Cambournac, Francisco José Carrasqueiro

Sintra, 26 dezembro 1903 — Lisboa, 8 junho 1994

Palavras-chave: Instituto de Malariologia, Instituto de Medicina Tropical, Organização Mundial de Saúde.

DOI: https://doi.org/10.58277/RVRI2581

Francisco José Carrasqueiro Cambournac nasceu em 26 de dezembro de 1903 na freguesia de Rio de Mouro, concelho de Sintra, no seio de uma família de industriais.

Realizou os seus estudos primários em Sintra, e os estudos secundários nos Liceus Camões e Passos Manuel, em Lisboa, que concluiu em 1922. No ano letivo de 1922-23, Francisco Cambournac frequentou as cadeiras preparatórias para o curso de medicina na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e matriculou-se no curso de medicina da mesma Faculdade no ano lectivo seguinte, concluindo-o em 1929. Como parte da sua formação médica iniciou o serviço hospitalar em 1925 no Hospital de Santa Marta, em Lisboa.

Em 1930-1931, matriculou-se no Curso de Medicina Tropical, na Escola de Medicina Tropical de Lisboa (EMT) e, em maio de 1931, já detentor do diploma em Medicina Tropical, terminou as suas funções no Hospital de Santa Marta e ingressou como médico auxiliar na Estação Experimental de Combate ao Sezonismo de Benavente. De imediato, Francisco Cambournac foi proposto pelo governo português à Sociedade das Nações, para usufruir de uma bolsa de estudos que lhe permitisse frequentar o curso internacional de malariologia da sua Comissão de Higiene. Concedido o apoio, iniciou os estudos teóricos do curso da Sociedade das Nações na Faculdade de Medicina de Paris em 1932, onde contactou com Léon Bernard, professor naquela faculdade e fundador e representante da Comissão de Higiene da Sociedade das Nações, que influenciaria de forma determinante a sua carreira. Ao curso teórico seguiram-se os estágios práticos em Itália e na Jugoslávia. No mesmo ano, ingressou na recém-criada Estação Anti-Sezonática de Alcácer do Sal para dar continuidade ao projecto de luta anti-malárica em Portugal. Em maio de 1933 foi designado para representar a Direcção Geral de Saúde (DGS) na missão de estudo sobre a malária em Portugal, realizada em colaboração com a Fundação Rockefeller (FR), e para dirigir o laboratório privado organizado em Benavente especificamente para aquela missão. Como resultado, a agência americana fundou, em 1934, a Estação para o Estudo do Sezonismo em Águas de Moura na qual Cambournac assumiu o cargo de diretor de campo.

Ao longo dos anos seguintes dedicou-se à consolidação dos seus conhecimentos em medicina tropical, higiene, parasitologia e entomologia, frequentando os circuitos internacionais fundamentais para os cargos que ocuparia mais tarde, no país e no estrangeiro. Com uma bolsa da FR frequentou, em 1935, o curso de Higiene e Medicina Tropical na Escola de Medicina Tropical de Hamburgo, e dedicou-se ao estudo da entomologia e da estatística aplicada à hereditariedade. Com o prolongamento daquela bolsa, Cambournac viajou pelos principais centros de ensino e de pesquisa das doenças tropicais da Europa, tendo visitado o Instituto Pasteur de Paris, o Instituto Colonial de Amesterdão, a Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, o Instituto Ross e a secção de Entomologia do Museu Britânico, ambos em Londres, e ainda, a secção de malarioterapia do Hospital Psiquiátrico Horton, em Epson.

Nomeado pela DGS, encabeçou, em 1937, a fiscalização sanitária para a prevenção de infecções maláricas no decurso dos trabalhos de hidráulica agrícola em algumas regiões portuguesas, e integrou as duas comissões do Ministério da Agricultura que elaboraram a lei da cultura do arroz publicada em 1938, na qual foi contemplada a organização dos serviços anti-sezonáticos por si proposta.

De novo com o apoio da Fundação Rockefeller, no ano letivo de 1937-1938 Francisco Cambournac frequentou o curso de Higiene e Medicina Tropical da Escola de Medicina Tropical de Londres, visitou a Escola de Medicina Tropical de Liverpool e frequentou a secção de entomologia do Museu Britânico, onde recebeu o apoio do entomólogo Frederick Wallace Edwards para a descrição de uma nova espécie de mosquito do género Aedes encontrada em Portugal.

No final de 1938, a Fundação Rockefeller e a Direcção Geral de Saúde converteram a Estação de Águas de Moura em Instituto de Malariologia, destinado à investigação e ao ensino da patologia da malária. Com a inauguração do Instituto de Malariologia de Águas de Moura, Francisco Cambournac foi nomeado subdiretor, cargo que exerceu até ser nomeado seu diretor em dezembro de 1939.

A partir deste instituto organizou e dirigiu o primeiro curso de Malariologia em Portugal, em 1939, bem como os cursos nos anos subsequentes, a par com o curso de Técnica de Profilaxia Sezonática, e promoveu as obras de expansão do instituto com a construção de um hospital. Cambournac empenhou-se no estudo da malária e nos métodos para a combater. Obteve e aplicou experimentalmente inseticidas de ação residual nos territórios da região circundante, entre os quais o diclorodifeniltricloroetano (DDT), mesmo quando a sua aquisição se encontrava comprometida pela Segunda Guerra Mundial. Dedicou-se igualmente à sanidade e à nutrição nas comunidades rurais, à erradicação da febre recorrente transmitida pela carraça, ao estudo da filaríase canina, e à identificação e descrição de novas espécies de insectos.

Cambournac começou a colaborar com o Instituto de Medicina Tropical (IMT) em 1939, sendo professor da cadeira de Hematologia e Protozoologia, colaboração que manteve no ano seguinte.

Em 1941, prestou provas documentais e públicas como candidato ao lugar de professor auxiliar da cadeira de Higiene, Climatologia e Geografia Médicas do IMT, vaga que ocupou em fevereiro de 1942. Com base na sua experiência, remodelou o programa da cadeira amplificando a componente prática, planeando um posto meteorológico e projectando um insectário destinado à criação laboratorial de insectos para o estudo, a investigação e o ensino. Este seria o primeiro passo para a organização de um centro de malarioterapia que lhe permitiria aprofundar a profilaxia e a terapêutica da malária, o tratamento da paralisia geral de alienados e o tratamento da neurosíflis assintomática. Este projecto, Cambournac concretizou-o não no IMT mas no Instituto de Malariologia, disponibilizando assim aos serviços de psiquiatria do país um serviço de malarioterapia e o fornecimento de material infectante.

Às actividades lectivas no IMT juntaram-se ainda a direção do Laboratório de Análises Clínicas do IMT e a direção do IMT durante um mês, em substituição de Manoel Máximo Prates. Ao longo de 1943, dedicou-se à organização e à direção do Serviço de Vacinação contra a febre-amarela, à preparação dos projectos para a organização dos Institutos de Investigação Médica, nas colónias, e para a construção de um pavilhão destinado à preparação de vacinas e soros anti-venenosos. Foi nomeado secretário do conselho escolar e diretor da biblioteca do IMT, tomou o lugar do presidente da Junta de Saúde das Colónias e dirigiu novamente o IMT durante um mês, em substituição de João Fraga de Azevedo.

Entre janeiro e fevereiro de 1944, Cambournac sub-chefiou a missão de estudo médico-sanitária à colónia da Guiné, a sua primeira missão científica a partir do IMT. Nos anos seguintes, várias missões científicas foram organizadas, realizadas e dirigidas por si, para África e para a Índia.

O prestígio científico que Francisco Cambournac adquiriu nesta época no circuito nacional e internacional da medicina e da saúde tropicais, como malariologista, epidemiologista e sanitarista, aliado ao seu temperamento tranquilo, afável e diplomático, à sua experiência e às suas ligações à Sociedade das Nações e à Fundação Rockfeller, levaram-no a representar Portugal na Conferência Internacional de Saúde realizada em Nova Iorque, e a assinar a Constituição que criou a Organização Mundial de Saúde (OMS) no dia 22 de julho de 1946. Foi, assim, por via de Francisco Cambournac que Portugal se tornou membro fundador da OMS.

Com o início formal de atividade na OMS em abril de 1948, Cambournac passou a integrar o Comité de Peritos de Malária e a administração de saúde pública da nova agência de saúde mundial, e, ao mesmo tempo, a integrar as delegações portuguesas que participaram nas reuniões da organização.

O Instituto de Malariologia que Francisco Cambournac dirigia passou a colaborar regularmente com a OMS, participando em projectos de luta contra a malária e recebendo bolseiros de diversos países da Europa, do Médio e Extremo Oriente, e de África, para a frequência dos cursos ali ministrados. Paralelamente, a presença de Cambournac no Comité de Peritos de Malária da OMS permitiu-lhe discutir a situação da malária em Portugal no contexto da saúde pública internacional, num relatório que foi apresentando em fevereiro de 1950 àquela Comissão.

Respondendo à solicitação da OMS para elaborar um estudo sobre a situação da malária em África Equatorial, Francisco Cambournac passou grande parte do ano de 1950 a viajar pelo continente africano e a visitar as administrações dos serviços de saúde de vários países. Em outubro, Cambournac entregou à OMS o relatório solicitado sobre a malária em África Equatorial, que serviu de base à Primeira Conferência de Malária realizada naquela região africana no mês seguinte. Foi, então, um dos vice-presidentes do encontro e fez parte da comissão que redigiu o relatório dos debates da conferência. Com base na decisão aqui tomada para a criação de um Bureau da OMS em África, Cambournac propôs Brazzaville como a cidade de acolhimento, que foi aceite para a instalação da sede africana da Organização Mundial de Saúde.

Nos primeiros anos da década de 1950, Cambournac acumulou as funções na OMS com aquelas que desempenhava em Portugal e nas colónias: a direção do Instituto de Malariologia em Águas de Moura e a organização dos respectivos cursos de Malariologia; a regência da cadeira de Higiene, Climatologia e Geografia Médicas e a participação no conselho escolar do IMT; as reuniões científicas internacionais e as missões de estudo às colónias.

Entre maio e agosto de 1952, o nome de Francisco Cambournac foi várias vezes mencionado para o lugar de responsável da OMS em África. Era considerado pelos governos dos países membros da OMS com colónias em África e com delegações na Comissão para a Cooperação Técnica em África a sul do Sáara (CCTA), como conhecedor dos interesses dos países africanos, recomendável pela sua erudição e pela sua competência, alinhado com os interesses das potências coloniais no que respeitava às questões africanas, fiel à política da OMS, e competente para a administração dos fundos da organização. Cambournac foi unanimente eleito para o cargo de diretor regional da OMS para África a 1 de agosto de 1952, posição que assumiu a 1 de fevereiro de 1954.

Durante o seu mandato na OMS-África, Francisco Cambournac percorreu o continente africano visitando os serviços de saúde, definiu estratégias de combate à malária e a outras doenças que afectavam o continente, e promoveu a formação de técnicos em medicina tropical. Continuou com actividades profissionais em Portugal e nas colónias portuguesas: em 1955 apresentou um estudo sobre a malária em S. Tomé e Príncipe; em 1956 apresentou vários estudos sobre algumas patologias em Angola; e em 1957 integrou, na qualidade de vogal, a recém-criada Comissão de Higiene e Saúde do Ultramar do IMT.

Ao longo do ano de 1958 o seu desempenho na OMS-África foi reconhecido pela sua reeleição para o cargo pelos Estados-Membros e pela CCTA. Iniciou o segundo mandato de 5 anos como Diretor do Bureau Regional Africano em 1 de fevereiro de 1959. No mesmo ano, o nome de Cambournac foi falado para a substituição do Diretor Geral da OMS, caso Marcolino Gomes Candau renunciasse às funções no ano seguinte, o que não aconteceu.

Enquanto dirigiu o Departamento da OMS-África, Cambournac influenciou a carreira de alguns especialistas, entre os quais M. A. C. Dowling (WHO 1955-1982 / 1996) e W. L. Barton (OMS 1972-1983), médicos que ficaram associados aos programas de erradicação e de controlo da malária da OMS.

A conduta de Francisco Cambournac na Organização Mundial de Saúde, distinta da política colonial portuguesa, valeu-lhe uma homenagem numa sessão do Conselho Executivo da OMS pelos seus colegas das Nações de África e a sua permanência até ao final do segundo mandato.

Em 1961, Cambournac foi nomeado transitoriamente para a Direção do IMT até 1962, substituindo João Fraga de Azevedo no cargo de diretor, e definitivamente nomeado diretor do IMT em 1964, quando regressou a Portugal após a conclusão do seu mandato na OMS-África.

Quando em 1 de janeiro de 1967 se deu o início da atividade da Escola Nacional de Saúde Pública e Medicina Tropical (ENSPMT) que resultou da fusão do IMT com o Instituto Superior de Higiene Dr. Ricardo Jorge, Francisco Cambournac assumiu também as funções de diretor por um período de 5 anos. Por inerência, foi vogal do Conselho Superior de Saúde e Assistência.

Em outubro de 1972, com a separação da ENSPMT em Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) e em Escola Nacional de Saúde Pública, Cambournac foi nomeado diretor do IHMT, cargo no qual se manteve até à sua jubilação em 26 de dezembro de 1973.

Em 1978, Francisco Cambournac foi distinguido pela OMS com o Prémio da Fundação Léon Bernard, pelo seu contributo para o estabelecimento da OMS em África e para a prevenção e o controlo das doenças endémicas tropicais.

Cambournac manteve-se ativo na medicina tropical portuguesa após a sua jubilação: entre 1980 e 1981 acompanhou um projecto-modelo da OMS com a finalidade impedir a re-introdução da malária em Cabo Verde; acompanhou o diretor do IHMT António Rendas numa Missão à Guiné-Bissau em 1984 para apresentar uma proposta de cooperação com o Ministério da Saúde daquele país, e a S. Tomé e Príncipe em 1985 numa missão para a cooperação com os novos Estados africanos. Em 1986, assumiu a coordenação técnico-científica da missão realizada a S. Tomé e Príncipe conjuntamente pelo IHMT e pela Cruz Vermelha Portuguesa, bem como a representação oficial das duas instituições.

Francisco Cambournac foi sócio do grupo português da História das Ciências, membro da Academie Internationale d’Histoire dês Sciences, e foi membro da comissão científica da Rivista di Malariologia, de Roma. Foi condecorado com o Grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 1985, e recebeu a Medalha de Honra do Concelho de Palmela, atribuída a título póstumo, em 1 de junho de 2012.

Faleceu em Lisboa a 8 de junho de 1994.              

Rita Lobo

Arquivo

Cambournac, Francisco e Landeiro, Fausto. O Sezonismo em Portugal. Missão da Direcção Geral de Saúde – Rockefeller Foundation. Direcção e Orientação do Dr. R.B. Hill. Colecção de Relatórios, Estudos e Documentos Coloniais (28), Ministério das Colónias, 1933

Cambournac, Francisco. Le Paludisme au Portugal. Comité D’Experts du Paludisme – Organisation Mondiale de la Santé (WHO/Mal/35), 1950.

Cambournac, Francisco. Report on Malaria in Equatorial Africa. World Health Organization (WHO/Mal/58, Afr/Mal/Conf/14), 1950.

Obras

Hill, Rolla, Landeiro, Fausto e Cambournac, Francisco. A malária e a organização da luta anti-malárica em Portugal. Lisboa: Tipografia Henrique Torres, 1938.

Cambournac, Francisco. “Aedes (Ochlerotatus) longitubus, a new species from Portugal (Diptera, Culicidae)”. The Proceedings of the Royal Entomological Society of London, Series B. Taxonomy (7) (1938):74-86.

Cambournac, Francisco. Sobre a epidemiologia do sezonismo em Portugal. Lisboa: Tipografia da Sociedade Industrial, 1942.

Cambournac, Francisco. As ciências médicas e a melhoria da saúde nas províncias ultramarinas. Porto: Tipografia Sequeira, 1965.

Cambournac, Francisco. Actividades actuais dos portugueses no campo da Saúde pública nas regiões tropicais. Porto: Imprensa Portuguesa, 1967.

Bibliografia sobre o biografado

Cambournac, Francisco, curriculum vitae – Exposição documentada da carreira e títulos científicos e pedagógicos, Concurso para professor auxiliar da 1ª cadeira do Instituto de Medicina Tropical: Higiene, Climatologia e Geografia Médicas. Lisboa: 1941.

Abranches, Pedro. O IHMT, um século de história, 1902-2002. Lisboa: CELOM, 2004.