fl. século XVI
Palavras-chave: aritmética, matemática, regra de ouro.
DOI: https://doi.org/10.58277/ZCRY9031
Gaspar Nicolas é um autor de referência na aritmética portuguesa do século XVI. A sua obra, o Tratado da Pratica d’Arismetica de 1519 foi, ao mesmo tempo, o primeiro tratado de aritmética prática e o primeiro texto de Matemática impresso em Portugal.
Diogo Barbosa Machado deu-o como aritmético natural de Guimarães e Francisco Leite de Faria menciona-o como um dos autores vimaranenses. Uma hipótese sobre a sua origem judaica foi colocada por Luís de Albuquerque e mais tarde explorada por Marques de Almeida (1994), sem, contudo, se chegar a resultados que o comprovassem. Como para outras figuras desta época, os dados nas fontes históricas sobre Gaspar Nicolas são escassos. O que sabemos deste autor está ligado à obra que nos deixou.
Do Tratado da Prática d’Arismetica existe um exemplar da primeira edição na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto que, em 1963, foi publicado em edição fac-similada pela Livraria Civilização do Porto e prefaciada por Luís de Albuquerque. A edição de 1519 saiu da oficina de Germão Galharde. A obra de Gaspar Nicolas conheceu outras edições no século XVI: 1530, 1541, 1551, 1573, 1594. No século XVII registam-se as edições de 1607, 1613 e 1679. Já no século XVIII houve uma outra edição no ano de 1716. O número elevado de edições mostra-nos que esta obra foi muito bem acolhida e valorizada entre os saberes matemáticos durante cerca de duzentos anos.
No prólogo do Tratado da Pratica d’Arismetica Gaspar Nicolas refere a cidade de Guimarães onde encontrou, numa dada ocasião, D. Rodrigo, Conde de Tentúgal, a quem dedicou o referido tratado. É desta afirmação que se deduz que poderia ser vimaranense ou ter residido em Guimarães num período anterior à publicação da obra.
No Tratado da Pratica d’Arismetica (1519) o prólogo ocupa as duas primeiras páginas. Neste espaço o autor explicou ao leitor as motivações que o levaram à escrita de tal obra: responder às dúvidas de D. Rodrigo, o mecenas; um reconhecimento da aritmética como a base de outros saberes; a necessidade de um livro de aritmética no reino, dado o elevado volume de negócios com as novas rotas comerciais. A edição de 1519 contém 94 fólios aos quais se juntam 24 sobre a liga da prata em Portugal. Nesta primeira edição não há qualquer espaço com as funções de índice. Os temas encontram-se bem demarcados ao longo do texto, sem que este esteja dividido em capítulos. Para além do Prólogo, o autor apresentou as tabuadas, grande e pequena, antes de iniciar as operações básicas da aritmética com números inteiros (assomar, demenuir, multiplicar e repartir), usando os números indo-árabes.
Gaspar Nicolas concebeu o seu tratado de aritmética prática assente nas técnicas de cálculo. Os números tornaram-se entidades de «medida» e a sua anterior «figura» especulativa, perdeu-se no mundo mercantil. Esta primeira obra, apesar das suas supostas fontes conterem aspetos boecianos sobre o conceito de número, como o observamos no Summa (1494) de Pacioli, mergulhou-nos, na modernidade numérica. O autor adotou, uma nova organização dos números em «inteiros», «quebrados» e «mistos», ou seja, os números inteiros exceto o zero, representados no sistema decimal indo-árabe, os números fracionários (quebrados), da forma , tal que a e b são números inteiros naturais e , os números mistos, representados por tal que a, b e c são inteiros naturais e e (estes números assim escritos correspondem a ).
De um modo geral, os tratados de aritmética que apareceram em alguns países da Europa caracterizaram-se por um tronco comum constituído por um conjunto de regras ditas comerciais. Gaspar Nicolas começou por abordar a regra de ouro do comércio, mais conhecida por regra de três (regra de tres chaãs, regra de tres com tempos, regra de tres com tempos a rezam de tanto por çento, regra de tres em que a derradeira he partidor), uma regra básica para outras também comerciais tais como, as regras de companhias e as regras de baratas (baratos) que também figuram no tratado. O conjunto das regras associadas à aritmética mercantil assumiu algumas características locais e, no caso dos tratados portugueses, passou a incluir a regra de quarto e vintena e a regra da conta de Flandres que, em conjunto, constituíram um contributo «local» no corpus aritmético português e uma via de modelização aritmética utilizada pelos mercadores de Quinhentos, tal como o indicaram os autores da época.
A regra de quarto e vintena e a regra da conta de Flandes são exclusivas dos tratados portugueses e refletem uma motivação comercial. A primeira foi o cálculo um imposto que teve por base a cobrança de um quarto mais a vintena dos restantes três quartos, ou seja, da quantidade de mercadoria. A regra assenta num princípio concreto ligado à existência de um imposto cobrado na Casa da Índia. Baseando-se nesta realidade fiscal, Gaspar Nicolas abordou o assunto através de um conjunto de problemas que traduzem vários cenários, desde a simples aplicação do modelo para o cálculo do imposto, até aos problemas que enunciam quebras nas mercadorias transportadas durante as longas viagens marítimas, com consequente prejuízo para os mercadores. A regra da conta de Flandres esteve, como o nome indica, ligada ao comércio na Flandres. Era uma regra de conversão e Gaspar Nicolas procurou responder às dificuldades dos mercadores portuguesas nas contas com as mitas (moeda da Flandres), como o próprio afirma. Deste modo propôs um conjunto de problemas de conversão com o objetivo de proporcionar instrumentos de formação essenciais às lides comerciais. Para as duas regras, os enunciados propostos levam-nos a crer numa aprendizagem por imitação dos problemas resolvidos e numa difusão da Matemática ligada a atividades profissionais.
Gaspar Nicolas deu-nos informações sobre si próprio ao enunciar a regra de quarto e vintena. Segundo o autor foi a primeira regra que lhe apresentaram a primeira vez que entrou na Casa da Índia, desde que se encontrava na cidade de Lisboa. Poder-se-á pensar que Gaspar Nicolas trabalhasse naquela instituição. Outra possibilidade para a sua presença na Casa da Índia, poderia estar ligada à formação dos funcionários, como «mestre em aritmética». Infelizmente não possuímos provas que nos permitam encontrar uma resposta.
Analisando o Tratado da Pratica d’Arismetica apercebemo-nos do seu contributo para a formação de uma mentalidade calculadora, ligada à aritmetização do real, como o afirma Marques de Almeida. A regra de quarto e vintena é disto um exemplo. Entre os três autores quinhentistas, Gaspar Nicolas, Ruy Mendes e Bento Fernandes, foi Nicolas aquele que manifestou uma tendência mais acentuada para apresentar os assuntos como «receitas» prontas a aplicar e trabalhar com os números «despidos» do que representam. Esta característica pode levar-nos a pensar que concebeu as regras comerciais para que outros, com menos preparação, as pudessem aplicar.
A obra de Nicolas reflete uma abordagem inovadora da Matemática. Para além dos temas comerciais inclui outros considerados tradicionais. Referimo-nos às progressões, ao cálculo de raízes e a diversos problemas para determinar números usando as regras de falsa posição (oposição). Estes temas, embora associados a processos calculatórios, apresentam esboços de um ideal muito próximo do pensamento matemático, como a determinação dos valores aproximados das raízes quadradas e os problemas com progressões. Gaspar Nicolas resolveu problemas para determinar números e discutiu questões de impossibilidade. Os enunciados propostos conduzem-nos à resolução de equações que atualmente designamos por irracionais e à resolução de sistemas de equações lineares associados a problemas ditos comerciais, tais como as regras de companhias, e ainda, a enunciados com características lúdicas. Os problemas estão arrumados de modo a permitir a construção de um saber matemático, uma vez que começam pela aplicação direta das regras previamente estabelecidas, prosseguindo com metodologias que conduzem à determinação de outras variáveis em situações mais complexas. Esta situação não é de todo inédita entre os aritméticos renascentistas que, habitualmente, conjugaram a apresentação de problemas concretos com outros pseudo-concretos e longe das «companhias de mercadores».
Ainda que a noção de percentagem seja conhecida em alguns tratados escritos nas cidades italianas, não é contudo, um assunto vulgarizado. Nos reinos de Espanha este tema está presente nos problemas de «companhias» que envolvem o «tanto por cento», nos tratados de Juan Ortega, Juan Andrés e Joan Ventallol. Os aritméticos portugueses de Quinhentos vulgarizaram a «percentagem» nos múltiplos problemas enunciados e resolvidos com as regras de companhias, sem contudo traduzirem o imposto de quarto e vintena por uma percentagem. Gaspar Nicolas enunciou as companhias à razão de «tanto por cento/tanto por tanto».
As regras de companhias são um meio de partilha proporcional. Contudo, as propriedades das proporções não figuram na obra de Nicolas mas são «identificadas» através dos enunciados e das resoluções, respetivas. A diversidade de problemas propostos visa, sobretudo, conhecer os ganhos individuais dos sócios na companhia, o que nos parece ser natural no seio dos negócios. Contudo, nos enunciados expostos deparamo-nos, com outras «incógnitas», tais como os investimentos individuais ou tempos na companhia entendidos como questões «menos naturais» e que, visam sobretudo, uma vontade de manipular os entes matemáticos desligados do mundo mercantil. Esta característica é notável nos enunciados com um cariz mais lúdico dedicados a enigmas, a jogos, a heranças ou ao relato de situações «engraçadas».
No Tratado da Pratica d’Arismetyca Gaspar Nicolas deixou claro quais foram as suas fontes, através das múltiplas referências a Frei Lucas de Burgo (Luca Pacioli). O livro de Nicolas está longe de ter as características enciclopédicas do Summa (1494) que parece ter sido uma fonte e um modelo de organização que predominou na arquitetura dos tratados subsequentes.
Nos tratados ibéricos de aritmética prática escritos nos séculos XV e XVI não é muito comum a presença de uma secção de Geometria. Gaspar Nicolas abordou uma geometria da «medida» aplicada a triângulos, quadrados, círculos, e ainda, outros problemas, com características lúdicas, como o das duas torres, da árvore que quebrou, do chafariz, entre outros que fazem parte de um passado herdado ao longo de gerações de sábios, sendo em muitos casos, difícil determinar a sua proveniência.
O autor do Tratado da Pratica d’Arismetica viu ainda o seu prestígio reconhecido no ambiente da náutica portuguesa. Valentim Fernandes refere-o na sua obra Reportório dos Tempos (O Reportório dos Tempos precedeu de um ano a primeira edição do tratado de aritmética de Nicolas) onde apresentou uma tábua com declinações solares que fora retirada de Zacuto pelo honrado Gaspar Nicolas. Estamos então perante alguém com competências reconhecidas nos saberes da época e bem enquadrado no meio da ciência que então desabrochava no reino português.
Teresa Costa Clain
Universidade de Aveiro
Obras
Gaspar Nicolas. Tratado da Pratica d’Arismetica (1519). [Edição fac-similada: Porto: Livraria Civilização, 1963].
Bibliografia sobre o biografado
Almeida, A. A. Marquesde de. Aritmética como descrição do real (1519–1679). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa 1994.
Machado, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana, tomo II: 364. Lisboa Occidental: António Isidoro da Fonseca, 1741–1759.
Faria, Francisco Leite de. Mais um livro Quinhentista de autor Vimaranense – a edição de 1559 do Tratado da Pratica Darismética, Boletim de Trabalhos Históricos, xxxix (1988).