia publicou.

O seu nome ficou gravado num dos ex-libris da geodesia e da topografia, um marco geodésico,.no ponto mais elevado de Portugal continental, no cimo da Serra da Estrela. Aqui se encontra a seguinte inscrição:

O principe regente n. S. Mandou fazer esta pyramide de pa o levantam.to da carta geral do reino de baixo da dereção do dr fra.co ant.o ciera 1802.

António Costa Canas
Escola Naval/ CINAV/ CH-ULisboa

Obras 

Ciera, Francisco António, Atlas celeste, arranjado por Flamsteed; publicado por J. Fortin ; correto, e aumentado por Lalande, e Mechain; trasladado em linguagem de Ordem de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente N.S. para instrução da Mocidade, Primeira edição portuguesa, revista, e correta pelo Doutor Francisco António Ciera, e pelo Coronel Custodio Gomes Villas-Boas. Lisboa: Impressão Régia, 1804.

Ciera, Francisco António, Carta dos pontos da série de triângulos para a medida do grau do meridiano entre os paralelos de 37º e 43º 45′ de latitude N : por ora escolhidos na primeira visita geral do terreno feita nos meses de Outubro de 1790, Abril, Maio, Setembro e Outubro de 1791, escala: c. 1:2 000 000, impressa pela Sociedade Real Marítima, 1803.

Ciera, Francisco António, Carta dos principais triângulos das operações geodésicas de Portugal, escala: c. 1:1 800 000, impressa pela Sociedade Real Marítima, 1803.

Ciera, Francisco António, Regimento de signaes para os annuncios das circunstancias mais notáveis da navegação dos navios que se avistão do Cabo da Roca e dos que entrarão ou sahem do porto de Lisboa, Manuscrito / feito por ordem de S.A.R. o Príncipe Regente Nosso Senhor pelo Doutor Francisco António Ciera, lente proprietário da cadeira de navegação na Academia Real da Marinha, 1803. Biblioteca Central da Marinha, RDf4-16.

[Ciera, Francisco António], Tábuas telegráficas, Lisboa: Impressão Régia, 1810.

Ciera, Francisco António, Viagem Geográfica & Astronómica pelo Reino de Portugal para a Construção da Carta Topográfica e Determinação do Grau do Meridiano, Manuscrito / Arquivo Histórico Militar, 4ª Divisão, 1ª Secção, Caixa 16, nº 21.

Bibliografia sobre o biografado

Dias, Maria Helena. ”As explorações geográficas dos finais de Setecentos e a grande aventura da Carta Geral do Reino de Portugal”. Revista da Faculdade de Letras – Geografia, I série, vol. XIX, Porto: 2003, pp. 383-396.

Luna, Isabel de, Sousa; Leal,  Ana Catarina; Sá, , Rui.  “Telegrafia Visual na Guerra Peninsular. 1807-1814”.  Boletim Cultural, 2008. Mafra: Câmara Municipal de Mafra, 2009, pp. 67-141.

Mendes, H. Gabriel. “Francisco António Ciera, renovador da Cartografia portuguesa»”. Geographica. Lisboa: [s.n.], 3, 1965, p. 11-25.

Moreira, Luís Miguel Alves de Bessa. Cartografia, Geografia e Poder: o Processo de construção da imagem cartográfica de Portugal, na segunda metade do século XVIII. Dissertação de doutoramento: Universidade do Minho, 2013).