Setúbal, 9 outubro 1832 — Caconda (Huíla), Angola, 14 setembro 1897
Palavras-chave: Zoologia; Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa, Exploração Zoológica de Angola.
DOI: https://doi.org/10.58277/EQQX9417
José Anchieta (1832-1897) foi o mais importante colaborador da Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa, sito na Escola Politécnica de Lisboa, no período da direção de José Vicente Barbosa du Bocage. Foi contratado pelo governo português para a exploração zoológica de várias províncias de Angola, trabalho que desempenhou desde 1866 até à sua morte em 1897. O fruto da sua ocupação como colector e explorador científico do sertão angolano ficou sobretudo registado na obra zoológica de Bocage sobre os territórios de Angola. Como reconhecimento da importância científica e política das colecções que enviou para Lisboa foi agraciado, em 1869, como Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada, e, em 1879, com a Medalha de Ouro da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Anchieta foi o filho primogénito do general José Maria Anchieta Portes Pereira Sampaio, e de Maria do Carmo de Oliveira. Foi aluno do Colégio Militar e frequentou a Escola Politécnica de Lisboa (1849) e a Universidade de Coimbra (1858-1859), sem ter terminado nenhum dos cursos superiores em que se inscreveu. Foi contemporâneo de Bulhão Pato e de Brito Rebelo que o descreveram como um jovem despreocupado, que preferia tocar a sua rabeca a terminar um curso ou a aprender uma profissão. Quando soube que o seu pai tinha dissipado o morgadio que lhe caberia, não se inquietou, surpreendendo os seus amigos. Em Lisboa, na Escola Politécnica, foi aluno de Bocage. Foi ainda colega e amigo de Francisco António Pinheiro Bayão, o primeiro colaborador sistemático da Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa, e de Félix Brito Capelo, futuro assistente naturalista de Bocage. Em 1854, Anchieta viaja por sua própria conta a Cabo Verde onde ficou algum tempo devido a um bloqueio causado por uma epidemia de cólera, e onde ajudou a população graças aos seus conhecimentos médicos. Voltou a Portugal, esteve em Lisboa e em Coimbra, fez ainda uma viagem a Londres e Paris onde frequentou aulas de medicina e de história natural.
Em 1864, Anchieta fez uma segunda viagem a África, desta vez para o sertão angolano. Em Duque de Bragança (actual Kalandula, Malanje) encontrou-se com Bayão, então alferes do Exército, que foi, entre 1863 e 1865, o mais constante colaborador de Bocage enviando várias remessas de animais, incluindo várias espécies novas, de Angola para o Museu de Lisboa. Anchieta começou a coligir materiais zoológicos e, nesse ano, enviou a sua primeira remessa para o museu de Lisboa. Entretanto, Bayão recebeu uma proposta de Bocage para uma comissão como explorador-naturalista para o museu. Bayão recusa a oferta e sugeriu o nome de Anchieta, que já tinha dado provas de resistência ao clima e de proficiência como colector. Em 1866, Anchieta assina um contrato para a exploração zoológica de Angola, com recomendação e supervisão científica de Bocage.
A partir de 1866, Anchieta dedicou-se metodicamente ao estudo da história natural do sertão angolano, seguindo as directrizes do contrato que assinou com o governo português. Este contrato previa a exploração zoológica dos territórios que compunham na época a África Ocidental Portuguesa, territórios maioritariamente dentro das fronteiras actuais de Angola e ilhas de São Tomé e Príncipe. Anchieta deveria explorar, e remeter para o museu de Lisboa, seguindo instruções técnicas de Bocage, materiais zoológicos das zonas costeiras desde o rio Loge (Cuanza Sul), até ao rio Cunene (Namibe), e o sertão em Caconda e Huíla, desde Duque de Bragança (Kalandula) até ao Cunene, para além das ilhas de S. Tomé e Príncipe. Antes de partir para esta missão, em Lisboa, casou-se com Maria Amália de Almeida (1829-1883). Maria Amália não se adaptou como o seu marido ao clima sertanejo e regressou a Lisboa dois anos depois. O casal não teve descendência. Anchieta, no entanto, teve dois filhos mestiços: José e Maria Carlota. O seu filho José acompanhou-o, enquanto jovem nalgumas das tarefas do trabalho de campo de história natural.
Em 1877, quando a exploração científica do sertão africano liderada por Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Alexandre Serpa Pinto encontra Anchieta, a sua cubata em Caconda foi descrita e desenhada por Serpa Pinto como um autêntico laboratório de história natural. Onde se estabelecia, na costa ou no sertão, Anchieta rodeava-se dos materiais necessários à exploração e colecção de objectos naturais, tentando na sua constante correspondência com Bocage pedir sempre por mais condições para poder fazer melhor o seu trabalho. Anchieta desenvolvia o seu cargo usando vários tipos de materiais e instrumentos, tais como frascos, latas, reservas de álcool, livros de referência, alfinetes para espetar insectos, papel para herborizar, gaiolas para prender animais vivos, uma câmara fotográfica e lentes, um microscópio, um teodolito, uma luneta, etc. Para a sua função de explorador-naturalista, Anchieta tinha de orientar o seu trabalho no meio de um clima hostil, doenças e situações políticas difíceis. Tinha ainda de gerir ajudantes e carregadores, sobas e governadores. Na sua correspondência com Bocage, escreveu sobre a situação geográfica das espécies novas que encontrou, sobre as suas dificuldades financeiras, e faltas de materiais, e também sobre os vários conflitos sociais e políticos que interferiam com as suas viagens e explorações sempre que quis entrar mais longe no sertão.
A relação entre Anchieta e Bocage foi profícua na medida em que resultou na crescente importância das colecções africanas na Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa. Anchieta foi o colaborador mais assíduo e mais sistemático do Museu de Lisboa e ajudou a construir a carreira de Barbosa du Bocage como um especialista de nível internacional em taxonomia africana. Manteve sempre correspondência com Barbosa du Bocage, e através dele, com a sociedade lisboeta. Em Lisboa, Bocage acompanhou sempre de perto a vida de Anchieta e, através dele, recebia informações privilegiadas sobre os acontecimentos sociais e políticos do sertão.
O trabalho de revisão taxonómica publicado por Bocage em dezenas de artigos e duas importantes monografias Ornithologie d’Angola e Herpétologie d’Angola et Congo, incorpora muitas vezes as notas que o próprio Anchieta escrevia e que acompanhavam cada remessa e por vezes cada espécime. O único opusculo que assinou foi dedicado à geologia de Angola, publicado em 1885, e que viria a ser um auxiliar para as publicações de Paul Choffat, já que as suas remessas mineralógicas para Lisboa contribuíram para a constituição das colecções do museu da Comissão Geológica. Contribuiu ainda para o aumento e qualidade das colecções botânicas da Universidade de Coimbra, tendo enviado remessas directamente para Júlio Henriques, director do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. A contribuição de Anchieta foi imprescindível para o crescimento do conhecimento sistemático, e de base científica, da fauna, flora e geologia dos territórios portugueses em África, corroborando a agenda técnico-científica da Regeneração e a posição diplomática de Portugal face à pressão europeia para uma ocupação efectiva desses territórios.
Depois de mais de trinta anos de serviço ao governo português, faleceu no regresso de uma expedição em 1897, em Caconda, onde foi sepultado. As várias remessas zoológicas que enviou ao Museu de Lisboa, permitiram a identificação de mais de uma centena de espécies do território africano novas para a ciência. Mais de uma dezena de espécies portam ainda hoje o epónimo anchietae, reconhecendo o trabalho importante do explorador-naturalista.
Arquivos
Lisboa, Arquivo Histórico Ultramarino (SEMU, DGU, 3ªRep, Nº ORDEM 229/1ªS-D1, 1885-1901, Exploradores – José de Anchieta).
Lisboa, Arquivo Histórico do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Universidade de Lisboa (Arquivo Histórico Museu Bocage, Remessas).
Coimbra, Universidade de Coimbra, Departamento de Botânica (Fundo JH – Pasta A-Ba (25) – ANC (J)-1).
Obras
Anchieta, José de. Traços geológicos da Africa Occidental Portugueza, 12, Benguela: Typ. Progresso, 1885. Também publicado em Anchieta, José de, “Traços geológicos da Africa Occidental Portugueza”, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 5ª Série, Nº9 (1885): pp.525-529.
Bibliografia sobre o biografado
Andrade, António Alberto Banha de Andrade. O Naturalista José Anchieta. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985.
Dias, Gastão Sousa. José de Anchieta. Colecção Pelo Império, 58. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1939.
Araújo, Nuno Borges de. “Fotografia científica em Angola no último quartel do século XIX: o caso do naturalista José de Anchieta” in Filipa Lowndes Vicente (org.), O Império da Visão: Fotografia no Contexto Colonial Português: 1860-1960 (Lisboa: Edições 70, 2014), 171-181.
Pato, Raymundo Bulhão. Memorias. Cenas de infância e homens de letras, Tomo I. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1986.