Vandelli, Domingos (ou Domenico)

Pádua, Itália, 8 julho 1735 — Lisboa, 27 junho 1816

Palavras-chave: Academia das Ciências de Lisboa, Universidade de Coimbra, história natural, jardins botânicos.

DOI: https://doi.org/10.58277/KMLK7838

Domenico Vandelli, italiano de nascimento e educação, fixou-se em Portugal em 1764. Foi com o prenome adaptado de Domingos que as suas contribuições científicas mais conhecidas conheceram letra impressa, sendo unanimemente reclamado como figura relevante do pensamento científico português de finais do século XVIII e inícios do século XIX. O seu percurso científico foi trilhado entre a história natural e a economia política, demonstrando a fertilização mútua de áreas do saber que, na época, ainda não estavam totalmente autonomizadas. Contribuiu de forma decisiva para a criação da Academia Real das Ciências de Lisboa e foram de sua autoria as contribuições mais numerosas e de maior alcance científico publicadas nas coleções de Memórias Económicas daquela instituição.

Foi em Pádua, cidade natal, que Domenico Vandelli concluiu a sua formação universitária nos domínios da medicina e da história natural. Através dos seus primeiros livros, escritos em latim, através das notícias que mais tarde deu das coleções de objetos botânicos, mineralógicos e paleontológicos destinados ao seu museu privado e, sobretudo, através da correspondência que manteve com Carl Lineu, confirmou-se a sua vocação de naturalista atento ao desenvolvimento científico em curso na Europa ilustrada de meados do século XVIII. A boa fama que certamente obteve junto de alguns cientistas e literatos portugueses que na época viviam em Itália, terá estado na origem do convite que lhe foi feito pelo Marquês de Pombal para que se estabelecesse em Portugal. Assim aconteceu, no ano de 1764, integrando uma comitiva de outros professores italianos contratados para lecionar matérias científicas (matemática, química, física e história natural) no Real Colégio dos Nobres. Esta experiência pedagógica fracassou, dada a baixa apetência da aristocracia portuguesa em proporcionar formação científica adequada aos seus descendentes. Regressou temporariamente a Itália para de novo ser chamado por Pombal, em 1765, para projetar e construir o Jardim Botânico da Ajuda, que vira a ser inaugurado em 1768. A partir de 1772, Vandelli e os restantes professores italianos que haviam colaborado na tentativa de inovação pedagógica pre-universitária do Colégio dos Nobres, acabariam por se fixar na cidade de Coimbra, preparando e dando execução à reforma iluminista dos Estatutos da Universidade.

Domingos Vandelli lecionou na Universidade de Coimbra as disciplinas de química e de história natural, fundou o Laboratório de Química e o Gabinete de História Natural da Universidade (em grande parte constituído pelas peças da sua coleção privada trazida de Pádua) e colaborou na criação do Jardim Botânico daquela cidade. Soube aproveitar as condições especiais que lhe foram oferecidas pela Câmara de Coimbra e dedicou-se à produção industrial de cerâmica. Em 1779 e anos precedentes participou ativamente na criação da Academia Real das Ciências de Lisboa, podendo considerar-se como um dos principais mentores da ação da Academia no domínio económico.

Os escritos de Vandelli destacaram-se de forma nítida por entre a abundante literatura de teor económico produzida sob a égide da Academia Real das Ciências de Lisboa. Da sua pena saíram textos programáticos e orientadores do que viria a constituir-se como um dos mais importantes núcleos documentais para o estudo da economia e do pensamento económico português na fase final do antigo regime. As memórias que Vandelli publicou com o selo da Academia revelam uma atenção de pendor descritivo sobre os recursos produtivos do reino e suas colónias, especialmente o Brasil. O seu propósito era claro e as suas intenções transparentes: proceder a um inventário rigoroso e sistemático de recursos e matérias-primas minerais, vegetais e animais, tendo em vista a sua exploração ou utilização económica. Para isso socorreu-se dos seus conhecimentos nos diferentes ramos da história natural e procurou, através de processos sistemáticos de observação e experimentação, demonstrar a utilidade económica de tais conhecimentos.

A criação e administração de jardins botânicos, museus e laboratórios de história natural, a promoção e realização de viagens filosóficas e a organização de inquéritos sobre atividades agrícolas, foram alguns dos instrumentos que privilegiou na construção do conhecimento sobre os recursos disponíveis. Porém, os testemunhos escritos que deixou são comprovativos de uma intenção programada de exercício científico que ultrapassou a simples obtenção de níveis acrescidos de conhecimento, que se afirmou como instrumento de configuração de uma estratégia e de um modelo de desenvolvimento económico, no qual cumpriam papel central os recursos naturais do império, especialmente do Brasil.

Sempre movido por intentos pragmáticos, Vandelli proporcionou informação metodicamente organizada sobre “algumas produções naturais deste reino, das quais se poderia tirar utilidade”, ou “sobre algumas produções naturais das conquistas, as quais ou são pouco conhecidas ou não se aproveitam”, ou “sobre a maior utilidade que se pode tirar de várias produções do Brasil”, ou ainda “sobre as produções naturais do reino, e das conquistas, primeiras matérias de diferentes fábricas, ou manufaturas”. Os títulos das memórias de Vandelli aqui transcritos são suficientemente elucidativos do objetivo que se propunha cumprir e para o qual contava com o beneplácito institucional da Academia Real das Ciências de Lisboa. Através desta instituição era possível construir formas disciplinadas de recolha de informação e manter ativa uma rede de correspondentes e coletores de espécies destinadas a laboratórios e museus.

Para além de explicar o uso imediato que poderia ser feito das matérias-primas minerais, vegetais e animais, Vandelli transmitiu também alguma preocupação com a possível alteração da estrutura produtiva do país, nomeadamente no que se refere à modificação da sua dependência em relação à importação de bens essenciais e sua substituição por bens produzidos internamente. Deste modo, Vandelli ultrapassou a simples descrição naturalista de recursos e centrou a sua análise nos obstáculos físicos ou morais (isto é, naturais ou sociais) do desenvolvimento do setor agrícola, ou ainda nas condições que tornariam possível uma utilização eficiente e sem desperdício dos recursos naturais, humanos e técnicos, tanto na produção como na circulação de produtos e matérias-primas. Esta componente de diagnóstico foi coerentemente acompanhada de propostas de reforma e melhoramento que configuravam uma opção estratégica de desenvolvimento económico do país tendo por base a agricultura.

Tal estratégia foi delineada por Vandelli numa das suas mais célebres memórias, com o sugestivo título de Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas. Vandelli desenvolveu neste texto uma crítica ao sistema de protecionismo manufatureiro seguido em França por Colbert, crítica esta que também deverá ser lida como uma avaliação negativa da congénere política económica pombalina. Também apresentou os seus argumentos a favor de uma maior liberdade de comércio interno e externo como meio de garantir a redução do preço dos bens agrícolas, acompanhando propostas semelhantes então em voga na literatura económica europeia. Mas o que melhor caracteriza o seu texto é a aposta inequívoca numa orientação agrarista da política económica, à qual se subjugaria o processo de desenvolvimento fabril.

O agrarismo vandelliano apresentava algumas semelhanças com o discurso económico produzido pelos fisiocratas franceses. Nalguns momentos, Vandelli chegou mesmo a advogar uma conceção da produtividade exclusiva da agricultura e também se aproximou do conceito fisiocrático de bom preço. Mas ficaram por aí as suas incursões no terreno teórico cultivado pelos discípulos de François Quesnay, autor do célebre Tableau Économique que Vandelli certamente teve oportunidade de ler. A sua recetividade em relação às ideias fisiocráticas limitou-se à aceitação de uma visão da atividade económica que tinha como eixo e motor o setor agrícola.

A importância deste texto de Vandelli não decorre apenas da clareza expositiva com que o autor apresentou as suas orientações em matéria de doutrina e política económicas. Vale também pela forma como consubstanciou o objeto de inquérito e o programa de reformas subjacentes ao conjunto de textos publicados na série de Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa.

A partir do ano de 1791, e após a sua jubilação da Universidade de Coimbra, Domingos Vandelli pôde acompanhar mais de perto os trabalhos da Academia. Mas a sua atenção voltou-se também para outros horizontes. Em Lisboa passou a exercer os cargos de Diretor do Jardim Botânico da Ajuda (regressando assim à instituição que fundara em 1768), e de Deputado da Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação (para a qual fora nomeado em 1788). A sua proximidade da corte vai proporcionar a oportunidade de afirmar os seus méritos como observador e analista de assuntos de âmbito político, diplomático e financeiro. Esta nova etapa da sua vida revela, por conseguinte, uma mudança no objeto fundamental dos seus estudos: ao ciclo de escritos de carácter descritivo e de análise dos problemas estruturais com que se deparava a economia portuguesa, sucede-se um novo ciclo de escritos em que Vandelli surge a discutir temas de acesso reservado a um público mais vasto, com destinatários restritos, opinando sobre a condução da diplomacia externa portuguesa e esboçando propostas de reorganização financeira.

Num conjunto vastíssimo de memórias e pareceres que redigiu nos anos de 1796 e 1797—os quais se mantiveram inéditos até 1994—Vandelli deu conta da sua preocupação perante o envolvimento português nos confrontos de guerra e de resistência às pretensões hegemónicas francesas. A participação de tropas portuguesas nas campanhas do Roussillon e Catalunha e os riscos de um alastramento dos conflitos e palcos de guerra, justificavam a antecipação de reformas que viabilizassem o financiamento dos gastos militares adicionais. Tal era o pretexto para as sugestões de Vandelli sobre contenção de despesas supérfluas, sobre a racionalização da administração financeira, a elaboração de orçamentos e a melhoria dos sistemas de arrecadação fiscal, e ainda sobre o lançamento de novos impostos e a ampliação das fontes de rendimento da coroa através da alienação de uma parte dos seus próprios bens.

As reformas propostas por Domingos Vandelli denotavam alguma sintonia com o programa de saneamento fiscal e financeiro delineado e executado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Uma diferença, porém, viria a revelar-se dramática para Vandelli: na conjuntura das Guerras Napoleónicas—em que Portugal manteve sempre firme a sua aliança com a Inglaterra—Vandelli manifestou-se claramente contra tal opção estratégica e em diversas ocasiões confessou a sua simpatia por uma atitude de cedência em relação às pretensões hegemónicas francesas.

Durante o período de ocupação francesa em Lisboa, a colaboração de Vandelli com as tropas de Junot terá chegado ao ponto de proporcionar o desmantelamento e transferência para França de importantes coleções museológicas de história natural, sobretudo de espécies colhidas no Brasil. Por essas e outras razões, e não obstante a sua idade já muito avançada, viria a conhecer a expatriação e o exílio na Ilha da Madeira, em 1810, após a entrada vitoriosa do Duque de Wellington em Lisboa. Por pressão de alguns pares académicos de outros países viria a ser libertado e, após breve passagem por Londres, regressaria a Portugal em 1815, vindo a morrer no seu país de adoção no ano seguinte, mais de cinquenta anos volvidos desde a sua primeira chegada a Lisboa.

A desgraça a que o velho Vandelli foi votado no final da sua vida não fez esquecer a obra pioneira que desenvolveu em prol do conhecimento das características dos recursos naturais de Portugal e do seu império, tendo em vista a sua utilização económica.

José Luís Cardoso
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

Arquivos

Lisboa, Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Arquivo Histórico do Museu Bocage

Obras

Aritmética Política, Economia e Finanças (1770-1804). Lisboa: Banco de Portugal, 1994. [Coleção de Obras Clássicas do Pensamento Económico Português, ed. José Vicente Serrão].

Memórias de História Natural. Porto: Porto Editora, 2003. [Coleção Ciência e Iluminismo, ed. José Luís Cardoso].

Bibliografia sobre o biografado

Brigola, João Carlos. Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2003.

Cardoso, José Luís. “Os escritos económicos e financeiros de Domingos Vandelli.” Ler História 13 (1988): 3–-51.

Cardoso, José Luís. O Pensamento Económico em Portugal nos Finais do Século XVIII (1780-1808). Lisboa: Editorial Estampa, 1989.