Pestana, Luís da Câmara

Funchal, 28 outubro 1863 – Lisboa, 15 novembro 1899

Palavras-chave: higienismo, Instituto Bacteriológico, microbiologia, peste bubónica.

DOI: https://doi.org/10.58277/LDJF6010

Nasceu nasceu na freguesia da Sé, no Funchal, filho de Jacinto Augusto Pestana, funcionário da secretaria do Governo Civil, e de Helena Ana da Câmara, descendente de uma antiga família madeirense. Estudou no Liceu do Funchal e depois na Escola Politécnica de Lisboa. Em 1884, matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Concluiu a licenciatura em Medicina em 24 de julho de 1889, com a dissertação intitulada “O Micróbio do Carcinoma”, um dos primeiros trabalhos de oncologia experimental realizados em Portugal, influenciado pelos trabalhos do médico brasileiro Domingos Freire e do alemão Scheurlen. A 17 de dezembro do mesmo ano, iniciou a sua carreira clínica nos hospitais civis de Lisboa, quando foi nomeado cirurgião do Hospital de São José, lugar ao qual passou a efetivo após concurso, a 4 de dezembro de 1890. Em maio de 1895, transitou para o quadro dos cirurgiões extraordinários do mesmo estabelecimento. Ainda em 1890, começou a dar aulas na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, sendo nomeado em 1898, por concurso público, lente substituto da mesma Escola, assumindo a regência das cadeiras de Anatomia Patológica e Medicina Legal, lugar que vagara com a morte do professor Sousa Martins.

Em 1891, foi enviado pelo Ministério do Reino a Paris, por proposta dos professores Sousa Martins e Ferraz de Macedo, para aprofundar os estudos de bacteriologia e tomar conhecimento dos mais recentes trabalhos de Koch na prevenção e tratamento da tuberculose. Em Paris, Câmara Pestana frequentou os cursos e assistiu à investigação de bacteriologistas de renome como André Chantemesse (1851–1919), Pierre Charles Édouard Potain (1825–1901), André-Victor Cornil (1837–1908) e Isidore Straus (1845–1896). Estagiou no Instituto Pasteur, onde aprendeu o processo da vacina antirrábica. Apresentou uma comunicação à Sociedade de Biologia de Paris, a 27 de junho de 1891, com o título “De la diffusion du poison du tétanos dans l’organisme”.

De volta a Lisboa, foi nomeado preparador de bacteriologia da Escola Médico-Cirúrgica e deu uma conferência na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa (da qual era membro desde 1889), no dia 4 de junho de 1892, em que apresentou os resultados da sua viagem de estudo, particularmente na questão do tétano. 

Em 1892, perante um surto de febre tifoide em Lisboa e arredores, Câmara Pestana foi encarregado da análise das águas de Lisboa, tendo convidado para seu assistente Aníbal Bettencourt. Para este trabalho, foram encomendados os mais recentes aparelhos, que foram instalados numa enfermaria do Hospital de São José. Este laboratório improvisado acabou por dar origem ao Instituto Bacteriológico de Lisboa, fundado por decreto de 29 de dezembro de 1892 e dirigido por Câmara Pestana. O Instituto veio a ter o nome do seu fundador em 1899, após a sua morte, por proposta dos estudantes da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e no mesmo ano em que mudou para instalações próprias. O Instituto Bacteriológico de Câmara Pestana foi incorporado na Universidade de Lisboa em 1911, anexo à Faculdade de Medicina de Lisboa até à publicação dos Estatutos da Universidade de Lisboa, em 1989. Atualmente o Instituto desenvolve ações no campo da Saúde Pública, particularmente nos domínios da difteria, estreptococias, microbiologia clínica e verificação de produtos biológicos. Este laboratório produz a vacina anti-tuberculose e é responsável pela vertente humana da luta antirrábica em Portugal.

Em 27 de junho de 1893, Câmara Pestana apresentou um programa de inquérito à patologia portuguesa, com aplicação à exploração científica dos Açores, na Secção de Geografia Médica da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Em 1894 foi encarregado, por ofício do Ministério do Reino de 30 de abril, de realizar a investigação bacteriológica a uma epidemia febril que surgiu em Lisboa. Demonstrou que a mesma não era cólera. Em colaboração com Aníbal Bettencourt, escreveu nesse ano três artigos científicos sobre esta epidemia, além de um outro sobre “O tratamento da raiva em Portugal pelo método Pasteur”, que foram publicados em revistas médicas. Estes seus artigos foram também publicados em alemão em revistas internacionais, assim como outros sobre variadas especialidades da bacteriologia. Parte dos seus estudos incidiu sobre a difteria e o respetivo tratamento com o soro antidiftérico, tema sobre o qual também publicou importantes artigos científicos.

Ao longo da sua carreira, Câmara Pestana manteve contactos com os principais vultos e escolas médicas da época e rodeou-se de um grupo de colaboradores que garantiu a continuidade da sua investigação: Aníbal Bettencourt, que o sucedeu na direção do Instituto Bacteriológico, Morais Sarmento, Gomes de Resende e Carlos França. Fez parte de várias comissões científicas nacionais e estrangeiras. Foi nomeado membro de importantes sociedades científicas, mantendo correspondência com vários cientistas estrangeiros, que, em vários escritos, lhe fizeram as mais elogiosas referências. Publicou artigos e memórias grande valor científico na revista Medicina Contemporânea (1882-1974) e na Revista de Medicina e Cirurgia, fundada por ele próprio, em conjunto com outros médicos de renome como Alfredo da Costa, Mello Viana, Avelino Monteiro e Augusto Vasconcellos, cujo primeiro número saiu em janeiro de 1894 e que foi publicada até julho de 1895. Foi ainda diretor da revista mensal Archivos de Medicina publicada entre 25 de fevereiro de 1897 e 1898 pelo Real Instituto Bacteriológico de Lisboa.

Em junho de 1899, manifestaram-se vários casos de peste bubónica no Porto, diagnosticada pelo médico municipal e diretor do posto de desinfeção pública do Porto, Ricardo Jorge. Foram imediatamente postas em práticas medidas sanitárias para o combate aos agentes transmissores da doença, que já eram conhecidos: os ratos e as pulgas. Foram também encomendados ao Instituto Pasteur de Paris duzentos tubos do soro Yersin, que tinha sido desenvolvido por Alexandre Emile Jean Yersin, um médico suiço responsável pelo  isolamento do bacilo da peste bubónica em 1894 em conjunto com Kitasato Shibasaburō, após investigação sobre esta doença na China. Durante a epidemia de peste em Macau, em 1898, o soro já fora testado. No entanto, a sua eficácia dependia da rapidez da aplicação, logo nos primeiros dias da doença, e funcionava melhor ainda como preventivo, como foi usado pelos médicos franceses, que se deslocaram ao Porto para estudar a evolução da epidemia: Calmette, delegado do Instituto Pasteur de Paris, e Salemberie, preparador ajudante de Roux, também do Instituto Pasteur.

Apesar da confiança neste soro, Ricardo Jorge tinha dúvidas, que se confirmaram. Câmara Pestana fora nomeado em comissão de serviço público para estudar o valor do soro contra a peste no Porto. Aí, ao realizar uma operação, picou-se na mão esquerda, ficando infetado. Dois meses antes, tinha sido vacinado com o soro Yersin. Todavia, isto não o impediu de contrair a doença. No dia 10 de novembro de 1899, Câmara Pestana viajou a Lisboa para participar no Conselho Superior de Saúde e Higiene Pública que se reuniu sob a presidência do Conselheiro Ferraz de Macedo. Ao chegar a Lisboa, violou os preceitos rigorosos do cordão sanitário que implicavam quarentena e inspeções médicas a todos os passageiros que chegavam a Lisboa (realizadas na rua Ivens). Assim sendo, Câmara Pestana foi um dos doentes de peste a levar a epidemia para fora do Porto. 

Quando chegou a Lisboa, assistiu à reunião do Conselho e à noite já revelava sintomas da peste bubónica. O primeiro médico que o examinou foi Silva Carvalho, subdelegado de saúde, o qual tomou logo todas as providências que o caso requeria, dando de imediato conhecimento ao Governador Civil, que mandou remover o doente e sua família para o Hospital de Arroios e ordenando o completo isolamento do prédio onde habitavam. Todas as famílias que ali moravam foram levadas para o Lazareto, onde cumpriram a respetiva quarentena. A gravidade do seu estado provocou consternação em várias esferas da sociedade, desde o rei D. Carlos, que foi ao hospital de Arroios visitá-lo, ao Cardeal Patriarca, até aos alunos do curso de Medicina Veterinária do Instituto de Agronomia e Veterinária, que dirigiram uma mensagem a Câmara Pestana com mais de 30 assinaturas. No entanto, apesar da situação terminal em que se encontrava, Câmara Pestana não perdeu o seu sentido de humor, declarando aos colegas que o visitaram: “Há casos, meus caros amigos, nos quais os meios empregados pelos padres, hindus ou árabes, ou os métodos da ciência moderna, dão o mesmo resultado. É o meu caso, podem ver”.

Acabou por falecer cinco dias depois da doença se manifestar, com 36 anos, sendo alvo das maiores homenagens por parte de todas as esferas da sociedade. Em vários elogios fúnebres foi descrito como um “mártir da ciência”.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras 

Pestana, Luís da Câmara “O microbio do carcinoma.” Dissertação inaugural. Lisboa: Escola Médico-Cirurgica de Lisboa, 1889.

Pestana, Luís da Câmara e Aníbal Bettencourt. “Contribuição para o estudo bacteriológico da epidemia de Lisboa.”Revista de medicina e cirurgia 1(9) (1894) : 306-319.

Pestana, Luís da Câmara e Aníbal Bettencourt. “O tratamento da raiva em Portugal pelo methodo Pasteur: 1893.” Revista de medicina e cirurgia 1(14) (1894): 81-96.

Pestana, Luís da Câmara e Aníbal Bettencourt. “Primeiro relatório apresentado ao Exmº Ministro do Reino sobre a analyse bacteriológica das águas potáveis de Lisboa.” Jornal da Sociedade das Sciencias Médicas de Lisboa 57(56) (1894): 139-142.

Pestana, Luís da Câmara. “A peste bubónica.” Arquivos de medicina 1(1) (1) (1897): 17-31.

Pestana, Luís da Câmara. “Considerações sobre o diagnóstico da difteria.” Arquivos de medicina 1 (1) (1) (1897): 1-8.

Pestana, Luís da Câmara. “A sôrotherapia na diphteria.” Arquivos de medicina 1(1): (5) (1897): 193-208; 1(1) (6) (1897): 241-259.

Pestana, Luís da Câmara e Belo de Moraes. “Sarcoma da base do craneo.” Arquivos de medicina 2 (2) (2) (1898): 67-73.

Pestana, Luís da Câmara. “Contribuição para o estudo do mechanismo da immunidade passiva.” Arquivos de medicina 2 (2) (3) (1898): 97-118.

Pestana, Luís da Câmara. “Os progressos da medicina em 1898 na Bacteriologia.” A Medicina Contemporânea Janeiro (1899):.xx-xx (inserir página inicial e final)

Bibliografia sobre o biografado

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Bettencourt, Nicolau de. “Câmara Pestana.” Arquivos da Universidade de Lisboa,  11 (1926): 211-218.

Montaldo, Federico. La peste bubónica en Oporto (Portugal) 1899-1900: hecho epidemiográficos e investigaciones clínicas recogidos personalmente y anotados por el Doctor F. Montaldo… que asistió en la epidemia, durante tres meses, como Delegado Médico del Gobierno de España: memoria oficial. Madrid: Establ. Tip. de Portanet, 1900.

Oliveira, J. Cândido de. O professor Luis da Camara Pestana e a Fundação do Instituto Bacteriológo. Lisboa: Casa da Madeira, 1972. 

Ramalhão, Carlos. Prof. Luís Câmara Pestana vítima do dever profissional. Lisboa: Emp. Tip. Casa Portuguesa, 1965.

Bocage, Carlos Roma du

Lisboa, 28 de setembro 1853 — 19 de março 1918

Palavras-chave: engenheiro, oficial do Exército, diplomata, caminhos-de-ferro.

DOI: https://doi.org/10.58277/VERH5722

Nasceu em Lisboa, na freguesia de Nossa Senhora da Conceição. Filho de José Vicente Barbosa du Bocage (Deputado e Par do Reino) e de D. Teresa Roma du Bocage. Seu pai nasceu no Funchal em 1823 e foi bacharel em Medicina por Coimbra em 1846, dedicando-se posteriormente à Zoologia e à política. Seu avô paterno, João José Barbosa du Bocage, era primo do poeta Manuel Maria. Devido às suas ideias liberais, esta família emigrou para o Brasil em 1830, voltando a Portugal em 1834.

Carlos Roma du Bocage foi um aluno acima da média e, como tal, obteve o 1º prémio pecuniário na 9ª cadeira da Escola Politécnica no ano letivo de 1870–1871. Com 18 anos assentou praça como voluntário no Regimento de Artilharia nº 1, com a arma de Engenharia. Após o curso preparatório para Engenheiro Militar na Escola Politécnica, matriculou-se na Escola do Exército em 25 de outubro de 1872, concluindo o curso três anos depois.

Realizou o seu primeiro trabalho como engenheiro na Comissão de Defesa de Lisboa e do seu porto. Os estudos que fez nesta comissão foram apresentados na Academia Real das Ciências, valendo-lhe uma medalha de prata e a eleição para sócio correspondente desta instituição. Em 1878, com o posto de Capitão, iniciou a atividade diplomática ao ser nomeado para fazer parte da Comissão de oficiais portugueses que assistiram às grandes manobras militares em França no Outono. Em 10 de abril de 1880 foi nomeado vogal da Comissão encarregada de examinar no terreno, sob o ponto de vista militar, os projetos e mais estudos para o caminho-de-ferro de Lisboa a Pombal. A partir de 10 de janeiro de 1881 pertenceu à Comissão Consultiva de Defesa do Reino e em 7 de setembro de 1881 foi o secretário da mesma.

Em 1883 foi secretário de seu pai, o Ministro da Marinha e do Ultramar do governo de Fontes Pereira de Melo. Foi nomeado membro da Comissão Cartográfica junto do Ministério da Marinha em 19 de abril de 1883 e uma semana mais tarde foi nomeado Segundo Secretário da Legação de Portugal na Corte de Berlim. Em setembro foi exonerado desse cargo e nomeado Adido Militar na Legação da dita corte. No final desse mesmo ano pertenceu à Comissão dependente do Ministério dos Negócios Estrangeiros e em 1884 pertenceu à Comissão de reorganização do exército e participou na Conferência de Berlim, na qual reocupou o seu lugar de Segundo Secretário da Legação de Portugal. 

Foi eleito deputado pelo Partido Regenerador em 1884 (círculo de Portalegre), 1890, 1892 e 1894 (círculo de Aveiro). Em todas as legislaturas encontrou-se na bancada que ocupava o poder. Apesar da 1ª legislatura ter tido início em dezembro de 1884, Carlos Roma du Bocage apenas prestou juramento em 7 de março de 1885. Pertenceu às Comissões da Guerra, dos Negocios Estrangeiros e à Comissão para tratar dos Negócios Coloniais. Foi sobretudo entre maio e julho que a sua atividade parlamentar aumentou: além da assinatura junto com outros deputados de um número reduzido de projetos de lei relacionados com assuntos militares, fez longos discursos incluídos na discussão do projeto do Tratado do Zaire, a ser discutido em Paris no final desse ano. Nestes explicou e defendeu a posição de Portugal na Conferência de Berlim e as fases que levaram a esta conferência. Falou sobretudo sobre as negociações com a Inglaterra e defendeu a posição de firmeza tomada por Portugal contra as pretensões daquela potência. Num discurso em particular, proferido no dia 10 de junho de 1885, Carlos Roma du Bocage falou sobre a necessidade de Portugal expandir o comércio na África e tomou posição contra a aliança com a Alemanha. Defendeu também a administração colonial portuguesa, afirmando que o regime português era melhor que o que a Inglaterra tinha na Índia.

Em 2 de outubro de 1885 foi nomeado Segundo Plenipotenciário de Sua Magestade (com plenos poderes) na conferência que se reuniu em Paris para discutir a questão do Território do Zaire. Ainda nesta legislatura, no ano de 1886, foi eleito para as Comissões de Instrução Superior e Especial e do Ultramar. 

Entre 1887 e 1890, durante o governo progressista de José Luciano de Castro, Carlos Roma du Bocage interrompeu a sua carreira política para ocupar o cargo de Adido Militar na Corte de Madrid, para o qual foi nomeado em 3 de fevereiro de 1887. Em 13 de fevereiro de 1890 foi promovido a Major. 

A sua segunda legislatura começou em 19 de abril de 1890 e foi imediatamente eleito para as Comissões de Guerra e de Negócios do Ultramar, sem se ter sequer apresentado no parlamento. Para ocupar o seu lugar de deputado pediu a exoneração do posto de Adido Militar em Madrid em 17 de maio de 1890, prestando juramento dois dias depois. No mês seguinte as suas intervenções parlamentares situaram-se no âmbito das Comissões a que pertencia, sobretudo no que diz respeito à discussão da parte do orçamento necessário para a defesa do território nacional. 

No final desse ano, o novo governo presidido por João Crisóstomo de Abreu e Sousa, incluiu o seu pai, José Vicente Barbosa du Bocage, como Ministro dos Negócios Estrangeiros. Em 30 de dezembro de 1890 foi de novo nomeado Plenipotenciário de Sua Magestade em Paris para as questões entre Portugal e o Estado Independente do Congo. Esta legislatura durou até 1892 e Carlos du Bocage pertenceu ainda às Comissões de Negócios Externos e Internacionais e de Guerra, tal como na legislatura seguinte, que durou apenas um ano.

Foi promovido a Tenente-Coronel por decreto de 30 de dezembro de 1893. Na sua última legislatura como deputado (1894) pertenceu às seguintes comissões: Guerra, Negócios Estrangeiros e Internacionais, Obras Públicas, Instrução Pública Superior e Especial, Instrução Superior e Especial, Comércio e Artes. Em 1897, estando em Paris no gozo de licença, recebeu ordem para assistir ao funeral do Presidente da República Francesa, Félix Faure. 

Foi comandante da Escola Prática de Engenharia, com o posto de Coronel, entre 1906 e 1908.

Foi nomeado Par do Reino por direito hereditário em 1909, tomando posse no início da legislatura em 2 de março de 1909. No seu primeiro discurso, em 30 de março de 1909, declarou-se afastado do Partido Regenerador desde que “dilectos amigos meus me fizeram enveredar num caminho com o qual eu não concordava”. Disse ainda que saira da Câmara dos Deputados em 1894 “por não querer acompanhar o partido a que pertencia numa política de que divergia (…) não tenho obrigações partidárias. Sou liberal”. Neste discurso manifestou-se contra qualquer tentativa revolucionária de impôr a República e afirmou apoiar quaisquer governantes “que me dêem garantias de ser sinceramente monárquicos e fiéis respeitadores da lei”. 

Ainda nesse ano teve uma breve passagem pelo governo de Venceslau de Lima, como Ministro dos Negócios Estrangeiros (entre 14 de maio e 22 de dezembro de 1909). Com a implantação da República, apresentou requerimento para passar à reserva e foi julgado incapaz do serviço ativo por uma junta hospitalar de inspeção. Esta sua opção vem no seguimento da posição claramente monárquica assumida no discurso citado. Terminou a carreira militar no cargo de General de Divisão Graduado do Quadro de Reserva, em 25 de outubro de 1910. Faleceu solteiro.

As suas obras incidem sobre História e Geografia e sobre assuntos militares.

Entre as condecorações e louvores que recebeu ao longo da sua carreira militar, diplomática e política destacam-se:Cavaleiro da Ordem da Legião de Honra e da Cruz de 2ª Classe de Mérito Naval de Espanha em 29 de março de 1879; Cavaleiro da Ordem de Santiago de Mérito Científico e Literário e Artístico em 7 de julho de 1883; Comendador da Ordem de Santiago em 10 de setembro de 1902; Medalha Militar de Prata da Classe de Comportamento Exemplar em 12 de abril de 1887; Cavaleiro da Ordem Militar de S. Bento de Avis em 4 de fevereiro de 1892 e Comendador da mesma ordem em 21 de março de 1894; Grande Oficial da Real Ordem da S. Bento de Avis em 28 de setembro de 1904; várias medalhas militares por bons serviços prestados.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

A Reforma do Exército. Lisboa: Typ. da Acad. Real das Sciencias, 1883.

Origem do Condado de Portugal: memoria apresentada à Academia Real das Sciencias de Lisboa, com Nicolas de Goyri. Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias, 1887).

Exposição ácerca das negociações relativas ao caminho de ferro da Beira. Lisboa: Typ. de Comp. Nac. Editora, 1900.

Baterias móveis: sua influência na fortificação. Lisboa: Typ. do Commércio, 1904.

Exposição de cartographia nacional 1903-1904: catálogo (colab.) dir. Ernesto de Vasconcellos. Lisboa: A Liberal, 1906.

A defeza maritima de Porto Arthur. Lisboa: Typ. Universal, 1906. 

Marrocos. Lisboa: Typ. Universal, 1906.

O desembarque do Duque d’Alba em 1580. Lisboa: Typ. do Commercio, 1910.

Étude préliminaire sur la prise de Ceuta par les portugais. Lisboa: Typ. Cooperativa Militar, 1912.

Subsídios para o estudo das Relações Exteriores de Portugal em seguida à Restauração Lisboa: Acad. das Sciencias de Lisboa, 1915).

Bibliografia sobre o biografado

Almeida, Maria Antónia Pires. “Bocage, Carlos Roma du (1853-1918).” In Dicionário Biográfico Parlamentar 1834-1910, ed. Maria Filomena Mónica, vol. I: 393–395. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais – Assembleia da República, 2004.

Borges, Domingos Pinheiro

Lisboa, 30 outubro 1829 – 7 dezembro 1888.

Palavras-chave: engenharia, deputado, par do reino, Ponte Luís I, porto artificial.

DOI: https://doi.org/10.58277/JEKA5506

Domingos Pinheiro Borges nasceu na freguesia de Santa Maria Madalena, filho de João Pinheiro Borges e Ana Avelina Duarte Pinheiro. Casou com Florinda Amélia Clementina Pereira em 14 de fevereiro de 1859; o casal não teve filhos.

Com 18 anos, alistou-se como soldado voluntário; assentou praça em 6 de outubro de 1848 no Regimento de Granadeiros da Rainha e dias depois iniciou os seus estudos preparatórios para o curso de Engenharia Militar, o qual completou em 1853. Desde cedo demonstrou apetência pela atividade constante: trabalhou em projetos de engenharia durante as férias escolares e ao longo de toda a sua atividade profissional e política acumulou funções em várias comissões, direções-gerais, departamentos do Ministério da Guerra e outros. Nos relatórios anuais dos seus chefes militares, repetem-se os adjetivos robusto e ágil, assim como as expressões muito zelo, muita inteligência, e muita atividade.

Entre 1854 e 1862 trabalhou como engenheiro no Ministério das Obras Públicas. No seguimento da sua carreira militar, foi promovido a tenente no início de 1865 e em maio passou a capitão. Ainda nesse ano pertenceu à Comissão de Defesa de Lisboa e seu Porto e mais tarde foi sub-chefe da quarta repartição do Ministério da Guerra.

Foi eleito deputado pelo círculo uninominal de Évora em 1870, 1871 e 1879. Na primeira vez foi eleito pelo Partido Reformista, o que o colocou do mesmo lado do governo (de coligação) durante a legislatura de 1870–1871. Nas eleições de 1871, com a vitória do Partido Regenerador, Domingos Pinheiro Borges, passou para a bancada da oposição. Apesar de sempre ter morado em Lisboa e acumular a sua carreira política com o trabalho de chefe da quarta secção da Direção Geral de Engenharia (desde 1871) e com alguns serviços extraordinários no Ministério de Guerra, não deixou de representar o seu círculo, apresentando na Câmara dos Deputados constantes requerimentos e representações dos seus eleitores e de militares. 

Domingos Pinheiro Borges foi um deputado com uma atividade acima da média: faltou muito poucas vezes e todas por comissões de serviço; era sempre dos primeiros a chegar à câmara e respondia à primeira chamada, incluíndo nas sessões de sábado; fez um total de 327 intervenções, praticamente em todas as sessões e nalgumas por mais de duas vezes. Nos seus longos discursos nota-se claramente um gosto pela erudição e pela dialética, chegando ao cúmulo de várias vezes corrigir em público as gralhas que o redator do Diário da Câmara dos Deputados deixara passar. 

As suas intervenções parlamentares tocaram os mais variados temas, desde assuntos militares e de obras públicas, a repetidas interpelações ao ministro da Guerra. Demonstrou sempre profundo conhecimento da legislação respeitante aos diversos projetos de lei que apresentou e em cuja discussão participou. Discursou, entre outros, sobre telégrafos e a colocação das respetivas linhas, sobre a possibilidade da construção de uma ponte sobre o Tejo, sobre problemas do seu círculo eleitoral (por exemplo o tema dos fossos que circundam a muralha e que pertenciam ao Ministério da Guerra), sobre o Monte Pio Militar, sobre a remissão de foros, sobre ostricultura (após uma viagem de trabalho ao Algarve), sobre contabilidade e finanças públicas, deficits, receitas e despesas. Em vários discursos em que expôs a sua opinião respeitante a indústrias que não se desenvolveram, este militar pretendeu denunciar o peso das influências locais, sublinhando que existia um “deficit de moralidade muito maior, na minha opinião, do que o deficit do tesouro”. Este tipo de comentário é muito caraterístico dos seus discursos, nos quais encontramos uma autêntica “Campanha de Moralidade” nos serviços públicos e nos cargos políticos; aliás, no final foi sempre muito cumprimentado pelos colegas.

Na legislatura de 1871–1874 pertenceu à Comissão de Guerra. Na sua qualidade de membro da oposição, passou a intervir de forma mais acintosa, com repetidas interpelações aos ministros (às quais ele chama “recomendações implícitas”) e com a denúncia de situações de “deficit da moralidade”. Acabou mesmo por declarar a sua intenção de “em toda e qualquer votação em que descubra intenção política, hei-de votar contra o governo.” Assinou, junto com outros deputados, um projeto de lei sobre um tema sempre atual, ao qual chamaram os “raptos parlamentares”, expressão usada para designar os empregos lucrativos que alguns deputados obtinham durante a legislatura. A proposta consistiu em proibi-los até seis meses depois do fim das respetivas legislaturas, excetuando os empregos conseguidos através de concursos públicos.

Durante o ano de 1872, grande parte dos trabalhos parlamentares foi ocupada com a discussão do projeto de lei da reforma judicial, o qual incluía a criação de novas comarcas. Domingos Pinheiro Borges discursou repetidas vezes sobre o tema e a sua proposta de melhorar as vias de comunicação para manter a anterior divisão das comarcas foi aprovada. No final desta legislatura multiplicou as manifestações contra o Governo. O desalento que sentiu manteve-o afastado da política durante cinco anos. Neste intervalo foi promovido a major (em 5 de janeiro de 1876) e nesse mesmo ano foi membro do júri dos exames de habilitação dos alunos do curso de Artilharia.

Na legislatura de 1880–1881 encontrou-se na bancada do Partido Progressista (que resultara da fusão entre o Partido Reformista e o Partido Histórico em 1876), que apoiava o Governo. Pertenceu às Comissões de Obras Públicas, de Orçamentos e da Guerra. Neste período participou, na sua qualidade de engenheiro, num projeto de lei para a construção de um porto artificial na ilha das Flores e noutro para a construção de uma ponte metálica sobre o rio Douro (5 de abril de 1880). O resultado foi a Ponte Luís I, cuja construção foi iniciada em 1881 e cujos planos já tinham sido discutidos por Domingos Pinheiro Borges no Parlamento em 1872. Em 7 de junho de 1880 foi nomeado para a Comissão de Inquérito à Secretaria das Obras Públicas e logo no dia seguinte foi promovido a tenente-coronel. 

Em 30 de março de 1887, foi eleito Par do Reino, também pelo distrito de Évora. Tomou posse do cargo em 20 de abril e pertenceu às Comissões de Obras Públicas e de Defesa do Reino. As suas intervenções nesta câmara mostraram-se mais modestas, mas igualmente palavrosas e abordaram temas respeitantes à defesa do território nacional, sobretudo no que dizia respeito a obras públicas e caminhos de ferro (concessões das linhas Lisboa-Cascais, Santarém-Vendas Novas e litoral algarvio).

Em 1888, foi nomeado chefe do Estado Maior da Arma de Engenharia. Faleceu no posto de coronel, que possuia desde 31 de março de 1886. Em 40 anos de serviço militar recebeu, entre outras, as seguintes condecorações e louvores: louvores publicados nas Ordens do Exército e Boletins Oficiais; prémio honorífico da Escola Politécnica (1868), Medalha de Ouro de Bons Serviços, Medalha de Prata de Comportamento Exemplar e de Generosidade; Cavaleiro da Ordem de Avis em 1868 e Comendador da mesma em 1877; Comendador da Ordem de Cristo por decreto de 1877; Comendador da Ordem de São Maurício e São Lázaro de Itália em 1884.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

Borges, Domingos Pinheiro. Estudo sobre a estabilidade financeira dos montepios. Lisboa: Imprensa Nacional, 1883.

Bibliografia sobre o biografado

Almeida, Maria Antónia Pires. “Borges, Domingos Pinheiro (1829–1888).” In Dicionário Biográfico Parlamentar 1834–1910, ed. Maria Filomena Mónica, vol. 1, 402–405. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais e Assembleia da República, 2005-2006.

Correia, Fernando da Silva

Sabugal, 20 maio 1893 – Lisboa, 19 dezembro 1966

Palavras-chave: medicina, higienismo, ensino, termalismo.

DOI: https://doi.org/10.58277/LULJ1669

Fernando da Silva Correia foi filho de Joaquim Manuel Correia (1858–1945), advogado e autor das obras Memórias sobre o concelho do Sabugal: terras de Riba-Côa e Celestina: episódios da última guerrilha carlo-miguelista

Licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1917, tirou em Lisboa as especialidades de Medicina Sanitária em 1920 e de Hidrologia em 1921. O curso de Medicina Sanitária, ministrado no Instituto Central de Higiene, fornecia a habilitação necessária para o exercício do cargo de delegado de saúde, cujas funções, a nível distrital, incluíam a direção técnica dos serviços sanitários, o licenciamento dos estabelecimentos, a fiscalização da higiene industrial e do trabalho operário ou agrícola, a higiene infantil e as condições sanitárias da população em geral.

Fernando da Silva Correia estabeleceu prática clínica nas Caldas da Rainha em 1919 e em 1921 assumiu os cargos de médico municipal e delegado de saúde. Em 1934, foi nomeado inspetor da Terceira Área da Saúde Escolar para os distritos de Castelo Branco, Guarda, Setúbal, Portalegre, Évora, Beja e Faro e iniciou a sua carreira docente como professor de Administração Sanitária, Estatística Sanitária, Higiene Social e Assistência Social e Demográfica no Instituto Central de Higiene Dr. Ricardo Jorge (novo nome atribuido em 1929 em homenagem ao seu fundador), do qual foi diretor de 1946 a 1961. Entre 1935 e 1957 foi também docente no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, leccionando Profilaxia das Doenças Venéreas, Legislação Sanitária e História da Assistência. 

A sua vasta obra científica, com mais de uma centena de títulos de livros e artigos publicados em revistas como a Clínica, Higiene e Hidrologia (publicada entre 1935 e 1957, dirigida por Armando Narciso e especializada em higiene e termalismo), entre outras, incidiu sobre os temas da higiene e da saúde pública, abrangendo com especial preocupação as questões ligadas à infância, à higiene escolar e à necessidade da educação física e do desporto, ao mesmo tempo que denunciou os exageros dos desportos mais violentos. Os conceitos de medicina social, serviço social e assistência também foram amplamente debatidos na sua obra que teve uma clara intenção pedagógica. O seu trabalho mais significativo foi sem dúvida Portugal Sanitário, publicado em 1938, no qual colocou em evidência os “15 anos de experiências sanitárias e médico-sociais, acompanhadas do estudo do que se fazia no resto do País e no estrangeiro” e desenvolveu a história da higiene, da epidemiologia e da política sanitária em Portugal, salientando os seus aspetos mais importantes, como a endemiologia e a epidemiologia. Salientou ainda os principais procedimentos de profilaxia (imunização e salubridade); defendeu a frequência da praia como medicina preventiva, tratamento da tuberculose e robustecimento do organismo pela natação e remo; e apresentou a tuberculose, a sífilis e o alcoolismo como flagelos sociais, especialmente esta última, que descreveu como sendo uma patologia hereditária que constituia uma “arma de enfraquecimento da raça”, um discurso que se insere nas teorias eugenistas correntes na sua época. Concluiu com a descrição das principais necessidades país em termos de obras de saneamento e resolução de “erros sanitários”. 

Após uma incursão de juventude pelo teatro, com a públicação, nos seus tempos de estudante, da peça A Máscara, publicada em 1914, Silva Correia também se aventurou pela literatura, publicando em 1933 a obra Vida errada: o romance de Coimbra. No entanto, é na história e na biografia, especialmente nos temas ligados à saúde, que mais de metade dos seus títulos se insere. Desenvolveu repetidamente temas ligados à história do termalismo, à história da medicina, com especial interesse sobre a história clínica e o diagnóstico das causas de morte das personagens mais marcantes da família real desde a época medieval, as únicas a cujas fontes ele teria acesso. Também a história das misericórdias o ocupou bastante. Nas biografias o destaque foi para médicos e professores de medicina, apreciando especialmente Ricardo Jorge e Maximiano de Lemos.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

Correia, Fernando da Silva. Profilaxia das febres tifoides e paratifoides A. e B. pela vacinação. Coimbra: Casa Tipográfica, 1919. 

Correia, Fernando da Silva. Guia prático das águas minero-medicinais portuguesas. Coimbra: Livr. Ed. Moura Marques & Filho, 1922. 

Correia, Fernando da Silva. Doenças sociais e higiene. Caldas da Rainha: Dispensário de Profilaxia Social, 1932. 

Correia, Fernando da Silva. A educação física e a medicina em Portugal. Lisboa: s. n., 1935. 

Correia, Fernando da Silva. Esbôço da história da higiene em Portugal. S. l.: s. n., 1937. 

Portugal Sanitário (Subsídios para o seu estudo). Lisboa: Ministério do Interior – Direção Geral de Saúde Pública, 1938.

Correia, Fernando da Silva. Alguns aspectos do problema do alcoolismo em Portugal. S. l.: s. n., 1938. 

Correia, Fernando da Silva. Higiene rural: cartas abertas a um jovem médico / Velho Galeno. Coimbra: Federação dos Grémios da Lavoura da Província da Beira Litoral, 1942.

Correia, Fernando da Silva. “Portugal, pioneiro da assistência termal.”  Clínica, Higiene e Hidrologia 23 (1957): xx-xx[1] . 

Correia, Fernando da Silva. O conceito de medicina social. Coimbra: s. n., 1958. 

Bibliografia sobre o biografado

“Fernando da Silva Correia”. In Infopédia. Online. Disponível em: www.infopedia.pt/$fernando-da-silva-correia. Consultado em 5 de julho de 2022.

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Graça, Luís. 2000. História da Saúde no Trabalho. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa.

Jorge, Ricardo de Almeida

Porto, 9 maio 1858 – Lisboa, 29 julho 1939

Palavras-chave: médico, professor, higienismo, epidemias.

DOI: https://doi.org/10.58277/UPWO8673

Filho de um ferreiro na Rua do Almada, Ricardo Jorge entrou aos oito anos para o Colégio da Lapa, onde foi aluno de Ramalho Ortigão na disciplina de francês, e de Manuel Rodrigues da Silva Pinto, em português. Frequentou o Liceu de Santa Catarina e tornou-se amigo de Júlio de Matos. Com desasseis anos matriculou-se no curso de medicina da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Foi aluno entre 1874 e 1879 e conquistou vários prémios académicos. A sua dissertação de licenciatura intitulou-se Um ensaio sobre o nervosismo. Em 1880 competiu pelo lugar de substituto da secção cirúrgica da mesma Escola com a apresentação do trabalho Localizações Motrizes no Cérebro. Depois de aprovado iniciou a sua carreira de professor na escola onde se formou, leccionando as cadeiras de anatomia, histologia e fisiologia experimental, ao mesmo tempo que se dedicava à prática clínica. Desenvolveu também estudos sobre o diagnóstico e tratamento das doenças do sistema nervoso pela hidroterapia, eletricidade e ginástica, os quais colocou em prática, ao fundar, em colaboração com Augusto Henrique de Almeida Brandão, o Instituto Hidroterápico e Eletroterápico, nas dependências do Grande Hotel do Porto, em 1881.

Ao longo da sua carreira participou em vários congressos internacionais e realizou viagens de estudo ao estrangeiro, que designava, “as suas digressões sanitárias”. Em 1883 deslocou-se a Estrasburgo, onde visitou os laboratórios de anatomia patológica de Recklinghausen e Waldeyer, e depois a Paris, onde conheceu o neurologista Charcot e assistiu às suas lições. De volta ao Porto, leccionou a cadeira de Anatomia dos Centros Nervosos e criou o o Laboratório de Microscopia e Fisiologia do Porto. 

Casou com Leonor Maria dos Santos e teve dois filhos: Artur Ricardo Jorge, nascido em 1886, médico e professor de Botânica e Zoologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Ministro da Instrução em 1926; e Ricardo Jorge Júnior, nascido 1888, casado com Maria Isabel Ortigão Ramos, com dois filhos.

Na sequência das polémicas levantadas com a instalação dos cemitérios no Porto, em 1884, Ricardo Jorge promoveu quatro conferências dedicadas aos temas da “Higiene em Portugal”, “A Evolução das Sepulturas”, “Inumação e Cemitérios” e “Cremação”, com as quais demonstrou que os cemitérios não colocavam em risco a saúde pública. Estas conferências foram publicadas no livro Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa, amplamente divulgado, e no qual o seu autor concluiu, depois de estudar as condições de sanidade locais, que era absolutamente necessária a intervenção do Estado para a criação de um sistema de saneamento. O rigor do seu estudo e o nível das propostas apresentadas fizeram de Ricardo Jorge um dos mais prestigiados higienistas portugueses, com larga influência nas políticas de saúde em Portugal.

A sua vasta obra, que abrange toda a sua carreira e tem até algumas publicações póstumas, demonstra a variedade dos interesses de Ricardo Jorge. Incidindo maioritariamente sobre as especialidades da Higiene e Epidemiologia, e também sobre Medicina Geral, a lista de mais de sessenta títulos inclui mais de uma dezena de obras literárias e outro tanto de História, além de biografias de figuras ilustres da medicina e mesmo das artes e da literatura. Escreveu ainda sobre Demografia, sobre as termas do Gerês e colaborou regularmente nas revistas Clínica, higiene e hidrologia, dirigida por Armando Narciso (1935-1957), Revista Científica, dirigida por Teófilo Braga e Júlio de Matos (1882-1982), A Medicina Contemporânea (1882-1974), Lisboa Médica, entre outras. Publicou também  no estrangeiro e em várias revistas internacionais, como o Bulletin Mensuel de l’Office International d’Hygiène Publique.

Ricardo Jorge interessou-se pelo termalismo e hidrologia. Em 1886, o químico Adolfo de Sousa Reis pediu-lhe para comentar a sua análise às águas das Caldas do Gerês. A sua apreciação foi tão favorável que Ricardo Jorge decidiu, junto com o seu colega Marcelino Dias, o referido químico Sousa Reis e o capitalista Manuel Joaquim Gomes, pedir a concessão destas termas. Em 1888 o Governo adjudicou-lhes o contrato de exploração por cinquenta anos. Ricardo Jorge exerceu o cargo de diretor clínico da Companhia das Caldas do Gerês entre 1889 e 1892, mas a companhia abriu falência em 1893. 

Pouco depois das conferências sobre higiene, Ricardo Jorge foi convidado pela Câmara Municipal do Porto para tomar parte de uma comissão de estudo sobre as condições sanitárias da cidade, no âmbito da qual produziu um inquérito sobre as condições de salubridade urbana. O respetivo relatório final, intitulado Saneamento do Porto, foi publicado em 1888. Em 1891 foi nomeado médico municipal do Porto, cargo que desempenhou até 1899. No ano seguinte foi convidado também pela Câmara Municipal para os cargos de Diretor dos Serviços Municipais de Saúde e Higiene da Cidade do Porto e do Laboratório Municipal de Bacteriologia. No âmbito destas atividades publicou a série do respetivo Anuário do serviço municipal de saúde e higiene da cidade do Porto e um Boletim Mensal de Estatística Sanitária do Porto.

Em 1895 foi nomeado professor titular da cadeira de Higiene e Medicina Legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto.

Em 1899 publicou uma das obras fundamentais para a compreensão dos problemas sanitários da cidade: Demografia e Higiene da Cidade do Porto: clima, população, mortalidade. Nesta, o autor descreveu a história da cidade e aprofundou a questão das ilhas como causa para a proliferação de doenças e epidemias, com especial destaque para a tuberculose. O levantamento das condições de vida e higiene das populações que residiam nestes bairros levaram-no a apelidar o Porto de “cidade cemiterial”, devido às péssimas condições sanitárias que ele encontrou. Este seu trabalho, juntamente com os de Arantes Pereira e do Conde de Samodães, provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, ajudaram a influenciar a Rainha D. Amélia na criação, nesse mesmo ano, da Assistência Nacional aos Tuberculosos e à construção de sanatórios para os doentes.

Em junho de 1899 manifestaram-se vários casos de peste bubónica no Porto, diagnosticados por si, enquanto  médico municipal e diretor do posto de desinfeção pública do Porto. Foram encomendados ao Instituto Pasteur de Paris duzentos tubos do soro Yersin, que tinha sido desenvolvido por Alexandre Emile Jean Yersin, um médico Suiço que tinha isolado o bacilo da peste bubónica em 1894, em conjunto com Kitasato Shibasaburō, após investigação sobre esta doença na China. Durante a epidemia de peste em Macau em 1898, o soro já fora testado. No entanto, a sua eficácia dependia da rapidez da aplicação, logo nos primeiros dias da doença, e funcionava melhor ainda como preventivo, como foi usado pelos médicos franceses que se deslocaram ao Porto para estudar a evolução da epidemia: Albert Calmette, delegado do Instituto Pasteur de Paris, e  Alessandro Salimbeni, preparador ajudante  de Émile Roux.

Apesar da confiança dos médicos franceses neste soro, Ricardo Jorge conhecia bem as condições em que a doença se desenvolvia e os grupos mais afetados: “as classes trabalhadoras, miseráveis e mais imundas, ou nos seus hábitos ou na casa em que residem”. Por esse motivo, foram imediatamente impostas medidas sanitárias rigorosas obrigando à higiene pessoal (com a construção de balneários públicos) e para o combate aos agentes transmissores da doença: os ratos e as pulgas. Ao mesmo tempo criou-se um cordão sanitário à volta do Porto, defendido pelo exército, suprimiram-se todos os comboios de recreio, todas as feiras, romarias e outros ajuntamentos, e obrigou-se a inspeção médica todos os passageiros e funcionários dos comboios, que tinham de cumprir uma quarentena de nove dias. 

O Porto sempre reagiu contra as medidas restritivas impostas pelo poder central. Em todos os surtos epidémicos, o isolamento da cidade e as proibições de feiras e mercados foram contestados pelos comerciantes, pelos industriais e pela população como extremamente prejudiciais e que colocava em causa a sobrevivência não só do comércio, mas das próprias pessoas. Assim, a posição oficial das elites do Porto sempre foi de negação do contágio. De facto, com as medidas radicais postas em prática por Ricardo Jorge logo nos primeiros dias do surto de peste bubónica, a doença não se espalhou e teve uma mortalidade reduzida, o que contribuiu para as afirmações locais de que não se tratava de uma epidemia. 

No entanto, os banhos obrigatórios, as casas e roupas queimadas quando os médicos e os subdelegados de saúde realizavam visitas domiciliárias, acompanhados pela polícia, e encontrava um doente de peste, e o isolamento forçados dos doentes e de todos os seus familiares e vizinhos em hospitais especiais, todas estas ações eram motivo de grande revolta popular, que provocaram cenas de autêntica guerra civil, com bombas a rebentar onde? e casas de médicos destruídas. Ricardo Jorge foi obrigado a ter proteção policial e chegou a sofrer ataques na sua casa. Nesse período Jorge recebeu a solidariedade dos médicos do Porto pelas circunstâncias difíceis que estava a atravessar no cumprimento das suas obrigações. As medidas sanitárias foram reforçadas e o cordão alargado, o que conduziu à demissão do presidente da Câmara Municipal do Porto, Lima Júnior, por considerar que as determinações impostas pela Junta Consultiva da Saúde Pública provarem que existia má vontade contra a cidade.

Ricardo Jorge ainda se manteve no seu posto mais de um mês, até queapresentou a sua demissão e mudou-se para Lisboa em 15 de outubro de 1899. Câmara Pestana ainda continuou no Porto a estudar a peste bubónica e acabou por ser infetado e morrer no dia 15 de novembro desse ano. Mas o combate contra a disseminação da epidemia estava ganho e a doença foi considerada extinta em janeiro de 1900. 

Em Lisboa, Ricardo Jorge foi nomeado inspetor-geral dos Serviços Sanitários do Reino e lente de higiene na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, além de membro do Conselho Superior de Higiene e Saúde. Começou a trabalhar na organização geral dos Serviços de Saúde Pública (Decreto de 28 de dezembro de 1899, sob o Governo de José Luciano de Castro) e no Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública, de 24 de dezembro de 1901, sob o Governo de Hintze Ribeiro. 

O seu trabalho como docente, investigador e mentor da nova legislação deu origem a uma profunda reforma na saúde pública em Portugal, inspirada no modelo inglês, e à criação da Direção-Geral de Saúde e Beneficência Pública (Decreto de 9 de outubro de 1899) e do Instituto Central de Higiene, que iria desempenhar um importante papel na educação, formação e investigação em saúde pública. Em 1929, pelo Decreto nº 16861, de 11 de maio, assinado pelo presidente Carmona e pelo Ministro da Instrução Pública Cordeiro Ramos, ao Instituto Central de Higiene é dado o nome do Dr. Ricardo Jorge, que o tinha dirigido entre 1902 e 1926. Neste instituto se ministravamos cursos de Medicina Sanitária e Engenharia Sanitária, os quais forneciam a habilitação necessária para o exercício dos médicos e engenheiros do corpo de saúde pública. O primeiro habilitava para o cargo de delegado de saúde, cujas funções, a nível distrital, incluíam a direção técnica dos serviços sanitários, o licenciamento dos estabelecimentos, a fiscalização da higiene industrial e do trabalho operário ou agrícola, a higiene infantil e as condições sanitárias da população em geral.

As suas preocupações sanitárias levaram-no também ao estudo sistemático sobre a epidemiologia da malária em Portugal, uma doença que assolava as populações há vários séculos, especialmente nas zonas ligadas à cultura do arroz. O resultado do seu estudo originou a publicação do relatório Epidemiologia. Sobre o estudo e o combate do sezonismo em Portugal, em 1903, a criação de estações anti-sezonáticas a partir de  1911, e inspirou vários outros estudos desenvolvidos nas décadas seguintes no sentido da erradicação da doença.

Ricardo Jorge participou no Congresso Internacional de Medicina de 1906, no qual presidiu à Secção de Higiene e Epidemiologia. Colaborou também na reforma do ensino médico de 1911, e em 1912 iniciou os seus trabalhos no Office Internacional ded’Hygiène Publique , em Paris. Foi responsável pela publicação dos Arquivos do Instituto Cental de Higiene (1913-1938) e das Estatística do movimento fisiológico da população de Portugal, publicadas anualmente pela secção de demografia e estatística do mesmo instituto entre 1914 e 1925. Pertenceu ao primeiro Ministério da Instrução Pública em 1913, fazendo parte do Conselho de Instrução Pública do governo de Afonso Costa, que durou de 9 de janeiro de 1913 a 9 de fevereiro de 1914. Entre 1914 e 1915 presidiu à Sociedade das Ciências Médicas. Nos anos seguintes visitou formações sanitárias no teatro de guerra, em França. 

Em dezembro de 1917 declarou-se uma epidemia de tifo exantemático no Porto. na qualidade de Diretor-Geral da Saúde deslocou-se a essa cidade para estudar o problema e colocar em prática as primeiras medidas sanitárias., logo em janeiro de 1918,  Como resultado do seu inquérito local, elaborou um relatório que foi apresentado no Conselho Superior de Higiene. O seu plano sanitário foi colocado em prática por  Augusto de Almeida Monjardino, nomeado comissário do governo na cidade do Porto para combate à epidemia, no dia 23 de fevereiro de 1918, e depois por António de Almeida Garrett, que o sucedeu no cargo.  e desde 18 de maio de 1918 dirigiu o combate à epidemia de tifo exantemático que se prolongou até março do ano seguinte. Em simultâneo o comissário do governo teve de lidar com a epidemia de gripe pneumónica que, desde agosto desse ano, e com maior intensidade em outubro, provocou em Portugal um número elevados de mortos. 

Se as medidas sanitárias tomadas para evitar a propagação do tifo exantemático foram muito semelhantes às da peste bubónica de 1899, pelo contrário, no contexto da gripe, a sua propagação pelo ar tornou desnecessárias medidas restritivas à circulação de pessoas. Aconselhou-se apenas evitar a permanência em lugares fechados onde houvesse grandes aglomerações, arejamento das habitações e lugares de trabalho, o uso de preparações desinfetantes das vias nasais e garganta, e tornou-se obrigatória a declaração por escrito de todos os casos. Mais tarde as feiras e mercados foram proibidos e as escolas só iniciaram o ano letivo no final do ano. Em simultâneo, entre junho e dezembro de 1918 verificou-se uma epidemia de varíola que obrigou à vacinação em todo o país.

estanho decurso desta crise sanitária, Ricardo Jorge não esqueceu o lado social da questão, preocupando-se em angariar donativos para as vítimas da gripe e seus familiares, uma função que era tradicionalmente exercida pelos particulares e só muito mais tarde, já nos finais do Estado Novo, passou a ser assumida.

Na sequência destas epidemias, Ricardo Jorge participou em conferências internacionais, como a da Comissão Sanitária dos Países Aliados, que se realizou em Paris em abril de 1918, e também, no ano seguinte em março, apresentou à mesma comissão um relatório sobre a gripe; em outubro de 1919 apresentou uma comunicação ao Comité Internacional de Higiene Pública sobre o tifo exantemático no Porto, na qual reafirmou que o piolho, agente responsável pela transmissão da doença, era ainda muito frequente nas classes mais pobres, também as mais afetadas.

Em 1926 Ricardo Jorge foi incumbido de reformar o seu regulamento de saúde pública de 1901. Igualmente, na sua qualidade de diretor-geral da Saúde, foi o responsável, em 1927, pela proibição da Coca-Cola, depois de tomar conhecimento do slogan publicitário da bebida criada por Fernando Pessoa: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Só no dia 4 de julho de 1977a Coca-Cola voltou a entrar oficialmente em Portugal.

Em 1929 foi nomeado presidente do conselho técnico superior de higiene, da Organização de Saúde, da Sociedade das Nações. Nesse mesmo ano viajou até ao Brasil como representante do Office International d’Hygiène Publique para participar nos festejos do centenário da Academia Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, e para colaborar com o Instituto Oswaldo Cruz no combate à epidemia de febre-amarela que grassava  nessa cidade. 

Mesmo nos últimos anos da sua vida continuava a investigar e a publicar. Participou pela última vez numa reunião do Office Internacional d’Hygiène Publique três meses antes de falecer.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Arquivo

Lisboa, Instituto Ricardo Jorge, Biblioteca Digital, Bibliografia Ricardiana.

Obras 

Jorge, Ricardo. Hygiene social applicada à Nação Portuguesa: conferências feitas no Porto. Porto: Civilização, 1885. 

Jorge, Ricardo. Saneamento do Porto: relatório apresentado à Commissão Municipal de Saneamento. Porto: Typ. de António José da Silva Teixeira, 1888. 

Jorge, Ricardo. O Gerez thermal: historia, hydrologia, medicina. Porto: Typ. Occidental, 1888. 

Jorge, Ricardo. Demographia e hygiene da cidade do Porto: clima-população-mortalidade, Separata do Anuário do serviço municipal de saúde e higiene da cidade do Porto. Porto: Repartição de Saúde e Hygiene da Câmara, 1899. 

Jorge, Ricardo. A peste bubónica no Porto, 1899. Seu descobrimento. Primeiros trabalhos, Separata do Anuário do serviço municipal de saúde e higiene da cidade do Porto. Porto: Repartição de Saúde e Hygiene da Câmara, 1899. 

Jorge, Ricardo. La malaria au Portugal: Premiers résultats d’une enquête. Lisboa: Inspeção Geral dos Serv. Sanitários, 1906. 

Jorge, Ricardo. Tifo exantemático ou tabardilho: relatórios apresentados ao Conselho Superior de Higiene (1918).

Jorge, Ricardo. La grippe: rapport préliminaire présenté à la commission sanitaire des pays alliés dans sa session de mars 1919. Lisboa: Imp. National, 1919. 

Jorge, Ricardo. Alastrim et variole: vaccine, encéphalites postvaccinales. Lisboa: Instituto Central de Higiene, 1927. 

Jorge, Ricardo. La fièvre jaune et la campagne sanitaire a Rio de Janeiro: 1928-1929 (1930).

Bibliografia sobre o biografado

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Amaral, Isabel, Ana Carneiro, Teresa Salomé Mota, Victor Machado Borges, José Luís Doria (coords.). Percursos da Saúde Pública nos séculos XIX e XX – a propósito de Ricardo Jorge. Lisboa: CELOM – Centro Editor Livreiro da Ordem dos Médicos, 2010.

Coelho, Eduardo. Ricardo Jorge, o médico e o humanista (Lisboa: Livr. Luso-Espanhola Lda, 1961).

Correia, Fernando da Silva (compil., anot. e pref.). A vida, a obra, o estilo, as lições e o prestígio de Ricardo Jorge. Lisboa: Inst. Superior de Higiene Dr. Ricardo Jorge, 1960. 

Sobral, José Manuel, Maria Luísa Lima, Paula Castro e Paulo Silveira e Sousa (orgs.). A Pandemia Esquecida. Olhares comparados sobre a Pneumónica 1918-1919. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009.

Martins, José Tomás de Sousa

Alhandra, 7 março 1843 – 18 agosto 1897

Palavras-chave: médico, sanatório, professor.

DOI: https://doi.org/10.58277/QWUX5682

Filho de Caetano Martins, carpinteiro, e de Maria das Dores de Sousa Pereira. Completou o ensino primário em Alhandra. O pai faleceu quando ele tinha sete anos. Com doze foi para Lisboa, para casa do seu tio materno, Lázaro Joaquim de Sousa Pereira, farmacêutico e proprietário da Farmácia Ultramarina, na Rua de São Paulo. 

Desde 1 de abril de 1856 foi praticante na farmácia do seu tio, ao mesmo tempo que frequentava o Liceu Nacional de Lisboa, na área de Humanidades. Matriculou-se então na Escola Politécnica de Lisboa, onde completou em 1861 os estudos preparatórios em Ciências Naturais com excelente aproveitamento, como o comprovam os prémios pecuniários que recebeu nas cadeiras que frequentou. Ingressou nesse ano no curso de Medicina da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. A prática de oito anos de Farmácia e o facto de ter completado os 21 anos de idade permitiram-lhe propor-se a exame na mesma Escola e no dia 11 de julho de 1864 foi aprovado e ficou habilitado como Farmacêutico. Dois dias depois foi eleito sócio efetivo da Sociedade Farmacêutica Lusitana, por proposta de José Tedeschi, assumindo em pouco tempo um papel relevante na vida da instituição, e elaborando ao longo da década seguinte múltiplos relatórios e pareceres. 

Publicou vários artigos no periódico Jornal da Sociedade Farmacêutica, órgão oficial daquela associação. Foi durante mais de uma década vogal da Comissão de Saúde Pública da Sociedade, tendo um papel relevante na regulação de diversas práticas farmacêuticas importantes na área da saúde pública. 

No dia 16 de julho de 1866 concluiu o curso de Medicina e Cirurgia com a dissertação intitulada O Pneumogástrico Preside à Tonicidade da Fibra Muscular do Coração, iniciando uma carreira ligada ao ensino e investigação sobre a vertente clínica da medicina.

Em 1867 tornou-se sócio correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa e foi eleito membro efetivo da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, da qual foi vice-presidente em 1875, vogal da Comissão de Higiene em 1890 e presidente em 1897. Em 6 de agosto de 1868 realizou prova de concurso público para demonstrador da Secção Médica da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, com a dissertação A Patogenia Vista à Luz dos Actos Reflexos, sendo nomeado para o respetivo lugar por decreto de 27 do mesmo mês, e depois promovido a lente substituto por decreto de 9 de fevereiro de 1872. 

Em 22 de outubro de 1874 foi nomeado, por concurso, médico extraordinário do Hospital de São José, onde a sua atividade, e em particular a importante ação filantrópica que exercia a favor dos doentes mais pobres, afirmou-o como um dos médicos mais prestigiados de Portugal. 

A 25 de julho de 1883 foi promovido a médico ordinário do banco do mesmo hospital, lugar que ocupou a partir de 1885. No dia 20 de outubro de 1884 assumiu a direção da enfermaria de S. Miguel, do Hospital de S. José, lugar para o qual foi nomeado oficialmente por decreto de 17 de setembro de 1885. 

Como médico e professor, dava grande importância à componente psicológica e de relação humana na sua ação médica, além de praticar atos de caridade que foram reconhecidos no seu tempo e permanecem até ao presente como uma das componentes mais destacadas da sua personalidade. Estas suas caraterísticas, a que se soma o facto de ter sido adepto do espiritismo, tão em voga na sua época, criaram uma associação entre Sousa Martins e algumas curas milagrosas que se realizaram em seu nome após a sua morte. O médico humanitário assumiu assim contornos de santo laico, num culto que se mantém até ao presente, bem visível nas flores e ex-votos colocados por milhares de pessoas em torno da sua estátua no Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa (inaugurada em 1901), e no cemitério de Alhandra, onde está sepultado, especialmente nos aniversários do seu nascimento e morte. 

Sousa Martins realizou trabalhos de especial importância na luta contra a tuberculose, que então atingia proporções epidémicas em Lisboa e no Porto, e no estudo da prevenção e tratamento dos surtos epidémicos. Por esse motivo foi nomeado, por decreto de 23 de maio de 1872, secretário e relator da comissão revisora do regulamento quarentenário de 1860. 

Em 1874 foi nomeado delegado à Conferência Sanitária Internacional realizada em Viena. Estas conferências, iniciadas em Paris em 1851 e repetidas em Constantinopla em 1866, Viena em 1874, Washington em 1881, Roma em 1885, Veneza em 1892, Dresden em 1893 e de novo em Veneza em 1897, tinham a participação dos melhores especialistas da época em medicina e saúde pública, e visavam a discussão científica sobre as epidemias que assolaram o mundo ao longo de todo o século XIX.

A 4 de agosto de 1874 foi elevado à categoria de membro benemérito da Sociedade Farmacêutica Lusitana, à qual pertencia desde 1864, com fundamento na maneira brilhante como desempenhou o cargo de representante de Portugal na Conferência de Viena. 

Esta sua especialidade habilitou-o a ser nomeado secretário da comissão encarregada de propor os melhoramentos necessários no Lazareto de Lisboa, por portaria de 16 de setembro de 1875, e em 1881 fez parte da comissão sanitária encarregada de propor ao governo as medidas a tomar no caso da invasão de cólera em Lisboa. Foi ainda secretário e relator da comissão nomeada por decreto de 15 de novembro de 1871 para redigir a Farmacopeia Portuguesa, publicada em 1876.

O seu percurso académico e profissional incluiu o cargo de secretário e bibliotecário da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa entre 1873 e 1876. Sendo criada por carta de lei de 10 de abril de 1876 a cadeira de Patologia Geral, Semiologia e História da Medicina, na mesma Escola, Sousa Martins tornou-se lente proprietário da mesma por decreto de 16 de julho do mesmo ano, na qual foi sucedido por Câmara Pestana em 1898. Foi ainda presidente da Comissão Executiva e da Secção de Medicina da expedição científica à Serra da Estrela. Esta expedição foi organizada sob a égide da Sociedade de Geografia de Lisboa, de que Sousa Martins era sócio fundador (1876) e vogal do Conselho Central, reunindo em agosto de 1881 uma plêiade de cientistas e intelectuais que estudaram aquela região portuguesa nas suas vertentes geográfica, meteorológica e antropológica num esforço sem precedentes de exploração sistemática do território português.

O interesse de Sousa Martins na realização da expedição prendia-se com a necessidade de conhecer a meteorologia e as condições sanitárias da região dado a importância então atribuída ao clima no tratamento da tuberculose pulmonar. Essa necessidade levou a que em, conjunto com Brito Capelo, tivesse requerido ao Governo, em 1882, a instalação de um posto meteorológico na Serra. Na sequência da expedição Sousa Martins defendeu a implantação de Casas de Saúde nessa região. Nesse sentido foi um dos impulsionadores da fundação do Clube Hermínio, uma associação de caráter humanitário que foi criada em 1888 e se manteve ativa pelo menos até 1892. Sousa Martins foi aclamado sócio honorário e presidente perpétuo pelos membros fundadores. Afirmando-se como uma instituição de solidariedade, o Clube Hermínio tinha por objetivos a promoção do melhoramento das condições naturais da Serra da Estrela, considerada como estação sanitária através do estabelecimento de casas de saúde sob direção médica, o socorro aos doentes pobres e o exercício de polícia higiénica em todos os pontos da Serra e nas habitações que fossem usados pelos doentes.

No Verão de 1888, com o patrocínio do Clube Hermínio e com o apoio entusiástico de Sousa Martins e de Guilherme Teles de Meneses, esteve na Serra da Estrela o médico Basílio Freire, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, que ali assegurou acompanhamento médico gratuito aos doentes que o procuravam.

O principal objetivo de Sousa Martins era a construção de um sanatório na Serra da Estrela que pudesse acolher de forma permanente e tratar doentes com tuberculose pulmonar. Desde 1888 que ele tinha o cargo de médico honorário da Real Câmara de Suas Majestades e Altezas, o que lhe daria alguma influência junto da Coroa. Essa posição permitiu-lhe sensibilizar a família real e o governo para os seus objetivos, e a iniciativa, aclamada por todos, começou a tomar forma a partir de 1891, com o início da construção do Hospital Príncipe da Beira. No entanto, foi apenas após a sua morte que este hospital foi concluido, sendo inaugurado com o nome de Sanatório Dr. Sousa Martins apenas em 18 de maio de 1907 pelo Rei D. Carlos e a mulher, no âmbito da atividade da Assistência Nacional aos Tuberculosos. Esta instituição fora promovida pela Rainha D. Amélia numa reunião realizada no dia 11 de junho de 1899 na sala do Conselho de Estado, no Ministério do Reino, para tratar do estabelecimento de edifícios apropriados para acudir as pessoas atacadas de tuberculose. Segundo notícias da época, a rainha mandara fazer 402 convites. Os reis, de forma particular, contribuiram para a formação desta associação, encabeçando a lista de subscritores com 10.000$000 réis por parte de D. Carlos e 5.000$000 por parte de D. Amélia. E doaram também um forte da Casa de Bragança, no qual se instalou o primeiro sanatório em Portugal, com o nome de Sanatório Marítimo do Outão, em Setúbal, inaugurado em 6 de junho de 1900, com 400 camas. Agregando assim os esforços de beneficência privada com o objetivo de lutar contra este autêntico flagelo social, a ANT lançou-se numa campanha de profilaxia e tratamento da tuberculose e dedicando-se à construção de sanatórios para os doentes.

Sousa Martins foi de novo delegado de Portugal à Conferência Sanitária Internacional realizada em Veneza em março de 1897, onde foi eleito vice-presidente. Adoeceu quando se encontrava em Veneza, regressando a Lisboa muito debilitado. Diagnosticado com tuberculose, partiu para a Serra da Estrela à procura tratamento. Aparentemente convalescendo, recolheu-se a Alhandra, onde se instalou numa quinta, propriedade de amigos, tentando recuperar. A doença agravou-se e aos 54 anos, tuberculoso terminal e sofrendo de lesão cardíaca, Sousa Martins suicidou-se com uma injeção de morfina. 

O Rei D. Carlos, ao tomar conhecimento do seu falecimento, enviou uma mensagem. Sousa Martins não casou nem teve filhos. As homenagens sucederam-se ao longo dos anos. 

Além das já referidas sociedade científicas portuguesas, Sousa Martins foi também sócio fundador da Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses, vogal da primeira direção do Jardim Zoológico em 1883, membro do Instituto de Coimbra, da Associação dos Enfermeiros do Corpo de Saúde Civil de Lisboa, da Sociedade da Cruz Vermelha, do Centro Farmacêutico Português (do Porto), da Associação Camoniana José Vitorino Damásio, diretor do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa em 1887-88 e médico honorário da Real Casa Pia de Lisboa em 1894. 


No que diz respeito a instituições estrangeiras, foi membro da Sociedade Farmacêutica da Grã-Bretanha (sedeada em Londres), da Sociedade Farmacêutica Mexicana, da Sociedade Real de Medicina Pública da Bélgica, da Real Academia de Medicina e Cirurgia de Madrid, da Sociedade Antropológica Espanhola, da Sociedade Ginecológica Espanhola, da Academia Nacional de Medicina e Cirurgia de Cádis, da Academia Provincial de Ciências Médicas de Badajoz, da Sociedade Real de Medicina Pública e da Sociedade de Ciências Médicas do Luxemburgo, da Sociedade Real de Medicina Pública da Bélgica, do Instituto de Vasco da Gama, de Nova Goa, da Sociedade Francesa de Higiene e da Associação Internacional para o Progesso da Higiene, em Bruxelas. Foi comendador da ordem de S. Tiago, e da Ordem Real do Salvador da Grécia. Sousa Martins publicou obras de referência nas especialidades de epidemiologia, patologia, e ainda sobre medicina geral e tuberculose. Escreveu também biografias e aventurou-se na literatura, sob um pseudónimo. Colaborou na Gazeta Médica de Lisboa, no Jornal da Sociedade Farmacêutica Lusitana, Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, Revista Médica Portuguesa, Revista Ocidental, Revista Contemporânea, Diario Ilustrado, Ocidente, Enciclopédia Popular e da Revista de Nevrologia e Psychiatria, entre outras.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

O pneumogástrico preside à tonicidade da fibra muscular do coração, dissertação de licenciatura em Medicina (Lisboa: 1866).

O Pneumogástrico, os Antinomiais, a Pneumonia. Memória apresentada à Academia Real das Ciências de Lisboa (Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1867). 

A pathogenia vista à luz dos actos reflexos (Lisboa: Typ. Universal de Thomaz Quintino Antunes, 1868). 

A medicina legal no processo Joanna Pereira: questão de peritos…, com M. Bento de Sousa e J. C. da Camara Cabral (Lisboa: Typ. das Horas Romanticas, 1878).

Relatório da comissão encarregada de rever o regulamento das quarentenas (Lisboa: Diário do Governo, 1873). 

Relatório dos Trabalhos da Conferência Sanitária Internacional reunida em Viena em 1874, apresentado pelo delegado português a essa conferência J. T. Sousa Martins (Lisboa: Imprensa Nacional, 1874). 

A febre amarela importada pela Barca Imogene em 1879 (Lisboa: Typ. Portugueza, 1880). 

Os Typhos de Setúbal, Relatório sobre a Memória acerca dos typhos de Setúbal do sr. Dr. Francisco Ayres do Soveral e Parecer sobre essa memória por Sousa Martins (Lisboa: Imprensa Nacional, 1881). 

“Movimentos Pupilares Post-Mortem e Intra-Vitam”, in: Revista de Nevrologia e Psychiatria (Lisboa: 1888). 

A tuberculose pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela (Lisboa: Impr. Nacional, 1890). 

Bibliografia sobre o biografado

Almeida, Maria Antónia Pires de, Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918 (Lisboa: Colibri, 2013).

Jorge, Ricardo, Sousa Martins (s.l.: s.n.. 1939). 

Museu de Alhandra. Casa Dr. Sousa Martins, Biografia detalhada. Publicação eletrónica: http://www.museusousamartins.org/home.html.

Pais, José Machado, Sousa Martins e suas memórias sociais: sociologia de uma crença popular (Lisboa: Gradiva, 1994).

Silva, Fernando Emídio da, Sousa Martins, grande senhor do seu tempo (s.l.: s.n., 1944). 

Gomes, Bernardino António

Lisboa, 22 setembro 1806 – Lisboa, 8 abril 1877

Palavras-chave: medicina, Conferência Sanitária Internacional, epidemias, autópsia do rei D. Pedro V.

DOI: https://doi.org/10.58277/VBNM4967

Bernardino António Gomes foi filho do médico com o mesmo nome (1768–1823) e de Leonor Violante Rosa Mourão (1775–1864). O seu pai foi descrito como um dos mais importantes cientistas mundiais, ao nível de Pasteur, Koch e Roux. Os seus trabalhos na área da botânica permitiram-lhe o isolamento da cinchonina, um antipirético, e a sua posterior cristalização. Foi também um promotor da vacinação anti-varíola em Portugal, ao fundar, juntamente com outros médicos, a Instituição Vacínica em 1812, da qual foi diretor.

Bernardino António Gomes (filho) estudou Medicina em Paris e Matemática em Coimbra. Foi lente de Medicina, de Matéria Médica e Farmácia. Foi o primeiro médico a utilizar o clorofórmio em Portugal e um aparelho de inalação de éter, como forma de anestesia. 

Casou com Maria Leocádia Fernandes Tavares de Barros (1819–1854). O casal teve dois filhos: Bernardino António Barros Gomes (1839–1910), engenheiro silvicultor, responsável por levantamentos cartográficos de várias áreas de Portugal, e Henrique de Barros Gomes (1843-1898), autor de obras sobre matemática, astronomia e geografia, deputado, ministro da Fazenda, dos Negócios Estrangeiros e da Marinha e Ultramar, Par do Reino e conselheiro de Estado.

Da uma vida dedicada à prática clínica, à docência e ao estudo das ciências médicas destaca-se a sua obra muito variada, com quase duas dezenas de títulos, abrangendo maioritariamente as especialidades da epidemiologia e medicina geral, mas incluindo também áreas como higiene, farmácia, patologia, psiquiatria, termalismo, vacinas e até as biografias do seu pai e do Padre João Loureiro e uma memória sobre fósseis vegetais do terreno carbonífero. 

Foi o fundador e colaborador da Gazeta Médica de Lisboa e do Jornal da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa. Participou, em 1876, na Farmacopeia Portuguesa. Realizou viagens de estudo ao estrangeiro, nas quais adquiriu conhecimentos e as mais recentes novidades em instrumentos e aparelhos cirúrgicos da sua época, que trouxe para Portugal, além de visitar as redações e estabelecer contactos com revistas médicas internacionais, onde divulgou as revistas médicas portuguesas e estabeleceu trocas de periódicos. 

Foi um dos médicos que acompanhou a doença que afligiu o rei D. Pedro V e dos irmãos, os infantes D. Fernando, D. João e D. Augusto após um regresso do Alentejo em setembro de 1861. Depois de uma caçada em Vila Viçosa, D. Pedro e os irmãos seguiram para Portalegre, Alter do Chão e Abrantes. Na volta para Lisboa revelaram-se os primeiros sintomas da doença que os afetou a todos, provocando a morte ao rei e aos infantes D. Fernando e D. João. Foi aberto um inquérito policial e a equipa de médicos que realizou a autópsia negou a hipótese de envenenamento, declarando como causa de morte uma febre tifoide, doença muito comum na época, provocada por uma bactéria intestinal da família das salmonelas, habitualmente ingerida em águas ou alimentos contaminados. Bernardino António Gomes escreveu um livro registando todo o processo da doença e da autópsia, no qual foi um dos protagonistas.

Em 23 de novembro de 1865, foi eleito presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.

Estudou a fundo as epidemias que assolaram o mundo no seu século e em particular as que afetaram Portugal desde 1833 com a chegada do cólera-mórbus ao Porto nos navios de soldados belgas que ajudaram os liberais na Guerra Civil. Durante o cerco do Porto, e depois quando se espalhou pelo país, a epidemia de cólera acabou por causar mais de 40 mil mortos, um número mais elevado do que o da própria guerra. Depois desta, seguiram-se mais oito vagas epidémicas, disseminadas por indivíduos com profissões de alta mobilidade, como soldados, marinheiros, comerciantes ou pedintes, e intensificadas pela falta de higiene nas casas e nas ruas, pelo uso de água e alimentos contaminados e pela concentração dos doentes em pequenos espaços. Os Estados reagiram, por vezes de forma divergente, com medidas restritivas que privilegiavam os cordões sanitários e as quarentenas, e que tinham consequências económicas por vezes tão devastadoras como a própria doença. A comunidade médica internacional, se bem que beneficiasse de uma circulação bastante regular do conhecimento, pelo menos entre os países europeus e da América do Norte, verificou a falta de capacidade de resposta prática à doença. A partir de 1851, as potências europeias começaram a enviar os seus melhores especialistas a Conferências Sanitárias Internacionais. Estas conferências foram iniciadas em Paris e repetidas em Constantinopla em 1866, Viena em 1874, Washington em 1881, Roma em 1885, Veneza em 1892, Dresden em 1893 e de novo em Veneza em 1897.

A posição defendida por Bernardino António Gomes inseriu-se na teoria do contágio, baseando-se na sua longa experiência e em exemplos práticos, que foram expostos no artigo publicado na Gazetta Médica de Lisboa em 16 de fevereiro de 1858, sob o título “Sur la transmissibilité et l’importation de la fièvre jaune, du choléra, et de la peste. État actuel de la question. 1858” (publicado de novo em Constantinopla em 1866). Esta teoria fora contestada nas décadas anteriores. Enquanto desde o século XVI o contágio das doenças fora defendido, o século XIX viu surgir uma nova geração de cientistas que o negaram, baseando-se na ineficácia das quarentenas e dos cordões sanitários (especialmente na altura da pandemia de cólera de 1832), remetendo-o para o domínio do fantástico, absurdo e infantil. Baseados em experiências várias, incluíndo no seu próprio corpo, e imbuídos do espírito liberal da época, os cientistas defensores do anticontagionismo lutaram pela liberdade do indivíduo e do comércio, contra o despotismo e a reação. Verificou-se assim uma clara associação entre teorias anti-contágio e interesses comerciais. Enquanto os governos do norte da Europa, mais liberais e progressistas, avançaram com políticas higienistas, abolindo quarentenas e cordões sanitários, os do sul da Europa, mais conservadores, mantiveram as práticas correspondentes à teoria do contágio. Sem dúvida que a teoria anti-contágio apresentou aspetos positivos, uma vez que os países que a defenderam colocaram em prática grandes operações sanitárias dirigidas especificamente contra a sujidade, as quais acabaram por ser eficientes na prevenção das subsequentes epidemias. Por isso, mesmo quando os trabalhos de John Snow fizeram retomar a teoria do contágio, que foi readmitida pela maioria dos cientistas a partir de 1865, os conceitos higienistas continuaram a ser considerados fundamentais e foram postos em prática cada vez com mais intensidade.

Bernardino António Gomes representou Portugal na Conferência Sanitária Internacional de Constantinopla em 1866, o ano a seguir a nova epidemia de cólera, defendendo a teoria do contágio e a necessidade da interrupção da navegação. Colocou-se do lado de França e da maioria dos representantes dos países da Europa do Sul, contra as posições liberais da Inglaterra e da Alemanha, que defendiam ainda a postura anti-contágio e, portanto, o levantamento das quarentenas e dos cordões sanitários, escudando-se na eficácia das medidas sanitárias postas em prática nestes países. O relatório final da conferência reafirmou a contagiosidade da cólera e declarou que a água e certos alimentos podiam ser as vias de entrada no organismo do agente patogénico (já como reflexo dos trabalhos de John Snow), além de declarar que as comunicações marítimas eram um fator de propagação da epidemia.

Bernardino António Gomes recebeu as seguintes condecorações: comendador da Ordem de Sant’Iago e de Torre e Espada, grã-cruz da Ordem de Isabel, a Católica, e oficial da Legião de Honra de França. 

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

Gomes, Bernardino António. Memoria sobre a epidemia da cholera-morbus que grassou na cidade do Porto desde 1832 a 1833. Lisboa: Typografia da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, 1842). 

Gomes, Bernardino António. Elementos de farmacologia geral, ou Principios geraes de materia medica e de therapeutica. Lisboa: Typ. da Academia, 1851. 

Gomes, Bernardino António. “Apontamentos para a História da Epidemiologia em Portugal.”Gazetta Médica de Lisboa 6 (1857): xx-xx (página inicial e final)

Gomes, Bernardino António. O marechal Duque de Saldanha e os medicos: breves considerações ácerca da memoria sobre o estado da medicina em 1858. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859). 

Gomes, Bernardino António. Noticia da doença de que falleceu sua Magestade El-Rei o Senhor D. Pedro V e das que na mesma occasião atacaram Suas Altezas os Senhores Infantes D. Fernando, D. Augusto e D. João no anno de 1861. Lisboa: Imprensa Nacional, 1862.

Gomes, Bernardino António. Questão vaccinica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1864). 

Gomes, Bernardino António. As epidemias no Asylo da Ajuda, nos annos de 1860-1864. Lisboa: Imprensa Nacional, 1865. 

Gomes, Bernardino António. Aperçu historique sur les épidémies de choléra-morbus et de fièvre jaune en Portugal, dans les années de 1833-1865 par le Délégué du  Gouvernement Portugais a La Conférence Sanitaire Internationale Réunie a Constantinople. Constantinopla: Imprimerie Centrale, 1866.

Gomes, Bernardino António. Sur la transmissibilité et l’importation de la fièvre jaune, du choléra, et de la peste. État actuel de la question. 1858. Constantinopla: Imprimerie Centrale, 1866.

Gomes, Bernardino António. O esgôto, a limpeza e o abastecimento das águas em Lisboa: o que foram ou são, e o que devem ser, considerado tudo á luz das boas praticas e doutrinas. Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias, 1871.

Bibliografia sobre o biografado

Ackerknecht, Eriwn H. “Anticontagionism between 1821 and 1867.” Bulletin of the History of Medicine 22 (1948): 562-593.

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Garnel, Maria Rita Lino. “Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus).” Revista de História da Sociedade e da Cultura 9 (2009): 229-251.

Gomes, Joaquim Eleutério Gaspar. Elogio do conselheiro Bernardino António Gomes. Lisboa: Imprensa Nacional, 1877.

Garrett, António de Almeida

Porto, 22 setembro 1884 – 19 novembro 1961 

Palavras-chave: Faculdade de Medicina, Porto, pediatria, epidemias.

DOI: https://doi.org/10.58277/JNLI6969

António de Almeida Garrett foi filho de Francisco Xavier de Almeida Garrett e de Maria Margarida da Costa Maia e sobrinho-bisneto de João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, o primeiro visconde de Almeida Garrett, figura fundamental da literatura portuguesa, político, par do reino e grande impulsionador do teatro em Portugal. 

Casou no Porto em 8 de julho de 1915 com Maria Luísa Ruiz Hernandez, nascida em 22 de junho de 1884. O casal teve três filhos: António Ruiz, José Ruiz e João Ruiz de Almeida Garrett, nascidos em 1917, 1919 e 1923, respetivamente. 

Licenciado em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1906, especializou-se em Pediatria, desenvolvendo uma carreira médica e docente de destaque, para além do desempenho de importantes cargos públicos. A partir de 1912, foi professor de Pediatria e de Higiene na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, criada em 1911. Entre 1931 e 1954 exerceu o cargo de diretor desta faculdade. 

Teve longa carreira como funcionário na área da saúde pública. Foi subdelegado, delegado e, em 1934, inspetor dos serviços de saúde do Porto. Em simultâneo com a sua carreira docente, durante a qual participou em vários em júris de licenciatura e de doutoramento nas áreas da pediatria, higiene e termalismo, o seu interesse na vida política levou-o a candidatar-se ao Parlamento. De ideologia conservadora e católico convicto, foi eleito deputado em 1915 pelo círculo eleitoral de Vila Nova de Gaia, pelas listas da União Republicana. No início de 1918, desempenhou o cargo de vereador da Câmara Municipal do Porto, com o pelouro da Higiene, tendo participado ativamente na organização dos serviços de saúde da câmara para o combate à epidemia de tifo exantemático, especialmente no que dizia respeito aos balneários públicos e à lavagem das ruas e ilhas, onde a doença grassava com maior intensidade. Foi apoiante de Sidónio Pais e foi eleito deputado em 1918 pelo círculo do Porto. Na sua carreira política, destacam-se ainda os cargos de presidente da Junta Geral do Distrito do Porto entre 1926 e 1936 e de presidente da Junta da Província do Douro Litoral em 1940.

O seu reconhecido trabalho na área da saúde pública e a sua filiação aos conceitos higienistas e ao trabalho de Ricardo Jorge, assim como a atividade política e o apoio a Sidónio Pais, mereceram-lhe a nomeação, em 18 de maio de 1918, para o cargo de comissário do governo na cidade do Porto para combate à epidemia de tifo exantemático que grassava nesta cidade desde dezembro do ano anterior e se prolongou até março do ano seguinte. Sucedeu ao professor Augusto de Almeida Monjardino, que tinha sido nomeado em 23 de fevereiro de 1918. Manteve-se no cargo durante todo o resto do ano, acompanhando igualmente a epidemia de gripe pneumónica que, desde agosto desse ano, e com maior intensidade em outubro, provocou em Portugal um número de mortos estimado em mais de 135 000, apesar de as estatísticas oficiais apontarem para 59 000.

Neste ano dramático para o Porto, o comissário do governo colocou em prática fortes medidas higiénicas e de isolamento dos doentes, com a participação ativa das forças policiais, nem sempre bem recebidas pela população do Porto. Aliás, dadas as semelhanças das epidemias, muitas das medidas sanitárias foram herdadas daquelas postas em prática por Ricardo Jorge na epidemia de peste bubónica de 1899. Usaram-se os mesmos balneários públicos, os banhos obrigatórios, e ainda se construiram mais. Igualmente foram realizadas visitas domiciliárias por parte dos subdelegados de saúde, acompanhados pelas autoridades policiais, que resultavam, em grande parte das vezes, na queima das roupas e das próprias casas dos doentes e de todos os seus familiares e vizinhos, para eliminação do agente de transmissão da doença, na altura já perfeitamente identificado: o piolho. As escolas fecharam e foram obrigatórias guias sanitárias para apresentação nas estações de caminhos de ferro. 

No que diz respeito à epidemia de gripe, a sua transmissão pelo ar tornou desnecessárias as guias sanitárias, mas foram tomadas medidas preventivas de isolamento dos doentes, fecho das escolas, proibição de feiras e mercados, assim como foram amplamente divulgadas recomendações higiénicas e fornecidos serviços médicos e farmacêuticos gratuitos para os pobres, criando-se toda uma rede de assistência domiciliária a famílias inteiras atacadas e de transporte para os hospitais.

O trabalho de combate às epidemias realizado por este clínico foi reconhecido nos jornais pela sua competência, tendo sido descrito como incansável na adopção de todas as medidas tendentes a terminar de vez com a temerosa epidemia.

De facto, a sua obra publicada revela atualidade a nível das mais recentes descobertas científicas internacionais. Por exemplo, quando publicou o seu artigo sobre “Epidemiologia e profilaxia do tabardilho” (tifo exantemático), António de Almeida Garrett citou os trabalhos de Henrique da Rocha Lima, um bacteriologista brasileiro que, em 1916, tinha isolado a bactéria causadora da doença. 

Em 1927, colaborou com Ricardo Jorge na reforma dos serviços sanitários e organizou o II Congresso Nacional de Medicina. Em 1932, criou o Instituto de Puericultura do Porto, do qual foi diretor. Foi ainda vogal do Conselho Superior de Higiene, presidente da Associação dos Médicos do Norte de Portugal e presidente do Centro Nacional de Estudos Demográficos.

António de Almeida Garrett foi também um nome de relevo do Estado Novo, não só pelos cargos que ocupou, mas também por pertencer a um dos poderosos grupos familiares, figuras de proa da banca nas décadas de 1930 e 1940. 

A sua vasta obra soma quase três dezenas de livros e debruça-se sobre temática variada, incidindo maioritariamente sobre as especialidades médicas da Pediatria, Higiene, Alimentação e Demografia. Destaca-se ainda a atenção dada às áreas da Epidemiologia, da Medicina Geral e ainda à Literatura e à cidade do Porto. 

Foi o fundador e diretor da revista mensal Portugal Médico: arquivos portugueses de medicina, publicada em Lisboa entre 1915 e 1966. Publicou diversos artigos em revistas científicas, incluindo a revista Clínica, higiene e hidrologia, editada entre 1935 e 1957 por Armando Narciso e especializada em higiene e termalismo.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

Garrett, António de Almeida. Sobre a mortalidade infantil (até aos 5 anos) na cidade do Porto e os meios de a evitar. Porto: Tip. Emp. Guedes, 1909.

Garrett, António de Almeida. “Epidemiologia e profilaxia do tabardilho.” Portugal Médico 2 (1918): 105–106.

Garrett, António de Almeida. “Contra a epidemia de gripe pneumónica, em 1918, no Norte do País (Relatório).” Portugal Médico 11 (1919): 653–673.

Garrett, António de Almeida. Como organisar a luta contra a mortalidade infantil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1928.

Garrett, António de Almeida. Costumes alimentares dos portugueses. Porto: Imprensa Portuguesa, 1940.

Garrett, António de Almeida. Tendências demográficas de Portugal Metropolitano. Porto: Imprensa Portuguesa, 1940.

Garrett, António de Almeida. Estatística demográfica e luta contra a mortalidade infantil. Porto: Tip. Imprensa Portuguesa, 1952.

Garrett, António de Almeida. Dos erros de interpretação de sombras radiológicas-pulmonares. Porto: s. n., 1953.

Garrett, António de Almeida. Relatório do delegado português à Conferência europeia de estudo sobre o ensino post-universitário da higiene, da medicina preventiva e da medicina social. Lisboa: Oficinas Gráficas da Casa Portuguesa, 1953.

Garrett, António de Almeida. Aspectos gerais da evolução demográfica no Portugal metropolitano. Porto: Imprensa Portuguesa, 1954.

Bibliografia sobre o biografado

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Marques, A. H. de Oliveira, ed. Parlamentares e ministros da 1ª República (1910-1926). Lisboa: Edições Afrontamento e Assembleia da República, 2000.

Rosas, Fernando. “O Estado Novo (1926-1974).” In História de Portugal, ed. José Mattoso, vol. 7. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993.

Sobral, José Manuel, Maria Luísa Lima, Paula Castro e Paulo Silveira e Sousa, ed. A Pandemia Esquecida. Olhares comparados sobre a Pneumónica 1918-1919. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009.