Pestana, Luís da Câmara

Funchal, 28 outubro 1863 – Lisboa, 15 novembro 1899

Palavras-chave: higienismo, Instituto Bacteriológico, microbiologia, peste bubónica.

DOI: https://doi.org/10.58277/LDJF6010

Nasceu nasceu na freguesia da Sé, no Funchal, filho de Jacinto Augusto Pestana, funcionário da secretaria do Governo Civil, e de Helena Ana da Câmara, descendente de uma antiga família madeirense. Estudou no Liceu do Funchal e depois na Escola Politécnica de Lisboa. Em 1884, matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Concluiu a licenciatura em Medicina em 24 de julho de 1889, com a dissertação intitulada “O Micróbio do Carcinoma”, um dos primeiros trabalhos de oncologia experimental realizados em Portugal, influenciado pelos trabalhos do médico brasileiro Domingos Freire e do alemão Scheurlen. A 17 de dezembro do mesmo ano, iniciou a sua carreira clínica nos hospitais civis de Lisboa, quando foi nomeado cirurgião do Hospital de São José, lugar ao qual passou a efetivo após concurso, a 4 de dezembro de 1890. Em maio de 1895, transitou para o quadro dos cirurgiões extraordinários do mesmo estabelecimento. Ainda em 1890, começou a dar aulas na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, sendo nomeado em 1898, por concurso público, lente substituto da mesma Escola, assumindo a regência das cadeiras de Anatomia Patológica e Medicina Legal, lugar que vagara com a morte do professor Sousa Martins.

Em 1891, foi enviado pelo Ministério do Reino a Paris, por proposta dos professores Sousa Martins e Ferraz de Macedo, para aprofundar os estudos de bacteriologia e tomar conhecimento dos mais recentes trabalhos de Koch na prevenção e tratamento da tuberculose. Em Paris, Câmara Pestana frequentou os cursos e assistiu à investigação de bacteriologistas de renome como André Chantemesse (1851–1919), Pierre Charles Édouard Potain (1825–1901), André-Victor Cornil (1837–1908) e Isidore Straus (1845–1896). Estagiou no Instituto Pasteur, onde aprendeu o processo da vacina antirrábica. Apresentou uma comunicação à Sociedade de Biologia de Paris, a 27 de junho de 1891, com o título “De la diffusion du poison du tétanos dans l’organisme”.

De volta a Lisboa, foi nomeado preparador de bacteriologia da Escola Médico-Cirúrgica e deu uma conferência na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa (da qual era membro desde 1889), no dia 4 de junho de 1892, em que apresentou os resultados da sua viagem de estudo, particularmente na questão do tétano. 

Em 1892, perante um surto de febre tifoide em Lisboa e arredores, Câmara Pestana foi encarregado da análise das águas de Lisboa, tendo convidado para seu assistente Aníbal Bettencourt. Para este trabalho, foram encomendados os mais recentes aparelhos, que foram instalados numa enfermaria do Hospital de São José. Este laboratório improvisado acabou por dar origem ao Instituto Bacteriológico de Lisboa, fundado por decreto de 29 de dezembro de 1892 e dirigido por Câmara Pestana. O Instituto veio a ter o nome do seu fundador em 1899, após a sua morte, por proposta dos estudantes da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e no mesmo ano em que mudou para instalações próprias. O Instituto Bacteriológico de Câmara Pestana foi incorporado na Universidade de Lisboa em 1911, anexo à Faculdade de Medicina de Lisboa até à publicação dos Estatutos da Universidade de Lisboa, em 1989. Atualmente o Instituto desenvolve ações no campo da Saúde Pública, particularmente nos domínios da difteria, estreptococias, microbiologia clínica e verificação de produtos biológicos. Este laboratório produz a vacina anti-tuberculose e é responsável pela vertente humana da luta antirrábica em Portugal.

Em 27 de junho de 1893, Câmara Pestana apresentou um programa de inquérito à patologia portuguesa, com aplicação à exploração científica dos Açores, na Secção de Geografia Médica da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Em 1894 foi encarregado, por ofício do Ministério do Reino de 30 de abril, de realizar a investigação bacteriológica a uma epidemia febril que surgiu em Lisboa. Demonstrou que a mesma não era cólera. Em colaboração com Aníbal Bettencourt, escreveu nesse ano três artigos científicos sobre esta epidemia, além de um outro sobre “O tratamento da raiva em Portugal pelo método Pasteur”, que foram publicados em revistas médicas. Estes seus artigos foram também publicados em alemão em revistas internacionais, assim como outros sobre variadas especialidades da bacteriologia. Parte dos seus estudos incidiu sobre a difteria e o respetivo tratamento com o soro antidiftérico, tema sobre o qual também publicou importantes artigos científicos.

Ao longo da sua carreira, Câmara Pestana manteve contactos com os principais vultos e escolas médicas da época e rodeou-se de um grupo de colaboradores que garantiu a continuidade da sua investigação: Aníbal Bettencourt, que o sucedeu na direção do Instituto Bacteriológico, Morais Sarmento, Gomes de Resende e Carlos França. Fez parte de várias comissões científicas nacionais e estrangeiras. Foi nomeado membro de importantes sociedades científicas, mantendo correspondência com vários cientistas estrangeiros, que, em vários escritos, lhe fizeram as mais elogiosas referências. Publicou artigos e memórias grande valor científico na revista Medicina Contemporânea (1882-1974) e na Revista de Medicina e Cirurgia, fundada por ele próprio, em conjunto com outros médicos de renome como Alfredo da Costa, Mello Viana, Avelino Monteiro e Augusto Vasconcellos, cujo primeiro número saiu em janeiro de 1894 e que foi publicada até julho de 1895. Foi ainda diretor da revista mensal Archivos de Medicina publicada entre 25 de fevereiro de 1897 e 1898 pelo Real Instituto Bacteriológico de Lisboa.

Em junho de 1899, manifestaram-se vários casos de peste bubónica no Porto, diagnosticada pelo médico municipal e diretor do posto de desinfeção pública do Porto, Ricardo Jorge. Foram imediatamente postas em práticas medidas sanitárias para o combate aos agentes transmissores da doença, que já eram conhecidos: os ratos e as pulgas. Foram também encomendados ao Instituto Pasteur de Paris duzentos tubos do soro Yersin, que tinha sido desenvolvido por Alexandre Emile Jean Yersin, um médico suiço responsável pelo  isolamento do bacilo da peste bubónica em 1894 em conjunto com Kitasato Shibasaburō, após investigação sobre esta doença na China. Durante a epidemia de peste em Macau, em 1898, o soro já fora testado. No entanto, a sua eficácia dependia da rapidez da aplicação, logo nos primeiros dias da doença, e funcionava melhor ainda como preventivo, como foi usado pelos médicos franceses, que se deslocaram ao Porto para estudar a evolução da epidemia: Calmette, delegado do Instituto Pasteur de Paris, e Salemberie, preparador ajudante de Roux, também do Instituto Pasteur.

Apesar da confiança neste soro, Ricardo Jorge tinha dúvidas, que se confirmaram. Câmara Pestana fora nomeado em comissão de serviço público para estudar o valor do soro contra a peste no Porto. Aí, ao realizar uma operação, picou-se na mão esquerda, ficando infetado. Dois meses antes, tinha sido vacinado com o soro Yersin. Todavia, isto não o impediu de contrair a doença. No dia 10 de novembro de 1899, Câmara Pestana viajou a Lisboa para participar no Conselho Superior de Saúde e Higiene Pública que se reuniu sob a presidência do Conselheiro Ferraz de Macedo. Ao chegar a Lisboa, violou os preceitos rigorosos do cordão sanitário que implicavam quarentena e inspeções médicas a todos os passageiros que chegavam a Lisboa (realizadas na rua Ivens). Assim sendo, Câmara Pestana foi um dos doentes de peste a levar a epidemia para fora do Porto. 

Quando chegou a Lisboa, assistiu à reunião do Conselho e à noite já revelava sintomas da peste bubónica. O primeiro médico que o examinou foi Silva Carvalho, subdelegado de saúde, o qual tomou logo todas as providências que o caso requeria, dando de imediato conhecimento ao Governador Civil, que mandou remover o doente e sua família para o Hospital de Arroios e ordenando o completo isolamento do prédio onde habitavam. Todas as famílias que ali moravam foram levadas para o Lazareto, onde cumpriram a respetiva quarentena. A gravidade do seu estado provocou consternação em várias esferas da sociedade, desde o rei D. Carlos, que foi ao hospital de Arroios visitá-lo, ao Cardeal Patriarca, até aos alunos do curso de Medicina Veterinária do Instituto de Agronomia e Veterinária, que dirigiram uma mensagem a Câmara Pestana com mais de 30 assinaturas. No entanto, apesar da situação terminal em que se encontrava, Câmara Pestana não perdeu o seu sentido de humor, declarando aos colegas que o visitaram: “Há casos, meus caros amigos, nos quais os meios empregados pelos padres, hindus ou árabes, ou os métodos da ciência moderna, dão o mesmo resultado. É o meu caso, podem ver”.

Acabou por falecer cinco dias depois da doença se manifestar, com 36 anos, sendo alvo das maiores homenagens por parte de todas as esferas da sociedade. Em vários elogios fúnebres foi descrito como um “mártir da ciência”.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras 

Pestana, Luís da Câmara “O microbio do carcinoma.” Dissertação inaugural. Lisboa: Escola Médico-Cirurgica de Lisboa, 1889.

Pestana, Luís da Câmara e Aníbal Bettencourt. “Contribuição para o estudo bacteriológico da epidemia de Lisboa.”Revista de medicina e cirurgia 1(9) (1894) : 306-319.

Pestana, Luís da Câmara e Aníbal Bettencourt. “O tratamento da raiva em Portugal pelo methodo Pasteur: 1893.” Revista de medicina e cirurgia 1(14) (1894): 81-96.

Pestana, Luís da Câmara e Aníbal Bettencourt. “Primeiro relatório apresentado ao Exmº Ministro do Reino sobre a analyse bacteriológica das águas potáveis de Lisboa.” Jornal da Sociedade das Sciencias Médicas de Lisboa 57(56) (1894): 139-142.

Pestana, Luís da Câmara. “A peste bubónica.” Arquivos de medicina 1(1) (1) (1897): 17-31.

Pestana, Luís da Câmara. “Considerações sobre o diagnóstico da difteria.” Arquivos de medicina 1 (1) (1) (1897): 1-8.

Pestana, Luís da Câmara. “A sôrotherapia na diphteria.” Arquivos de medicina 1(1): (5) (1897): 193-208; 1(1) (6) (1897): 241-259.

Pestana, Luís da Câmara e Belo de Moraes. “Sarcoma da base do craneo.” Arquivos de medicina 2 (2) (2) (1898): 67-73.

Pestana, Luís da Câmara. “Contribuição para o estudo do mechanismo da immunidade passiva.” Arquivos de medicina 2 (2) (3) (1898): 97-118.

Pestana, Luís da Câmara. “Os progressos da medicina em 1898 na Bacteriologia.” A Medicina Contemporânea Janeiro (1899):.xx-xx (inserir página inicial e final)

Bibliografia sobre o biografado

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Bettencourt, Nicolau de. “Câmara Pestana.” Arquivos da Universidade de Lisboa,  11 (1926): 211-218.

Montaldo, Federico. La peste bubónica en Oporto (Portugal) 1899-1900: hecho epidemiográficos e investigaciones clínicas recogidos personalmente y anotados por el Doctor F. Montaldo… que asistió en la epidemia, durante tres meses, como Delegado Médico del Gobierno de España: memoria oficial. Madrid: Establ. Tip. de Portanet, 1900.

Oliveira, J. Cândido de. O professor Luis da Camara Pestana e a Fundação do Instituto Bacteriológo. Lisboa: Casa da Madeira, 1972. 

Ramalhão, Carlos. Prof. Luís Câmara Pestana vítima do dever profissional. Lisboa: Emp. Tip. Casa Portuguesa, 1965.

Correia, Fernando da Silva

Sabugal, 20 maio 1893 – Lisboa, 19 dezembro 1966

Palavras-chave: medicina, higienismo, ensino, termalismo.

DOI: https://doi.org/10.58277/LULJ1669

Fernando da Silva Correia foi filho de Joaquim Manuel Correia (1858–1945), advogado e autor das obras Memórias sobre o concelho do Sabugal: terras de Riba-Côa e Celestina: episódios da última guerrilha carlo-miguelista

Licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1917, tirou em Lisboa as especialidades de Medicina Sanitária em 1920 e de Hidrologia em 1921. O curso de Medicina Sanitária, ministrado no Instituto Central de Higiene, fornecia a habilitação necessária para o exercício do cargo de delegado de saúde, cujas funções, a nível distrital, incluíam a direção técnica dos serviços sanitários, o licenciamento dos estabelecimentos, a fiscalização da higiene industrial e do trabalho operário ou agrícola, a higiene infantil e as condições sanitárias da população em geral.

Fernando da Silva Correia estabeleceu prática clínica nas Caldas da Rainha em 1919 e em 1921 assumiu os cargos de médico municipal e delegado de saúde. Em 1934, foi nomeado inspetor da Terceira Área da Saúde Escolar para os distritos de Castelo Branco, Guarda, Setúbal, Portalegre, Évora, Beja e Faro e iniciou a sua carreira docente como professor de Administração Sanitária, Estatística Sanitária, Higiene Social e Assistência Social e Demográfica no Instituto Central de Higiene Dr. Ricardo Jorge (novo nome atribuido em 1929 em homenagem ao seu fundador), do qual foi diretor de 1946 a 1961. Entre 1935 e 1957 foi também docente no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, leccionando Profilaxia das Doenças Venéreas, Legislação Sanitária e História da Assistência. 

A sua vasta obra científica, com mais de uma centena de títulos de livros e artigos publicados em revistas como a Clínica, Higiene e Hidrologia (publicada entre 1935 e 1957, dirigida por Armando Narciso e especializada em higiene e termalismo), entre outras, incidiu sobre os temas da higiene e da saúde pública, abrangendo com especial preocupação as questões ligadas à infância, à higiene escolar e à necessidade da educação física e do desporto, ao mesmo tempo que denunciou os exageros dos desportos mais violentos. Os conceitos de medicina social, serviço social e assistência também foram amplamente debatidos na sua obra que teve uma clara intenção pedagógica. O seu trabalho mais significativo foi sem dúvida Portugal Sanitário, publicado em 1938, no qual colocou em evidência os “15 anos de experiências sanitárias e médico-sociais, acompanhadas do estudo do que se fazia no resto do País e no estrangeiro” e desenvolveu a história da higiene, da epidemiologia e da política sanitária em Portugal, salientando os seus aspetos mais importantes, como a endemiologia e a epidemiologia. Salientou ainda os principais procedimentos de profilaxia (imunização e salubridade); defendeu a frequência da praia como medicina preventiva, tratamento da tuberculose e robustecimento do organismo pela natação e remo; e apresentou a tuberculose, a sífilis e o alcoolismo como flagelos sociais, especialmente esta última, que descreveu como sendo uma patologia hereditária que constituia uma “arma de enfraquecimento da raça”, um discurso que se insere nas teorias eugenistas correntes na sua época. Concluiu com a descrição das principais necessidades país em termos de obras de saneamento e resolução de “erros sanitários”. 

Após uma incursão de juventude pelo teatro, com a públicação, nos seus tempos de estudante, da peça A Máscara, publicada em 1914, Silva Correia também se aventurou pela literatura, publicando em 1933 a obra Vida errada: o romance de Coimbra. No entanto, é na história e na biografia, especialmente nos temas ligados à saúde, que mais de metade dos seus títulos se insere. Desenvolveu repetidamente temas ligados à história do termalismo, à história da medicina, com especial interesse sobre a história clínica e o diagnóstico das causas de morte das personagens mais marcantes da família real desde a época medieval, as únicas a cujas fontes ele teria acesso. Também a história das misericórdias o ocupou bastante. Nas biografias o destaque foi para médicos e professores de medicina, apreciando especialmente Ricardo Jorge e Maximiano de Lemos.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

Correia, Fernando da Silva. Profilaxia das febres tifoides e paratifoides A. e B. pela vacinação. Coimbra: Casa Tipográfica, 1919. 

Correia, Fernando da Silva. Guia prático das águas minero-medicinais portuguesas. Coimbra: Livr. Ed. Moura Marques & Filho, 1922. 

Correia, Fernando da Silva. Doenças sociais e higiene. Caldas da Rainha: Dispensário de Profilaxia Social, 1932. 

Correia, Fernando da Silva. A educação física e a medicina em Portugal. Lisboa: s. n., 1935. 

Correia, Fernando da Silva. Esbôço da história da higiene em Portugal. S. l.: s. n., 1937. 

Portugal Sanitário (Subsídios para o seu estudo). Lisboa: Ministério do Interior – Direção Geral de Saúde Pública, 1938.

Correia, Fernando da Silva. Alguns aspectos do problema do alcoolismo em Portugal. S. l.: s. n., 1938. 

Correia, Fernando da Silva. Higiene rural: cartas abertas a um jovem médico / Velho Galeno. Coimbra: Federação dos Grémios da Lavoura da Província da Beira Litoral, 1942.

Correia, Fernando da Silva. “Portugal, pioneiro da assistência termal.”  Clínica, Higiene e Hidrologia 23 (1957): xx-xx[1] . 

Correia, Fernando da Silva. O conceito de medicina social. Coimbra: s. n., 1958. 

Bibliografia sobre o biografado

“Fernando da Silva Correia”. In Infopédia. Online. Disponível em: www.infopedia.pt/$fernando-da-silva-correia. Consultado em 5 de julho de 2022.

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Graça, Luís. 2000. História da Saúde no Trabalho. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa.