Mormugão, Salsedas (Goa), 24 janeiro 1822 — Lisboa, 13 novembro 1893
Palavras-chave: química orgânica, teoria dos tipos, oligomerização, polimerização por condensação, Escola Politécnica de Lisboa.
DOI: https://doi.org/10.58277/MHKX9342
Agostinho Vicente Lourenço cursou medicina, de 1843 a 1846, na Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa (hoje Panji) e foi professor da mesma a partir de 1847. Em 1848, veio para Lisboa com uma bolsa de uma associação privada de Goa, para prosseguir os seus estudos em Paris. Uma vez que esta bolsa era insuficiente, o governo português atribuiu-lhe idêntica quantia, a fim de duplicar o seu per annum. No início da sua estada em Paris, ou seja, a partir de 1849, tudo indica que Lourenço tenha estudado química, uma vez que obteve, em 1853, o diploma de Ingénieur-chimiste na École Centrale des Arts et Manufactures.
Também frequentou os laboratórios de Justus von Liebig, em Giessen e, ainda, de August Wilhelm Hofmann, em Londres, onde viria a conhecer a sua futura mulher. Em 1856, frequentou um curso prático de química sob a tutela de Robert Bunsen no recém-inaugurado laboratório na Universidade de Heidelberg, juntamente com outros estagiários que viriam a notabilizar-se, como sejam o inglês Henry Roscoe, o suíço Hans Heinrich Landolt, o germano-russo Friedrich Konrad Beilstein e o alemão Adolf von Baeyer. Em Heidelberg, chegou ainda a trabalhar no acanhado laboratório particular de August Kekulé, juntamente com Baeyer, para preparar um doutoramento. No entanto, queixou-se de Kekulé cujas orientações mudavam frequentemente a ponto de o impedirem de completar os trabalhos iniciados. Esta versão foi contestada pelo biógrafo, discípulo e admirador de Kekulé, Richard Anschütz, que invoca o facto de Kekulé ter aceitado, em 1857, um convite para professor de química da Universidade de Gante. Fosse qual fosse a razão, Lourenço decidiu não o acompanhar e, em vez disso, aceitou a sugestão de Beilstein de ir para o laboratório de Charles Adolphe Wurtz, na Faculdade de Medicina de Paris, onde aquele entretanto ingressara. Um pouco mais tarde, por ocasião de uma visita de Kekulé a Wurtz, em 1859, Lourenço e Beilstein acompanharam o químico germânico numa visita a Nanterre, à recém-inaugurada fábrica de alumínio, então dirigida por Paul Morin, que utilizava o processo de Sainte-Claire Deville, consistindo na obtenção daquele metal pela redução do cloreto de alumínio pelo sódio.
Lourenço integrou-se bem no laboratório de Wurtz, pois ao invés das restantes escolas de investigação em química, então existentes em Paris, mais circunscritas ao espaço nacional, este laboratório distinguia-se pela atmosfera cosmopolita. Durante cerca de 30 anos, o laboratório de Wurtz foi frequentado por mais de 200 discípulos, a maioria proveniente da Alsácia, correspondendo por isso a uma minoria étnica e religiosa, mas também de diversos países desde a Alemanha, Rússia, Suíça, Áustria, Ilhas Britânicas até aos Estados Unidos. Pertencendo a uma minoria portuguesa, católico e de ascendência indiana, Lourenço terá sido bem acolhido, para o que terá também contribuído o seu conhecimento de línguas estrangeiras. Além de ter aperfeiçoado o francês, inglês e alemão, gostava de ler obras literárias na língua original e de passar temporadas em países estrangeiros, para expandir as suas capacidades linguísticas. Nestas ocasiões, visitava laboratórios de química para se manter atualizado. Nos três anos que passou no laboratório de Wurtz, relacionou-se com colegas de diferentes nacionalidades, uma boa parte dos quais viria a alcançar grande prestígio no plano da química orgânica internacional. O programa de investigação desenvolvido por Wurtz e pelos seus discípulos mostrou-se especialmente produtivo. Tinha por fundamento as teorias dos tipos de Auguste Laurent e de Charles Gerhardt, que se revelaram de considerável capacidade preditiva, e caracterizou-se pela defesa do atomismo, sendo esta escola única no panorama da química francesa, marcado pela rejeição dos átomos.
No período que passou em Paris, Lourenço escreveu nove comunicações apresentadas por Wurtz na Académie des Sciences, além de um artigo publicado no Bulletin de la Societé Chimique. A sua dissertação de doutoramento, bem como o relatório do trabalho que realizou no laboratório do químico alsaciano, foram publicados, quer em livro, em 1862, quer nos prestigiados Annales de Chimie et de Physique, em 1863. Lourenço dá conta da síntese de novos compostos, que incluíam os primeiros membros da família dos glicóis polietilénicos H‒(O‒CH2‒CH2)n‒OH até ao glicol hexaetilénico, sendo este o primeiro exemplo conhecido de uma polimerização por condensação. Determinou os pontos de ebulição dos compostos que purificou por destilação e deu-se conta da elevação do ponto de ebulição com o aumento do valor de n(cerca de 45ºC de cada vez que n aumenta de uma unidade). Também observou o aumento de viscosidade com n.
Uma vez que hoje parece ser óbvio que nas fórmulas de Lourenço n representa, no fundo, o grau de polimerização, somos tentados a concluir que ele verificou o aumento do ponto de ebulição e da viscosidade com o grau de polimerização e o peso molecular. É claro que Lourenço não propôs para estes compostos fórmulas estruturais, (os primeiros artigos de Archibald Scott Couper e de Kekulé ainda só tinham acabado de ser publicados), mas usa as fórmulas de acordo com a teoria dos tipos que agora incluía os tipos complexos que Alexander William Williamson e William Odling denominaram “condensados” e “mistos,” respetivamente. Consequentemente, Lourenço não expressa o aumento de n como um aumento do peso molecular, mas como uma crescente “complication moléculaire,” significando com isso o número de radicais envolvidos. Há, todavia, algumas características que são de destacar nas suas conclusões:
1. Para a sua reação escreve uma equação geral com n e n+1 usando as fórmulas de acordo com a teoria dos tipos.
2. Estabelece o mecanismo da cadeia de reações para cada passo da condensação.
3. Transcrevendo para fórmulas de estrutura modernas as equações de Lourenço, então a sua interpretação torna-se clara. Considerou que, no passo da propagação, que transforma o poliglicol H‒(O‒CH2‒CH2)n‒OH, por reação com 2-bromoetanol, no poliglicol n+1, se liberta brometo de hidrogénio. Este reage, no passo subsequente da propagação com o glicol, regenerando 2-bromoetanol, necessário à continuação da propagação.
4. Este foi, certamente, um dos primeiros mecanismos de uma reação da química orgânica a ser estabelecido, bem fundado em evidência experimental.
5. Apesar de se poder argumentar que Lourenço não estudou reações de polimerização propriamente ditas, mas somente oligomerizações na medida em que não ultrapassou n = 6, é contudo óbvio que considerou que o resíduo da destilação do glicol hexaetilénico conteria membros da série dos poliglicóis com n > 6 e que estes eram ainda mais viscosos e menos voláteis.
Na introdução histórica do seu já clássico compêndio de química dos polímeros, Paul Flory relata com grande pormenor o trabalho de Lourenço, que considerou ser precursor da química dos altos-polímeros. O facto de alguns químicos da escola de Hermann Staudinger negligenciarem a importância dos primeiros trabalhos realizados no século XIX no âmbito desta área da química e, consequentemente, as contribuições de Lourenço, parece ter resultado do longo debate que opôs as duas grandes escolas de química dos altos-polímeros, relativamente aos méritos dos seus líderes.
As investigações de Lourenço vieram a ter o maior relevo, quer à luz dos desenvolvimentos ulteriores da química dos polímeros, quer para o programa de investigação da escola de Wurtz, no que se refere aos conceitos de “atomicidade” (valência) e à estrutura atómica de radicais, no período imediatamente antes da publicação das propostas de Kekulé e de Couper. As reflexões de Lourenço sobre a “atomicidade dos radicais” e a admissão de uma estrutura atómica ainda desconhecida foram tais, que para o leitor atual impressiona ver como se estava perto do nascimento da teoria estrutural. As suas conjeturas sobre a estrutura atómica dos radicais basearam-se na conclusão de que era possível converter o glicerol em glicol propilénico, demonstrando que os radicais podem ser convertidos em outros radicais, contrariamente às anteriores teorias “clássicas” dos radicais.
Os trabalhos de Lourenço foram muito elogiados num relatório da Academia das Ciências de Paris, assinado por Jean-Baptiste Dumas e Antoine Jérôme Balard. Na conclusão deste relatório, a Academia expressou a esperança de que “o jovem ‘savant’ português, possuindo ao mesmo tempo a capacidade de observação que forneceu os materiais e o conhecimento geral que permitiu interpretá-los da forma mais racional, poderá atrair para a química orgânica, no país que lhe foi destinado habitar, mais trabalhadores que poderão concorrer para o desenvolvimento desta parte da ciência, tão vasta e onde há tanto a fazer.” Dumas, figura influente da química francesa, ofereceu-lhe um lugar no Instituto Francês do Egipto, mas Lourenço teve outras propostas como a de ser professor na Faculdade de Medicina de Lyon que declinou, preferindo regressar a Lisboa.
O período mais marcante de toda a sua atividade científica foi aquele em que trabalhou no laboratório de Wurtz, tendo-lhe sido atribuído, em 1862, o grau de docteur-ès-sciences pela Faculdade de Ciências de Paris. Regressado a Portugal em 1861, Lourenço foi eleito, em 1862, sócio da Real Academia das Ciências de Lisboa e nomeado lente substituto da cadeira de Química Orgânica e Analítica da Escola Politécnica. Em 1864, torna-se lente proprietário da mesma cadeira, posição que manteve até à data da sua morte, em 1893. No entanto, no período que ali lecionou, não terá produzido investigação considerada relevante no domínio da química orgânica. Eduardo Burnay, médico, zoólogo e seu sucessor na cadeira de Química Orgânica, especulou acerca das razões, no discurso proferido durante uma cerimónia académica em memória de Lourenço. Segundo Burnay, o lugar na Escola Politécnica não correspondera às suas expectativas, em razão de promessas não cumpridas e de fricções entre colegas, a que se somava o isolamento dos meios científicos francês, inglês e alemão. Burnay deixou ainda entrever que Lourenço possuía dificuldades de expressão oral, limitação que se faria sentir especialmente nas aulas. Apesar dos seus textos serem precisos e profundos, os estudantes tinham dificuldade em segui-lo e era temido nos exames.
Independentemente do juízo de Burnay, deverá atender-se ao facto de os cursos da Escola Politécnica terem um carácter preparatório à engenharia, medicina e farmácia e de, na época, não haver oportunidades de emprego significativas para químicos em Portugal, dada a debilidade do tecido industrial. Para a maioria dos estudantes, a aprendizagem desta ciência era, possivelmente, apenas um requisito no percurso de obtenção de um grau que permitisse uma carreira militar ou na função pública, no âmbito da engenharia, ou o exercício de uma profissão liberal em medicina, ou farmácia. Neste contexto desfavorável, um professor, com ou sem dons de oratória, teria sempre dificuldade em impor-se, por mais dotado que a Academia das Ciências de Paris o considerasse. Lourenço contribuiu, no entanto, para a modernização do equipamento do laboratório químico e do ensino experimental na Escola Politécnica, com o auxílio do então preparador Eduard Lautemann, por ele recrutado na Alemanha, que fora assistente do químico orgânico Hermann Kolbe com quem se doutorara na Universidade de Marburgo. Lautemann também realizava, na bancada do anfiteatro de química da Escola Politécnica, as demonstrações experimentais que acompanhavam as lições magistrais de Lourenço.
Um aspeto menos conhecido da atividade científica de Lourenço é o facto de a sua primeira tentativa de publicar um artigo em Portugal ter constituído um falhanço. Numa comunicação em coautoria com o jovem colega António Augusto de Aguiar, Lourenço afirmou ter isolado os álcoois nonílico, decílico e undecílico, trabalho que nunca foi citado no estrangeiro, nem mesmo no Dictionnaire de Chimie Pure et Appliquée, editado por Wurtz, ou no Handbuch der Organischen Chemie, de Beilstein. Como era muito amigo de ambos, é certo que a omissão não foi por esquecimento. Os compostos que Lourenço pensava ter isolado por destilação fracionada e identificado eram, efetivamente, misturas de um número de compostos com uma composição média que simulava a estequiometria dos álcoois, que ele e Aguiar supunham ter em mãos. Este facto deve ter sido um rude golpe para Lourenço, já que no convívio e nos gostos parece ter sido um homem elegante e sofisticado, mas algo distante. Embora Burnay refira que Lourenço dera continuidade à investigação iniciada no laboratório de Wurtz, o facto é que nunca chegou a publicar tais trabalhos. Para Burnay, a maior contribuição de Lourenço em Portugal foi ter despertado o interesse de Aguiar pela química orgânica e tê-lo ensinado a ser um consumado experimentalista, apesar de o único artigo que publicaram em conjunto se ter revelado um fiasco (algo que Burnay nunca mencionou).
No laboratório da Escola Politécnica, Lourenço ocupou-se, principalmente, de análises de águas minerais de numerosas termas que, provavelmente, lhe trouxeram alguns proventos adicionais ao salário de professor, e publicou, em francês, um livro sobre águas termais portuguesas. O termalismo, então em franca expansão, era naturalmente uma fonte de receita com alguma relevância na economia local e do país e, neste sentido, Lourenço deu um contributo importante com estes estudos.
Bernardo J. Herold
Centro de Química Estrutural do Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa e Academia das Ciências de Lisboa.
Arquivos
Lisboa, , Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa – MUHNAC, Escola Politécnica de Lisboa (fundo):Diplomas oficiais do Governo-geral do Estado da Índia, da École Centrale des Arts et Manufactures e da Real Academia das Ciências de Lisboa.
Munique, Archiv Deutsches Museum: correspondência e fotografia de Agostinho Vicente Lourenço.
Obras
Lourenço, Agostinho Vicente. “Note sur la formation d’un éther intermédiaire du glycol.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences 49 (1859): 619.
Lourenço, Agostinho Vicente “Alcools et Anhydrides polyglycériques.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 52 (1861): 359.
Lourenço, Agostinho Vicente Reboul, M. “Sur quelques éthers de Glycerine.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 52 (1861): 401.
Lourenço, Agostinho Vicente Reboul, M. “Sur quelques éthers éthyliques des alcools polyglycériques.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 52 (1861): 466.
Lourenço, Agostinho Vicente “Transformation de la glycérine en propylglycol.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 52 (1861): 1043.
Lourenço, Agostinho Vicente “ Recherches sur les composés polyatomiques.” Annales de Chimie et de Physique, [3] 67 (1863): 186 – 339.
Lourenço, Agostinho Vicente Renseignements sur les eaux minérales portugaises. Paris : E. Dentu, 1866.
Lourenço, Agostinho Vicente “ Estudos preliminares sobre as principaes aguas mineraes do Reino.” In Trabalhos preparatorios ácerca das aguas minerais do Reino e providencias do Governo sobre proposta da Commissão respectiva. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867.
Lourenço, Agostinho Vicente Algumas informações sobre as aguas sulfureas salinas do Arsenal da Marinha de Lisboa. Lisboa: Tipografia da Companhia Nacional Editora,1889.
Bibliografia sobre o biografado
Anschütz, Richard, August Kekulé. Berlim: Verlag Chemie, 1929, 2 vols.
Burnay, Eduardo. “Elogio historico do Dr. Agostinho Vicente Lourenço.” Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, Classe de Sciencias Moraes, Politicas e Bellas-Letras, 7 (1895): Parte 1, 1 – 42.
Carneiro, Ana. The Research School of Chemistry of Adolph Wurtz, Paris, 1853-1884, Unpublished PhD thesis. Canterbury: University of Kent, 1992.
Dumas, Jean-Baptiste Dumas e Balard, Antoine Jérôme, “Rapport sur plusieurs Mémoires présentés à l’Académie par M. Lourenço.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 53 (1861): 322–326.
Flory, Paul John. Principles of Polymer Chemistry. Ithaca and London: Cornell University Press, 1953.
Herold, Bernardo J. “Bernardino Gomes Pai e Agostinho Lourenço Precursores Portugueses da Química dos Alcalóides e dos Polímeros Sintéticos.” In História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1986, vol. 1, pp. 417– 433.
Herold, Bernardo J, and Bayer, Wolfram, “A transnational network of chemical knowledge: The preparadores at the Lisbon Polytechnic School in the 1860s and 1870s.” Bulletin for the History of Chemistry of the American Chemical Society, [1] 39, (2014): 26–42.
Roussanova, Elena. Friedrich Konrad Beilstein, Chemiker zweier Nationen. Hamburg: Norderstedte, 2007, 2 vols.