Correia, Fernando da Silva

Sabugal, 20 maio 1893 – Lisboa, 19 dezembro 1966

Palavras-chave: medicina, higienismo, ensino, termalismo.

DOI: https://doi.org/10.58277/LULJ1669

Fernando da Silva Correia foi filho de Joaquim Manuel Correia (1858–1945), advogado e autor das obras Memórias sobre o concelho do Sabugal: terras de Riba-Côa e Celestina: episódios da última guerrilha carlo-miguelista

Licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1917, tirou em Lisboa as especialidades de Medicina Sanitária em 1920 e de Hidrologia em 1921. O curso de Medicina Sanitária, ministrado no Instituto Central de Higiene, fornecia a habilitação necessária para o exercício do cargo de delegado de saúde, cujas funções, a nível distrital, incluíam a direção técnica dos serviços sanitários, o licenciamento dos estabelecimentos, a fiscalização da higiene industrial e do trabalho operário ou agrícola, a higiene infantil e as condições sanitárias da população em geral.

Fernando da Silva Correia estabeleceu prática clínica nas Caldas da Rainha em 1919 e em 1921 assumiu os cargos de médico municipal e delegado de saúde. Em 1934, foi nomeado inspetor da Terceira Área da Saúde Escolar para os distritos de Castelo Branco, Guarda, Setúbal, Portalegre, Évora, Beja e Faro e iniciou a sua carreira docente como professor de Administração Sanitária, Estatística Sanitária, Higiene Social e Assistência Social e Demográfica no Instituto Central de Higiene Dr. Ricardo Jorge (novo nome atribuido em 1929 em homenagem ao seu fundador), do qual foi diretor de 1946 a 1961. Entre 1935 e 1957 foi também docente no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, leccionando Profilaxia das Doenças Venéreas, Legislação Sanitária e História da Assistência. 

A sua vasta obra científica, com mais de uma centena de títulos de livros e artigos publicados em revistas como a Clínica, Higiene e Hidrologia (publicada entre 1935 e 1957, dirigida por Armando Narciso e especializada em higiene e termalismo), entre outras, incidiu sobre os temas da higiene e da saúde pública, abrangendo com especial preocupação as questões ligadas à infância, à higiene escolar e à necessidade da educação física e do desporto, ao mesmo tempo que denunciou os exageros dos desportos mais violentos. Os conceitos de medicina social, serviço social e assistência também foram amplamente debatidos na sua obra que teve uma clara intenção pedagógica. O seu trabalho mais significativo foi sem dúvida Portugal Sanitário, publicado em 1938, no qual colocou em evidência os “15 anos de experiências sanitárias e médico-sociais, acompanhadas do estudo do que se fazia no resto do País e no estrangeiro” e desenvolveu a história da higiene, da epidemiologia e da política sanitária em Portugal, salientando os seus aspetos mais importantes, como a endemiologia e a epidemiologia. Salientou ainda os principais procedimentos de profilaxia (imunização e salubridade); defendeu a frequência da praia como medicina preventiva, tratamento da tuberculose e robustecimento do organismo pela natação e remo; e apresentou a tuberculose, a sífilis e o alcoolismo como flagelos sociais, especialmente esta última, que descreveu como sendo uma patologia hereditária que constituia uma “arma de enfraquecimento da raça”, um discurso que se insere nas teorias eugenistas correntes na sua época. Concluiu com a descrição das principais necessidades país em termos de obras de saneamento e resolução de “erros sanitários”. 

Após uma incursão de juventude pelo teatro, com a públicação, nos seus tempos de estudante, da peça A Máscara, publicada em 1914, Silva Correia também se aventurou pela literatura, publicando em 1933 a obra Vida errada: o romance de Coimbra. No entanto, é na história e na biografia, especialmente nos temas ligados à saúde, que mais de metade dos seus títulos se insere. Desenvolveu repetidamente temas ligados à história do termalismo, à história da medicina, com especial interesse sobre a história clínica e o diagnóstico das causas de morte das personagens mais marcantes da família real desde a época medieval, as únicas a cujas fontes ele teria acesso. Também a história das misericórdias o ocupou bastante. Nas biografias o destaque foi para médicos e professores de medicina, apreciando especialmente Ricardo Jorge e Maximiano de Lemos.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

Correia, Fernando da Silva. Profilaxia das febres tifoides e paratifoides A. e B. pela vacinação. Coimbra: Casa Tipográfica, 1919. 

Correia, Fernando da Silva. Guia prático das águas minero-medicinais portuguesas. Coimbra: Livr. Ed. Moura Marques & Filho, 1922. 

Correia, Fernando da Silva. Doenças sociais e higiene. Caldas da Rainha: Dispensário de Profilaxia Social, 1932. 

Correia, Fernando da Silva. A educação física e a medicina em Portugal. Lisboa: s. n., 1935. 

Correia, Fernando da Silva. Esbôço da história da higiene em Portugal. S. l.: s. n., 1937. 

Portugal Sanitário (Subsídios para o seu estudo). Lisboa: Ministério do Interior – Direção Geral de Saúde Pública, 1938.

Correia, Fernando da Silva. Alguns aspectos do problema do alcoolismo em Portugal. S. l.: s. n., 1938. 

Correia, Fernando da Silva. Higiene rural: cartas abertas a um jovem médico / Velho Galeno. Coimbra: Federação dos Grémios da Lavoura da Província da Beira Litoral, 1942.

Correia, Fernando da Silva. “Portugal, pioneiro da assistência termal.”  Clínica, Higiene e Hidrologia 23 (1957): xx-xx[1] . 

Correia, Fernando da Silva. O conceito de medicina social. Coimbra: s. n., 1958. 

Bibliografia sobre o biografado

“Fernando da Silva Correia”. In Infopédia. Online. Disponível em: www.infopedia.pt/$fernando-da-silva-correia. Consultado em 5 de julho de 2022.

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Graça, Luís. 2000. História da Saúde no Trabalho. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa.

Pimentel, Manuel

Lisboa, 10 março 1650 — Lisboa, 19 abril 1719

Palavras-chave: Cosmógrafo-mor, astronomia náutica, ensino, Arte de Navegar.

DOI: https://doi.org/10.58277/ANDI7222

Manuel Pimentel, um erudito ao serviço do rei e da Corte na transição do século XVII para o século XVIII.

Manuel Pimentel (ou Manuel de Pimentel e Vilalobos, de seu nome completo) foi o segundo filho de Luís Serrão Pimentel e de D. Isabel Godines; foi baptizado na freguesia de Santa Justa, em Lisboa, a 20 de março de 1650. Casou em 1689 com sua prima, D. Clara Maria de Miranda, filha de Filipe Serrão Pimentel e de D. Brites Aires Teresa, de quem teve uma filha, D. Brites Teresa Pimentel, e um filho, que lhe sucedeu enquanto cosmógrafo-mor, Luís Francisco Pimentel.

Estudou no Colégio de Santo Antão, onde terá frequentado a Aula da Esfera, sendo que a náutica estava incluída no programa das lições desde o tempo do P. Francisco da Costa, de quem se conhece uma Arte de Navegar, tida como apostilha das suas aulas no Colégio, tal como acontecera com o P. Cristóvão Bruno, que também iniciava as suas lições pela Arte de Navegar. Esta tradição terá sido continuada por Valentim Estancel, sendo possível que, embora muito novo, Manuel Pimentel tenha sido seu discípulo (professorado entre 1660–64, havendo, porém, algumas dúvidas quanto a Estancel ter leccionado também em Lisboa ou se o fez apenas na Universidade de Évora). Também discípulo de seu pai, tal como seu irmão Francisco, Manuel Pimentel desenvolveu a sua obra no domínio da navegação, das matemáticas e da cosmografia.

Demonstrou paralelamente ao ensino uma excelente erudição, fruto de uma educação cuidada, revelando bem cedo a sua capacidade poética e o domínio do latim, ao compor, aos 14 anos a Vida de S. Francisco Xavier. Avançou nos estudos na Universidade e Coimbra, onde se graduou em 1674 em Direito e em Cânones, sendo vontade do pai que ele seguisse a jurisprudência junto da Corte ou a carreira eclesiástica, reservando para o primogénito, Francisco Pimentel, os cargos por si exercidos (cosmógrafo-mor e engenheiro-mor). Cedo, porém, revelou capacidades no domínio da Cosmografia, e, dada a inesperada morte de seu pai e o facto de o irmão não querer o exercício do lugar, foi provido do ofício a 30 de janeiro de 1680, cargo que desempenhou até 27 de fevereiro de 1707, sendo que a propriedade do ofício lhe foi concedida em 1687.

Escreveu Arte Prática de Navegar e Roteyro das Viagens, com duas edições em sua vida, em 1699 e em 1712 (além de ser o responsável pela edição, em 1681, da Arte Pratica de Navegar, trabalho de seu pai, mas em que Manuel acrescentou e atualizou dados e tabelas). Na edição de 1699 são citados Riccioli, Fournier, Pedro Nunes, D. Wright e R. Hues, além de Stevinus, Snelius e Metius. Em 1712 a lista alonga-se com os nomes de Manuel de Mesquita Perestrelo, D. João de Castro, João de Barros e Pedro Nunes; Pedro Apiano e André Cespedes; André de San Martin e os Roteiros de B. Nodal e G. Nodal; Robert Hues; Jean Richier; J. Vossio e o abade Vallemont; J. Richard e R. Norwood e G. Blaeu; E. Halley; G. Tachard, A. Metius, W. Dampier, Cassini, Gassendo, além de Regiomontano, Euclides e Ptolomeu. A edição de 1712 contém, no fim, uma Elegia de 25 dísticos dedicada à Agulha de Marear. Muito do seu trabalho se baseou na herança paterna, bem como em Fournier, especialmente no domínio da Hidrografia, em Clavius, nas questões do calendário e em Riccioli, sobre astronomia e coordenadas das estrelas para a determinação de latitudes; qualquer um destes autores era jesuíta.

Na Arte de navegar e o Roteyro das viagens, surgem, no roteiro das ilhas dos Açores, Cabo Verde, Guiné, Angola, Brasil, Índias Ocidentais e Orientais, Costa de Espanha e Mar Mediterrâneo, descrições que se referem a rotas entre o Rio de Janeiro e Santos e entre Buenos Aires e a costa do Brasil, com referências ao rio S. Francisco do Sul, Guarativa, Paranaguá, Cananea, Iguape e Itanhaem. Esta presença documental certamente tem a ver com o excelente trabalho que Manuel Pimentel realizou enquanto encarregado de estabelecer os limites da colónia do Sacramento sobre o Rio da Prata. Para Luís de Albuquerque, a edição de 1712 da Arte de Navegar, mais completa que a primeira edição do trabalho, permite entender a evolução, em termos de astronomia náutica e marinharia, em relação aos Guias Náuticos de Munique e Évora. A obra demonstra a evolução da marinharia portuguesa em termos não só de técnicas e instrumentos de origem estrangeira como também em termos de suporte teórico. No livro, Manuel Pimentel expõe o recurso à trigonometria e ao cálculo logarítmico para a resolução de problemas de marinharia, devendo tais matérias ser do domínio dos pilotos; para Luís Albuquerque, o livro de Manuel Pimentel é o trabalho mais desenvolvido até então dos publicados em Portugal sobre a prática da navegação, dado que o trabalho de Pedro Nunes apresenta características distintas. A Arte de Navegarconheceu ainda edições em 1746 e 1762, e uma no século XIX, provavelmente em 1819.

O manuscrito Compêndio da Doutrina Esférica, apesar de considerado pelos especialistas como inferior à Arte de Navegar, tornou-se uma obra muito conhecida (como provam também as cópias que subsistiram), incluindo matérias tradicionais de leccionação em Santo Antão, podendo ter sido um dos cursos que leccionou, como era sua obrigação enquanto cosmógrafo-mor, para pilotos, cartógrafos e homens do mar.

Em 1681, e já como cosmógrafo-mor (por nomeação régia em 1679, ainda interinamente, e em 1687 a título definitivo), Manuel Pimentel foi enviado a Elvas, com o P. João Duarte da Costa, matemático, e com os desembargadores Sebastião Cardozo de Sampayo, e Manoel Lopes de Oliveira para conferir, com os geógrafos enviados por Carlos II de Espanha, a fronteira do Brasil a propósito do direito de demarcação entre Portugal e Castela da nova colónia de Sacramento, criada na margem norte do Rio da Prata. O diferendo com os geógrafos espanhóis demorou três meses, com deslocações recíprocas entre Elvas e Badajoz, sendo que Manuel Pimentel produziu documentação cartográfica que estabelecia e clarificava o direito da Coroa portuguesa no território. Esta questão, que eclodiu em 1680, só terminou com a assinatura do Tratado de Madrid em 1750, preparado por Alexandre de Gusmão, e baseado na doutrina, que criou, de Utti possidetis ou uti possidetis iuris.

Em 1684, substituiu o irmão, Francisco Pimentel (que se encontrava em missão militar para servir o exército contra os turcos na Alemanha, na Polónia e na Hungria) enquanto Lente na Aula de Matemática, tal como em 1690, quando Francisco se deslocou a Mazagão para melhorar a fortaleza,  situação que se manteve nas duas décadas seguintes, dadas as constantes deslocações no terreno de Francisco Pimentel. D. João V, em reconhecimento dos serviços prestados por Manuel Pimentel e dos que prestava em nome do irmão, toma-o por fidalgo-cavaleiro de sua Casa em 26 de outubro de 1709.

Em fevereiro de 1714, e considerando-se que era útil ao serviço real ter pilotos com boa formação, pois nisso assentava “ a navegação das conquistas com cujos fructos se sostenta o comercio, e augmentão os cabedais dos vassallos (…)”, foi solicitado a Manuel Pimentel, que ensinasse na Aula Pública a arte de navegação tanto para os homens do mar, para os curiosos e para os aplicados, para poderem participar da sua grande erudição, ainda que a sua carta de ofício não lhe impusesse esta obrigação; foi-lhe acrescentado ordenado, por mercê pessoal do rei, além do que já usufruía como cosmógrafo-mor. Quatro anos depois, em 1718, foi escolhido para Mestre do Príncipe D. José, com lições nos domínios da Geografia e da Náutica.

Aos profundos conhecidos de geografia juntava o domínio de diversos idiomas, nomeadamente latim, castelhano, francês e italiano, a que juntava um profundo conhecimento da literatura clássica. Socialmente, a sua casa era frequentada por alguns dos Grandes do reino, mantendo excelentes relações com os marqueses de Valença e Alegrete e com os condes de Ericeira. E, apesar do desempenho dos cargos, continuou a escrever poesia, nomeadamente Elegias, frequentando tanto a Academia dos Singulares como a Academia Generosos, onde leu especialmente sobre questões de Astronomia, como ainda a Academia de História Portuguesa, com reuniões desde 1717, instalada em casa de D. Francisco Xavier de Meneses, conde de Ericeira, onde leu lições de Filologia e Filosofia Moral; esta última esteve na origem, em 1720, da Academia Real da História Portuguesa. Morreu em abril de 1719, de uma colírica (vómito de cólera), aos 69 anos, e foi sepultado no jazigo da família no claustro do convento do Carmo, em Lisboa. 

Antónia Fialho Conde
Universidade de Évora

Arquivos

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Mercês de D. João V, Lº 3, ff.. 403-404 (microfilme 1104); Lº 15, f. 419.

Mercês de D. Pedro II, Lº 3, f. 261 v.; f. 409.

Registo Geral de Mercês – Ordens Militares, Lº 8, f. 389v.

Obras:

Manuscritas:

Opuscula Poetica. M.S. (Consta do Poema da Vida de S. Francisco Xavier) 

Colleção de Cartas e Elegias Latinas. M.S.

Licoens Academicas recitadas na Academia dos Generosos, e na Academia Portugueza. M.S.

Viagem desde Lisboa até às ilhas de Timor e Solor (BMBraga, Cód. 600)

Compendio de Doutrina Esférica (BMBraga, Cód. 600; BGUC, Ms. 185: BNP, FG 1867, FG 1552, FG 4322)

Liçoens Academicas sobre a Doutrina de Aristoteles em que se trata do Ceo e Couzas Celestes (BMBraga, Ms. 600; BAj, Ms. 52.V.58))

Impressas:

Arte prática de navegar e regimento de pilotos repartido em duas partes a primeira propositiva em que se propõem alguns princípios para melhor inteligência das regras de navegaçãoa segunda operativa em que se ensinam as mesmas regras para a prática: juntamente os roteiros das navegações das conquistas de Portugal, e Castela. Lisboa: Antonio Craesbeeck de Melo, 1681.

Arte pratica de navegar, e Roteiro das viagens, e costas maritimas do Brasil, Guiné, Angola, Indias, e Ilhas Orientaes, e Occidentaes agora novamente emendado, e acrecentado o Roteiro da Costa da Hespanha, e Mar Mediterraneo. Lisboa: Bernardo da Costa de Carvalho, 1699.

Arte de navegar, em que se ensinão as regras praticas, e o modo de Cartear pela Carta plana, e reduzida, o modo de Graduar a Balestilha por via dos numeros, e muitos problemas uteis à navegação, e Roteiro das viagens, e costas maritimas da Guiné, Brasil e Indias Orientaes, e Occidentaes agora novamente emendadas e acrecentadas muitas derrotas novas.  Lisboa: Officina Deslandiana, 1712.

Arte de navegar em que se ensinam as regras práticas, e os modos de cartear, e graduar a balestilha por via de número e muitos problemas úteis a navegação e Roteiro das viagens e costas marítimas de Guiné, Angola, Brazil, Indias, Ilhas Orientais e OcidentaisNovamente emendado e acrescentado muitas derrotas. Lisboa: Tipografia de Antonio Rodrigues Galhardo, 1819.

Bibliografia sobre o biografado

Albuquerque, Luís de. Arte de Navegar. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1969.

Albuquerque, Luís de. “Manuel Pimentel.” In Dicionário de História de Portugal, ed. Joel Serrão, vol. V: 80. Porto: Livraria Figueirinhas.

Correia, Carlos Alberto Calinas. A arte de navegar de Manuel Pimentel (as edições de 1699 e 1712). Universidade de Lisboa, Dissertação de Mestrado, 2010.

Leitão, Henrique. “Jesuit mathematical practice in Portugal, 1540–1759.” In The New Science and Jesuit Science: Seventeenth Century Perspectives, ed. Mordechai Feingold, pp. Dordrecht: Kluwer, 2003.

Pereira, José Manuel Malhão. “A evolução técnica náutica portuguesa até ao uso do método das distâncias lunares.” In La ciencia y el mar, ed. Maria Isabel Vicente Maroto, Mariano Esteban Piñero, 125–147. Valladolid, 2006.

Fortes, Manuel de Azevedo

Lisboa, ca. 1660 – Lisboa, 28 março 1749

Palavras-chave: engenharia militar, estrangeirado, ensino, Iluminismo.

DOI: https://doi.org/10.58277/JYLX6844

Manuel de Azevedo Fortes nasceu em 1660, filho natural de Monsieur Lembrancour, um nobre francês então na Corte de Lisboa exercendo o cargo de Intendente das tropas francesas, e de uma senhora portuguesa de alta condição, cujo nome não se sabe. Embora os pais não assumissem a paternidade, pelo que Manuel de Azevedo Fortes foi exposto no Hospital Real de Todos os Santos (Fortes deu, para fins oficiais, várias indicações diferentes no que respeita à sua filiação), o pai responsabilizou-se activamente pela sua educação, na qualidade de benfeitor, permitindo-lhe, desde cedo, um contacto com o estrangeiro, onde, aliás, fez toda a sua formação em moldes totalmente diferentes do que, à época, se fazia em Portugal nas classes abastadas e, particularmente, na corte.  

Com apenas 10 anos o jovem Manuel de Azevedo Fortes foi enviado, primeiro para o Colegio Imperial de Madrid, essencialmente vocacionado para as belas letras e, depois, para a Universidade de Alcalá de Henares para “se instruir nas sciencias severas”, nomeadamente na área da Filosofia. O êxito dos seus estudos, levaram o pai a enviá-lo para França, para o famoso Colégio de Plessis-Sorbonne, com o objectivo de aperfeiçoar os seus conhecimentos em Filosofia Moderna, Filosofia Experimental e Matemática, tendo sido em todas estas disciplinas um aluno brilhante. 

Já formado, Manuel de Azevedo Fortes concorreu ao lugar de professor de Matemática na Universidade de Siena, onde, após leccionar um primeiro triénio, lhe foi pedido pelo governador da cidade, Francisco Maria de Médicis, irmão do Grão-Duque da Toscânia, que permanecesse mais três anos, o que, efectivamente, aconteceu. A morte de seu pai durante este último período e, portanto, a cessação do apoio financeiro que deste recebia, levaram-no a aceitar um benefício oferecido por Francisco de Médicis. 

Para resolver questões burocráticas indispensáveis à tomada de posse deste benefício, Azevedo Fortes deslocou-se a Portugal, onde foi recebido entusiasticamente pelos círculos intelectuais portugueses, nomeadamente por D. Francisco Xavier de Meneses, 4º Conde de Ericeira, um dos ícones das “Luzes” portuguesas. O círculo de Ericeira, como é habitualmente conhecido, era o corolário de uma linhagem de academias – Academia dos Generosos (1649-1692), Academia das Conferências Discretas (ou Academia dos Discretos, 1696-1717) – em que se fomentava o debate sobre temas de filosofia e ciência europeias que, de outra forma, dificilmente chegavam a Lisboa. A casa do Conde de Ericeira, no Largo da Anunciada, era o centro das ideias do iluminismo em Portugal, constituindo o nosso primeiro cenáculo esclarecido. À volta do Conde da Ericeira e das suas Conferências Discretas e Eruditas, gravitava um círculo de políticos, eruditos, professores e homens viajados a par das novas ideias científicas, conhecedores e leitores das obras mais recentes em diversos campos, como o Reverendo D. Manuel Caetano de Sousa, D. José de Barbosa, Manuel Serrão Pimentel, D. Luís Caetano de Lima e Rafael Bluteau. A esta plêiade de intelectuais iluministas, juntou-se Manuel de Azevedo Fortes, convidado ainda na sua viagem de regresso, para abordar temas relacionados com a nova Lógica. 

O rei D. Pedro II, partilhando das opiniões extremamente favoráveis relativas a Azevedo Fortes, força a sua permanência no reino e na corte, oferecendo-lhe, em 1686, o cargo de docente de Matemática na Aula de Fortificação e Arquitectura Militar, na Ribeira das Naus, onde leccionou pelo menos até 1703, e empossando-o, em 1698, na patente de Capitão de Infantaria, com aplicação de engenheiro, e em 1703 na de Sargento-Mor engenheiro. Já em plenas funções na carreira militar, o facto de falar correctamente o português, o castelhano o italiano e o francês, levou-o a desempenhar, a par dos trabalhos mais comuns à fortificação, algumas funções específicas, nomeadamente de espião militar, disfarçado de hortelão, em praças espanholas, e de oficial de ligação, com as funções de tradutor, entre as praças e patentes mais baixas portuguesas e os oficiais superiores do exército estrangeiro. Em 1710, já no reinado de D. João V, é nomeado governador da Praça de Castelo de Vide, com o posto de Coronel, sendo o responsável pela reedificação desta praça. Em 1719 é nomeado Engenheiro-Mor e Brigadeiro dos Exércitos do Reino e, em 1735, é promovido a Sargento-Mor de batalha.

Quando, em 1720, D. João V fundou a Academia Real de História, Manuel de Azevedo Fortes foi um dos 27 sócios fundadores indicados pelo Conselho de Sua Majestade, sendo-lhe atribuída, em conjunto com o matemático Padre Manoel de Campos (um dos 23 sócios fundadores indicados por instituições religiosas), a responsabilidade pelos “pontos Geograficos da Historia, assim Ecclesiastica, como Secular destes Reynos”, tarefa cartográfica que, não obstante o seu empenhamento, não conseguiu levar a bom termo.

Apesar deste desaire, referido inúmeras vezes pelo próprio, Manuel de Azevedo Fortes conseguiu impor o seu projecto mais global de afirmação da engenharia militar portuguesa. Neste contexto, interveio directamente na construção de um espaço pedagógico e profissional para o métier de engenheiro, na óptica do que mais moderno se fazia ao tempo, mantendo-se sempre fiel à difusão das novas formas do pensamento europeu em Portugal. A par dos projectos académicos e pedagógicos, Manuel de Azevedo Fortes participou em numerosos projectos de fortificação em todo o país, quer de raiz, quer introduzindo modificações, assumindo-se como uma referência na área da engenharia militar. 

A educação que teve fora de Portugal, a carreira profissional que iniciou no estrangeiro, os contactos que manteve com o que se passava no exterior das fronteiras do reino, em larga medida proporcionados pelo seu conhecimento de três línguas europeias, e a sua integração no círculo ericeirence, fazem de Manuel de Azevedo Fortes um caso paradigmático da importância dos estrangeirados na definição de uma nova racionalidade científico-tecnológica em Portugal, ligada aos princípios do Iluminismo. Esta nova atitude face ao papel a desempenhar pela ciência e a tecnologia nas sociedades modernas, com que Fortes convivera nos países estrangeiros, está bem espelhada nas suas obras. 

No quadro das Luzes, os trabalhos de Azevedo Fortes, embora focando-se em aspectos específicos da engenheiro militar, partilham de um projecto global de modernização da sociedade portuguesa, de que o uso do vernáculo, e não do latim, é emblemático. A importância da educação formal e a relevância da sedimentação de uma comunidade nacional de engenheiros militares são claras, não só pelo número de militares com exercício de engenharia que a procuram e frequentam, como pelos esforços no sentido do seu alargamento a outras partes do Reino, nomeadamente ao Brasil e à Índia.  

É precisamente sobre estas questões profissionais e de formação que o recém-nomeado Engenheiro-Mor do reino publicou, em 1719, a Representação sobre o Modo e Direcção que devem ter os Engenheiros para melhor sevirem n’este Reino e suas Conquistas, primeiro esboço de um regulamento para o exercício da profissão de engenheiro.

No contexto das suas tarefas na Academia Real de História, Fortes escreveu o Tratado do modo mais fácil e o mais exacto de fazer cartas geographicas, assim como do mar e tirar as plantas das praças, cidades e edíficios com instrumentos e sem instrumentos (1722), obra que, tendo como motivação última recuperar a liderança portuguesa na área da cartografia, se tornou de ensino obrigatório para os engenheiros e outros oficiais da Academia Militar, introduzindo-os nas regras de fortificação dos matemáticos Claude Millet Deschalles e Jacques Ozamam. Ainda na sua qualidade de académico, Fortes escreveu vários textos, dos quais se destaca a Oração Académica pronunciada na presença de Suas Magestades indo a Academia ao Paço em 22 de Outubro de 1739, na qual, a propósito dos trabalhos de organização das cartas geográficas da História Eclesiástica e Secular de Portugal, defendeu, de forma vigorosa, a ciência baseada na matemática e elogia o apoio dado por D. João V às novas atitudes face ao conhecimento.  

Em 1728, Azevedo Fortes retoma o tema da formação dos engenheiros, publicando O Engenheiro Portuguez, obra dividida em dois tratados, versando sobre a fortificação e o ataque e defesa das praças. Ambos os Tratados contêm, no fim do respectivo volume, um Apêndice (no primeiro tomo sobre cálculos baseados na trigonometria rectilínea e no segundo sobre armas de guerra) e estampas ilustrativas sobre os conteúdos tratados. Esta obra, de vocação eminentemente didáctica, pretende expor, de forma sistematizada, os conhecimentos considerados fundamentais para o exercício da profissão de engenheiro, aqui apresentado como um técnico que, de uma forma particular, incorpora num mesmo sistema de saber os planos teórico e prático. Esta nova visão da engenharia como área privilegiada de contacto e interacção entre a ciência e a prática, insere-se numa óptica de modernidade assente na crítica ao ensino de tipo escolástico praticado nas escolas portugueses. Trata-se, portanto, de disponibilizar em português, para os futuros engenheiros portugueses, um corpus de conhecimentos que o Engenheiro-Mor do reino conhecia, porque havia contactado com ele no estrangeiro durante a sua formação académica e profissional, mas que se encontrava ausente ou profundamente desactualizado no ensino português. O Engenheiro Portuguez baseia-se nas referências da escola francesa, nomeadamente nos influentes Marquês de Vauban e Conde de Pagan e nos engenheiros militares Errard de Bar-le-Duc, Antoine de Ville e Manesson Mallet. 

Obra usada como manual na Aula de Fortificação e de Arquitectura Militar, o Engenheiro Portuguez era considerado pelos alunos como um símbolo da nova postura da engenharia portuguesa e da sua integração numa comunidade transnacional. Neste contexto, e perante um ataque à obra de Azevedo Fortes, os alunos reagem escrevendo a Evidencia apologetica e critica sobre o primeiro e segundo tomo das “Memorias militares”, pelos particantes da Academia militar d’ esta corte (1733), em que criticam os opositores do Engenheiro-Mor pela sua falta de precisão e desactualização no plano da terminologia.  

Em 1744, já numa fase tardia da sua vida, Manuel de Azevedo Fortes publicou a Lógica Racional, Geométrica e Analítica, obra claramente cartesiana, que introduz as novas correntes da filosofia europeia em Portugal. Contrapondo a lógica dos modernos, nomeadamente Descartes, Tycho Brahe, Regiomontanus, Roberval, Galileu e Gassendi, à argumentação escolástica (que considerava ser uma interpretação deturpada da filosofia aristotélica, com base nas leituras árabes e de comentadores medievais como Averróis e Avicena), Fortes impõe uma visão cognitiva da ciência assente na matemática. Esta obra, que antecedeu em dois anos e preparou o caminho para o trabalho de Luís António Verney, O Verdadeiro Método de Estudar, foi igualmente usada como livro de instrução para os alunos da Aula de Fortificação  e de Arquitectura Militar.

Azevedo Fortes morre em Lisboa, em Março de 1749. A forma inovadora como entende a figura profissional o engenheiro e o facto, pouco comum em Portugal, de ter efectivamente agido como formador de uma nova mentalidade tecnológica (através das suas obras, que são adoptadas como livros de texto nas escolas de engenharia nacionais), tornam-no uma referência incontornável na engenharia portuguesa. Sendo um estrangeirado, e tendo, portanto, contactado, nos planos educativo e profissional, com as elites intelectuais da Europa das Luzes, soube usar esta experiência, adquirida precocemente e mantida ao longo da sua vida,  para moldar o perfil da engenharia militar portuguesa e dotá-la de um estatuto multifacetado, sólido e moderno que se prolongará nos séculos seguintes.

Maria Paula Diogo

Obras 

Representação sobre o Modo e Direcção que devem ter os Engenheiros para melhor servirem n’este Reino e suas Conquistas. Lisboa: Officina de Mathias Pereira da Silva & João Antunes Pedroso, 1719-1720.

Tratado do modo mais fácil e o mais exacto de fazer cartas geographicas, assim como do mar e tirar as plantas das praças, cidades e edifícios com instrumentos e sem instrumentos. Lisboa: Officina de Paschoal da Silva, 1722.

O Engenheiro Portuguez. Lisboa: Officina de Manoel Fernandes da Costa, 1728-29.

Lógica Racional, Geométrica e Analítica. Lisboa: Officina de José António Plates, 1744.

Oração Académica pronunciada na Presença de Suas Magestades indo a Academia do Paço em 22 de Outubro de 1739. 

Bibliografia sobre o biografado

Andrade, António Alberto Banha de. “Manuel de Azevedo Fortes, primeiro sequaz, por escrito, das teses fundamentais cartesianas em Portugal”, in Contributos para a história da mentalidade pedagógica portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1982, pp. 191-126. 

Bernardo, Luís Manuel Aires Ventura. O Projecto Cultural de Manuel de Azevedo Fortes: Um Caso de Recepção do Cartesianismo aa Ilustração Portuguesa. Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.

Coxito, Amândio A. O Compêndio de lógica de M. Azevedo Fortes e as suas fontes doutrinais, (Coimbra: Universidade de Coimbra,1981). 

Cruz, José Gomes da. Elogio Fúnebre de Manoel de Azevedo Fortes. Lisboa:1754.

Diogo, Maria Paula. “Manuel de Azevedo Fortes: o nascimento da engenharia moderna em Portugal”, XIX Colóquio de História Militar, 100 Anos do Regime Republicano: políticas, rupturas e continuidades. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar, 2011, pp. 167-181. 

Diogo, Maria Paula, Ana Carneiro, Ana Simões. “El Grand Tour de la Tecnología: El Estrangeirado Manuel de Azevedo Fortes”, in A. Lafuente, A. Cardoso Matos, T. Saraiva (eds.), in Maquinismo Ibérico – Tecnologia y cultura en la península ibérica, siglos XVIII-XX. Aranjuez: Doce Calles, 2006, pp 119-139.