n. Covilhã? — m. 1576
Palavras-chave: Expansão marítima, navegação, cosmografia, Casa de la Contratación.
DOI: https://doi.org/10.58277/XFJO7282
Francisco Faleiro (Falero na sua forma castelhanizada) foi um cosmógrafo português do século XVI que desenvolveu a sua atividade científica em Sevilha na Casa de la Contratación, o principal centro de ciência aplicada em Espanha neste período sustentado pela Coroa. Faleiro ocupou um papel destacado no âmbito da náutica vinculado à expansão marítima nas décadas centrais de quinhentos, especialmente como autor do Tratado del esfera y del arte del marear, con el regimiento de las alturas, con algunas reglas nuevamente escritas muy necessárias, publicado em espanhol em Sevilha em 1535; e também pelo seu contributo em diversos debates científicos e diplomáticos surgidos dentro da mencionada instituição sevilhana. Estes foram, entre outros a construção e atualização do Padrón Real (Padrão Real), o principal modelo cartográfico da Casa; a utilidade das cartas náuticas de dupla ou de múltiplas graduações (isto é, desenhadas com duas ou mais escalas de latitudes) fabricadas por Diego Gutiérrez nos anos quarenta; ou a reabertura das discussões ao redor do velho problema da localização do antemeridiano. No âmbito pessoal, Francisco Faleiro foi casado com María Manrique, pertencente a uma família sevilhana relativamente abastada. Não se conhece descendência do seu matrimónio.
São poucos os dados que se conhecem da vida de Francisco Faleiro, assim como da vida do seu irmão Rui Faleiro, também cosmógrafo. Como muitos outros portugueses nas primeiras décadas do século XVI, ambos chegaram a Sevilha vindos de Portugal no ano de 1517 ou 1518 no contexto do projeto ultramarino de Fernão de Magalhães. Este projeto, de atingir as Ilhas Molucas (também conhecidas como as ‘Ilhas das Especiarias’) por Ocidente, finalmente seria aceite pelo rei de Espanha, Carlos I (Carlos V do Sacro Imperio Romano Germânico). Este exílio português em Sevilha estava diretamente relacionado com as possibilidades que se abriam às pessoas vinculadas com o mundo marítimo perante a expansão Europeia. A cidade de Sevilha, e especialmente a Casa de la Contratación, eram lugares onde um perito em assuntos de náutica e cosmografia podia construir um futuro. Desde a sua chegada à cidade espanhola Faleiro esteve envolvido, junto com o seu irmão e outros compatriotas, como o cartógrafo Diogo Ribeiro, na preparação da primeira circum-navegação ao globo, a expedição de Magalhães-Elcano, que teve lugar entre 1519 e 1522.
Faleiro desenvolveu a maior parte da sua vida profissional, se não toda, em Sevilha. A partir de 1518, e durante as décadas seguintes, ficou associado a tarefas náuticas efetuadas no contexto da Casa de la Contratación, como a supervisão da preparação de frotas ou a avaliação de instrumentos de navegação, trabalhos pelos quais acabaria recebendo 35,000 maravedís (antiga moeda espanhola) anuais que mais tarde aumentaram para 50,000 maravedís.
Em 1531, depois de mais de uma década ao serviço da Coroa espanhola, Francisco Faleiro solicitou, numa memória dirigida ao rei, ajuda económica para ele e para o seu irmão pelos serviços prestados como cosmógrafos. As necessidades económicas dos Faleiro e o desespero era tão grande que Francisco intimidou Carlos V que deixaria o país e iria servir outro monarca. O rei aceitou o pedido de Francisco e a partir desse ano foram enviadas várias cartas reais aos oficiais da Casa para executarem pagamentos aos Faleiro pelos seus serviços. Antes desta memória, a relação entre os Faleiro e a Coroa foi difícil. Segundo o acervo documental conservado no Archivo General de Indias, em Sevilha, houve uma ordem real onde se proibia que os irmãos Faleiro fizessem parte da armada de Magalhães. Francisco parece ter respondido a essa ordem ao não ter entregado os seus estudos sobre a determinação da longitude para a viagem a Magalhães, como se tinha comprometido.
Em 1535, Faleiro publicou a única obra da sua autoria que se conhece, o Tratado del esfera y del arte del marear, dando assim início, junto com a Suma de geografia de Martín Fernández de Enciso, publicada também em Sevilha em 1519, a uma prolífica produção de tratados de navegação e cosmografia em vernáculo. Estes tratados, como os redigidos por Pedro de Medina, Martín Cortés, Juan Escalante de Mendoza, Rodrigo Zamorano ou Andrés García de Céspedes, entre outros, foram rapidamente traduzidos noutras línguas europeias e tiveram um impacto significativo a partir da segunda metade do século XVI em diante. Os livros de navegação como estes tinham um estilo muito particular. Os temas de carácter teórico que tratavam, por exemplo, teorias cosmográficas, rudimentos de astronomia geralmente baseados noTratado da Esfera de Sacrobosco, regras matemáticas ou o uso de instrumentos náuticos, eram explicados de uma forma sequencial semelhante aos manuais e livros de regras dos artesãos. Tratavam-se de livros que abordavam problemas específicos com objetivos muito pragmáticos, como sejam formar pilotos e outros marinheiros. Os conteúdos eram organizados como uma série de instruções para utilização prática dos navegantes.
O Tratado de Faleiro mereceu a aprovação do prestigiado professor de astrologia da Universidade de Salamanca, o Doutor Salaya. O livro foi dedicado ao presidente do Consejo de Indias, Dom García Fernández Manrique y Toledo. Trata-se de um tratado de navegação dividido em duas partes claramente distintas. A primeira delas, como era habitual neste género, oferece uma versão estandardizada e simplificada da Esfera de Sacrobosco. A segunda é um guia prático dedicado à arte de navegar, onde se destacam essencialmente os capítulos destinados à declinação magnética e os métodos e instrumentos por ele sugeridos para a obtenção do valor da declinação através de observações solares. Merecem ainda uma menção especial o sexto capítulo desta segunda parte, dedicado ao ‘regimento de las alturas del sol’ (regimento das alturas do Sol) e o capítulo oitavo sobre a declinação da agulha magnética, tema que também interessou a Rui Faleiro. É neste capítulo que Francisco introduz um novo instrumento em forma de placa circular e quatro métodos diferentes para a obtenção do valor da declinação.
Vários exemplares da obra de Faleiro podem encontrar-se hoje em bibliotecas espanholas, entre elas a Biblioteca Nacional de Espanha (Madrid), o Museu Naval de Madrid, a Biblioteca Universitária de Salamanca e a Biblioteca Geral de Navarra (Pamplona). Existem diversas edições da obra, todas elas fac-similes, produzidas ao longo do século XX. O historiador português Joaquim Bensaúde publicou uma edição em 1915, no quarto volume da sua Histoire de la science nautique portugaise à l’époque des grandes découvertes: collection de documents publiés par ordre du Ministère de l’Instruction Publique de la République Portugaise. Só mais tarde apareceram as edições de Rafael Arroyo (1989), de Timothy Coates (1997) e de José Ignacio González-Aller Hierro (em CD-ROM, 1998). O referido capítulo oitavo da obra foi traduzido para língua inglesa em 1943.
No mesmo ano da publicação do seu tratado, Faleiro seria chamado para examinar os instrumentos náuticos fabricados pelo cosmógrafo Gaspar Rebelo. Poucos anos mais tarde, voltaria a ser consultado para um outro assunto de maior relevância: a construção de cartas náuticas e de um modelo cartográfico na Casa de la Contratación. Por volta de 1538, depois da visita à Casa do visitador do Consejo de Indias, Juan Suárez de Carvajal, para trabalhar na reforma do Padrón Real iniciada em 1536, surgiu na instituição sevilhana um importante debate entre o Piloto Mayor (Piloto-Mor) Sebastian Caboto e o cartógrafo Diego Gutiérrez, por um lado, e outros cosmógrafos da Casa por outro lado, nomeadamente Pedro de Medina e Alonso de Chaves. O debate girou em torno da adequação da carta padrão e das cópias dele tiradas, assim como das cartas de múltiplas graduações construídas por Gutiérrez. No fundo, este debate nasceu por causa dos problemas provocados pela declinação magnética na navegação oceânica e, em consequência, na cartografia. Desde o início, o debate foi convertido num confronto entre apoiantes do conhecimento prático e simpatizantes do conhecimento teórico, entre pilotos e cosmógrafos, entre homens de mar e homens com formação teórica e universitária. Defensores e detratores das cartas feitas de acordo com o Padrón Real (com uma única escala de latitudes) ou das cartas feitas segundo as fazia Gutiérrez (com duas ou mais escalas, tentando assim corrigir a variação) mantiveram uma intensa disputa que se prolongou durante vários anos. Foi no contexto desta discussão que Faleiro, e outros cosmógrafos especializados como Alonso de Santa Cruz e Pedro Mejía, deu a sua opinião sobre o assunto em Maio de 1544. O parecer do cosmógrafo português foi ao coração do problema: o sistema deficiente de coleta de informação da Casa, ou melhor, a falta de um sistema padronizado de recolha de dados. Segundo Faleiro, esta era a origem de todos os problemas, que tinha como consequência a ausência de um modelo cartográfico preciso e adequado. Em simultâneo, Faleiro criticou as cartas fabricadas por Gutiérrez, as quais lhe pareciam ir contra a arte da navegação.
Em 1566, o rei Filipe II (Filipe I de Portugal) reabriu a antiga querela ibérica pela posse e direitos das Molucas com o objetivo de conhecer a posição geográfica das Filipinas em relação aos acordos estabelecidos no Tratado de Zaragoza de 1529. O dito tratado, assinado entre Espanha e Portugal como consequência do anterior Tratado de Tordesilhas (1494), determinava que as Molucas ficavam de lado espanhol, sendo estas alugadas pela Coroa espanhola a Portugal para a sua exploração comercial. Mais uma vez, o rei pediu parecer científico a vários cosmógrafos ligados à Casa de la Contratación, entre os quais se encontrava Faleiro. Não restam dúvidas que, desde a sua chegada a Sevilha, Francisco desenvolveu importantes tarefas como consultor científico da Casa, na maioria dos casos sobre assuntos de enorme relevância para a política expansionista da monarquia espanhola.
Além do seu trabalho científico, as fontes arquivísticas revelam também que Faleiro esteve intensamente envolvido, desde a sua chegada a Sevilha, em problemas pessoais que o levaram a manter diversos litígios com a sua cunhada, Eva Alonso, também portuguesa. Uma vez que o seu irmão Rui ficou mentalmente insano, durante a preparação da expedição de Magalhães, foi Francisco quem tomou conta dele e também era quem recebia uma importante soma de dinheiro como pensão pelos serviços que Rui tinha prestado à Coroa espanhola, quer na Casa quer como membro da Ordem de Santiago. Desavenças económicas parecem ter levado aos prolongados confrontos entre Francisco e a mulher do seu irmão. Uma das curiosidades deste caso foi que em 1526 Diogo Ribeiro, destacado cosmógrafo português da Casa de la Contratación, se declarou em favor de Eva Alonso. Desconhecem-se os motivos para tal. No final, Francisco Faleiro parece ter saído vitorioso.
Antonio Sánchez
Universidad Autónoma de Madrid
Arquivos
Sevilha, Archivo General de Indias
Justicia, 1146, N.3, R.2, Bloque 1, f. 6v.
Justicia, 1161, N.2; Justicia, 704, N.2.
Contratación, 5784, L.1, F.58; Contratación, 5784, L.1, f. 34; Contratación, 752.
Patronato, 49, R.12; Patronato, 285, R.195; Patronato, 276, N.3, R.69; Patronato, 34, R.8; Patronato, 34, R.19.
Indiferente, 425, L.24, f. 300v-301r; Indiferente, 421, L.12, f. 18v-20r; Indiferente, 1961, L.3, f. 284; Indiferente, 421, L.12, f. 311r; Indiferente, 1961, L.2, f. 216v-217; Indiferente, 1963, L.7, f. 191r-191v; Indiferente, 421, L.12, f. 132r-132v; Indiferente, 421, L.12, f. 70v (2); Indiferente, 1961, L.2, f. 7-8; Indiferente, 1952, L.1, f. 48v-49; Indiferente, 422, L.14, f. 32r; Indiferente, 421, L.13, f. 279v-280r; Indiferente, 737, N.15.
Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Corpo Cronológico, P. 1.ª, maço 13, doc. 20: Carta de Sebastião Álvares ao ReiManuel I, 18 de Julho de 1519.
[Citado em Fernández de Navarrete, Martín. Colección de los viajes y descubrimientos que hicieron por mar los españoles desde fines del siglo XV, Tomo IV. Madrid: Imprenta Real, 1825-37, p. 155; e em Cortesão, Armando e Teixeira da Mota, Avelino. Portugaliae Monumenta Cartographica, Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987, p. 20.]
Obras
Faleiro, Francisco. Tratado del esfera y del arte del marear; con el regimiento de las alturas; con algunas reglas nuevamente escritas muy necesarias. Sevilla: Juan Cromberger, 1535.
Faleiro, Francisco. Tratado del esphera y del arte del marear; con el Regimiento de las alturas. In Joaquim Bensaúde, Histoire de la science nautique portugaise à l’époque des grandes découvertes: collection de documents publiés par ordre du Ministère de l’Instruction Publique de la République Portugaise, Vol. 4. Munich: J. B. Obernetter, 1915.
Falero, Francisco. Tratado de la esfera y del arte de marear. Con el regimiento de las alturas. Con algunas reglas nuevamente escritas muy necesarias. Madrid: Ministerio de Defensa-Ministerio de Agricultura, Pesca y Alimentación, 1989. Edição de Rafael Arroyo.
Bibliografia sobre o biografado
Collins, Edward. “Francisco Faleiro and Scientific Methodology at the Casa de la Contratación in the Sixteenth Century.” Imago Mundi 65 (1) (2013): 25–36.
Gavira Martín, José. La ciencia geográfica española del siglo XVI: Martín Cortés, Martín Fernández de Enciso, Jerónimo de Chaves y Francisco Falero. Madrid: Imprenta del P. de H. de Intendencia e Intervención Militares, Caracas, 1931.
Gil, Juan. El exilio portugués en Sevilla: de los Braganza a Magallanes. Sevilla: Fundación Cajasol, 2009.
Serrão, Joaquim Veríssimo. “Um memorial de Francisco Faleiro ao Imperador Carlos V, 1531.” Arquivos do Centro Cultural Português I (1969): 451–454.
Teixeira da Mota, Avelino. “Contribuição dos irmãos Rui e Francisco Faleiro no campo da náutica em Espanha.” In A viagem de Fernão de Magalhães e a questão das Molucas: actas do II Colóquio Luso-Espanhol de História Ultramarina, ed. Avelino Teixeira da Mota, 315—341. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975.