Coutinho, António Xavier Pereira

Lisboa, 11 junho 1851 — São Pedro do Estoril?, 27 março 1939

Palavras-chave: Botânica, Instituto Agrícola, Escola Politécnica de Lisboa, Agronomia.

DOI: https://doi.org/10.58277/NLFH4624

Engenheiro agrónomo de formação, D. António Xavier Pereira Coutinho foi um importante agrónomo e botânico que dedicou grande parte da sua vida ao estudo da flora portuguesa. Foi o principal responsável pela publicação da primeira flora moderna de Portugal, relativa às plantas vasculares, em 1913. Através da regência de cadeiras no Instituto Agrícola e na instituição que o sucedeu, formou várias gerações de técnicos agrícolas que contribuíram para o ordenamento do território nacional e colonial. Também desempenhou uma importante atividade pedagógica através da publicação de manuais escolares para diversos níveis de ensino.

Pereira Coutinho nasceu em Lisboa, numa família da alta nobreza. Era filho de D. Martinho da França e Faro Pereira Coutinho Pacheco Pato de Novais Pimentel, moço fidalgo com exercício no Paço, formado em engenharia militar, e de D. Maria da Penha de França Baena Falcão de Magalhães e Avelar. Vários dos ascendentes de Pereira Coutinho tinham servido como cavaleiros, camaristas ou mordomos de reis portugueses e espanhóis, desde os inícios do século XVIII. Os serviços prestados junto da corte espanhola valeram à casa dos Pereiras Coutinhos os títulos de Marquês de Soydos e Visconde de Santo António, o que a tornou a única casa fidalga portuguesa com dois títulos nobiliárquicos espanhóis.  

Frequentou a Escola Politécnica de Lisboa, continuando os seus estudos no Instituto Agrícola de Lisboa, a mais importante escola técnica agrícola do país, onde concluiu o curso de engenheiro agrónomo em 1874, com uma dissertação sobre o estudo do clima agrícola. Em seguida, arranjou emprego como agrónomo, cargo que desempenhou até 1879. Destacado para o distrito de Bragança, visitou os seus pontos principais, familiarizando-se com o clima, as práticas agrícolas e as restantes atividades económicas da região, tendo ainda organizado a quinta distrital. Para melhor prestar auxílio aos lavradores, e dada a escassez de estudos sobre a flora local, procurou estudá-la ele próprio, apesar de possuir uma experiência limitada enquanto botânico e não ter acesso a herbários e obras de referência. 

Em 1878, foi nomeado para uma comissão encarregada do estudo da praga de filoxera que atacava as vinhas da região do Douro, um problema agrícola importante, pois afetava uma das culturas mais relevantes para a economia nacional. O hábito de colher plantas pelas regiões por onde andava despertou a atenção de Manuel Paulino de Oliveira, professor da Universidade de Coimbra dedicado à entomologia e vice-presidente da comissão, que estudava o inseto causador da praga. Por esta altura, o seu colega Júlio Henriques, professor de Botânica e diretor do Jardim Botânico da Universidade, tentava criar um grupo de estudos botânicos capaz de empreender um levantamento sistemático da flora nacional, e ao ver um possível colaborador em Pereira Coutinho, contactou-o. Este acedeu, estando presente desde o início da fundação oficial deste grupo em 1879, a Sociedade Broteriana, e desenvolveu uma grande estima por Henriques, que se tornou um mentor, dando-lhe acesso a herbários e obras de referência. 

A competência profissional de Pereira Coutinho tornou-o conhecido entre as elites científicas da época, dando-lhe acesso a uma carreira académica no Instituto Agrícola. Nomeado chefe dos serviços químicos em 1879, estudou a composição dos fenos e das palhas de diversas regiões do reino e substituiu o professor João Inácio Ferreira Lapa na cadeira de Tecnologia, Química Agrícola e Análise. Em 1882, concorreu à regência da cadeira de Silvicultura, criada nesse mesmo ano por reforma governamental, tendo sido aprovado, e redigiu um manual para auxiliar os alunos, que publicou em dois volumes, entre 1886 e 1887. Em 1886, a cadeira a que prestava substituição foi dividida em duas, e transitou para a nova disciplina de Química Agrícola, Análise de Terras, Adubos e Plantas, posição que manteve durante vários anos, tomando ainda a direção do laboratório químico do Instituto.

Pereira Coutinho foi, à semelhança de outras personalidades da época ligadas ao ensino da agronomia, como José Maria GrandeJoão de Andrade Corvo, um defensor da modernização da agricultura portuguesa. Para este fim, fundou, em 1886, e com José Veríssimo de Almeida, seu colega no Instituto, o periódico A Agricultura Contemporânea (em 1890, o título foi alterado para A Revista dos Campos), onde eram fornecidas informações sobre novos instrumentos agrícolas, técnicas de estrumação, legislação agrícola aprovada, e pragas agrícolas, entre outros temas. Pereira Coutinho também escreveu para outros periódicos, como O Agricultor Português e Portugal Agrícola. Durante este período, outra das suas contribuições mais significativas foi a publicação, em 1889, de um guia de boas práticas para o fabrico e tratamento do vinho português, no sentido de aperfeiçoar a sua produção e fazer face à competição por parte de vinhos franceses, italianos e espanhóis. 

A partir do final da década de 1880, Pereira Coutinho iniciou um programa de investigação que tinha por objetivo o estudo taxonómico das Angiospérmicas presentes em território nacional, com vista à publicação de uma flora portuguesa moderna. Apesar de já ter realizado alguns estudos taxonómicos no passado, só nesta altura começou a empreendê-los de um modo sistemático. A sua admissão na Escola Politécnica de Lisboa, onde provavelmente poderia mobilizar mais recursos para estudos deste tipo, contribuiu para a mudança. Foi admitido no lugar de naturalista-adjunto da Secção Botânica do Museu Nacional de Lisboa, em 1890, graças à intervenção do Conde de Ficalho, o diretor da Secção e então regente da cadeira de Botânica da Escola, e no ano seguinte venceu o concurso para lente substituto dessa cadeira. Em 1903, após a morte de Ficalho, tornou-se regente da cadeira e diretor do Jardim Botânico da Escola.

Pereira Coutinho foi professor na Escola Politécnica e no Instituto Agrícola até 1921, data em que atingiu o limite legal de idade. No seguimento da reforma republicana do ensino superior de 1911, que transformou a Escola na Faculdade de Ciências da recém-criada Universidade de Lisboa, passou a reger a cadeira de Botânica Especial e Geografia Botânica, dedicada ao ensino da taxonomia vegetal. Também se dedicou ao ensino da botânica no Instituto, tendo provavelmente transitado para a cadeira respetiva após a reforma de 1911, que criou o novo Instituto Superior de Agronomia.

Após mais de duas décadas de estudos, Pereira Coutinho publicou um primeiro esboço de uma flora nacional em 1913, tendo incorporado o contributo de outros membros da Sociedade Broteriana, especialmente Júlio Henriques, Joaquim de Mariz, Gonçalo Sampaio e Jules Daveau. Este trabalho foi considerado a sua obra-prima. Continuou a expandir e a revê-lo até ao final da vida, dedicando-se ainda ao estudo de líquenes, musgos, hepáticas e basidiomicetas (à época, todos eram agrupados no reino das Plantas).

Ainda que as qualidades científicas de Pereira Coutinho fossem apreciadas e enaltecidas pelos seus colegas, foi como professor que deixou as impressões mais profundas. Os seus antigos alunos recordam-no como um exemplo de integridade moral e intelectual, austero e exigente, que os conquistava por uma modéstia característica e pela clareza com que ensinava os assuntos mais complexos. Nas suas aulas, enfatizava a observação direta de espécimes vegetais, chegando a adotar métodos de ensino inovadores. Após publicar a Flora de Portugal, deu uma feição quase completamente prática à cadeira que lecionava na Escola Politécnica: em vez de começar por exposições teóricas, fornecia plantas aos alunos e convidava-os a determinar a espécie a que pertenciam, segundo as chaves dicotómicas da Flora. A sua ação pedagógica incluiu ainda a escrita de manuais escolares para o ensino primário e secundário, ilustrados por si próprio, cujos conteúdos eram apresentados com simplicidade e rigor, e que foram reeditados diversas vezes. Alguns deles impressionavam pelo seu estilo original, que interpelava diretamente o leitor, como se conversasse com ele. Pereira Coutinho marcou vários dos seus alunos, especialmente Aurélio Quintanilha, que foi seu assistente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e alcançou reconhecimento internacional como botânico.

Contrariamente a outros colegas, e apesar do seu elevado estatuto social, Pereira Coutinho não enveredou por uma carreira política, tendo mesmo recusado o cargo de diretor-geral da agricultura para o qual foi convidado durante a monarquia constitucional. A docência e a investigação eram mais importantes para si, mas é possível que o seu desinteresse esteja ligado a uma discordância ou resignação face ao triunfo das forças liberais em Portugal. Pereira Coutinho provinha de uma família de monárquicos favoráveis a D. Miguel, e alguns parentes tinham mesmo lutado em seu nome durante as Guerras Liberais. Também é possível que as memórias deixadas pela Guerra nos membros da sua família o tenham influenciado a levar uma vida arredada da política. De qualquer modo, possuía um espírito tolerante (Quintanilha era um republicano convicto, mas nunca se sentiu discriminado).

A partir de 1921, após jubilação, retirou-se para a sua quinta de Caparide, em São Pedro do Estoril, vivendo em grande medida isolado do mundo, entregue à família e aos estudos taxonómicos. Casou com a sua prima D. Isabel Pereira Coutinho e teve uma numerosa descendência. Já perto do final da vida, por insistência de colegas e antigos alunos, conseguiu terminar novas versões do Esboço de uma flora lenhosa portuguesa e da Flora de Portugal

De uma grande austeridade moral, provavelmente derivada da sua profunda fé católica, Pereira Coutinho foi um investigador muito empenhado, tendo uma longa e regular carreira dedicada à taxonomia vegetal, além da ação que desempenhara, nas primeiras décadas da sua vida, em prol do ordenamento do território agrícola. Faleceu em Março de 1939, deixando uma vasta obra enquanto botânico e saudosas memórias em vários dos alunos de quem fora professor.

Daniel Gamito-Marques

Obras

Coutinho, António Xavier Pereira. A quinta distrital de Bragança no ano agrícola de 1875 a 1876. Porto: Tipografia do Jornal do Porto, 1877.

Coutinho, António Xavier Pereira. Os fenos espontâneos e as palhas de trigo, em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1884.

Coutinho, António Xavier Pereira. Curso de Silvicultura. Tomo I: Botanica Florestal. Lisboa: Tipografia da Academia Real de Ciências, 1886.

Coutinho, António Xavier Pereira. Curso de Silvicultura. Tomo II: Esboço de uma Flora Lenhosa Portuguesa. Lisboa: Tipografia da Academia Real de Ciências, 1887.

Coutinho, António Xavier Pereira. Guia do vinicultor. Porto: Lugan & Genelioux, sucessores, 1889.

Coutinho, António Xavier Pereira. Curso elementar de botânica para uso dos liceus. Lisboa: Guillard, Aillaud & C.ia, 1895. [Reeditado em anos subsequentes].

Coutinho, António Xavier Pereira. Rudimentos de agricultura. Paris e Lisboa: Aillaud & C.ia, [1903].

Coutinho, António Xavier Pereira. A Flora de Portugal (Plantas vasculares). Lisboa: Aillaud, Alves & C.ia, 1913. 

Coutinho, António Xavier Pereira. Esboço de uma flora lenhosa portuguesa. Lisboa: Direcção Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas, 1936. 

Coutinho, António Xavier Pereira. Flora de Portugal (plantas vasculares) disposta em chaves dicotómicas. Lisboa: Bertrand Irmãos, Ltd., 1939. 

Bibliografia sobre o biografado

Coutinho, António Xavier da Gama Pereira (dir.). In-Memoriam do Professor Dom António-Xavier Pereira Coutinho. Porto: Diário do Porto, 1941. 

Fernandes, Abílio e Artur Augusto Taborda de Morais. “Publicações do Prof. A. X. Pereira Coutinho.” Boletim da Sociedade Broteriana 14 (1940): XI–XX.

Palhinha, Rui Teles. “D. António Xavier Pereira Coutinho.” Boletim da Sociedade Broteriana 14 (1940): VII–X.

Palhinha, Rui Teles. “D. António Xavier Pereira Coutinho.” Revista da Faculdade de Ciências 5 (1940): 37–38.

Aguiar, António Augusto de

Lisboa, 05 setembro 1838 — Lisboa, 04 setembro 1887

Palavras-chave: química orgânica, Escola Politécnica de Lisboa, Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, conferências sobre vinhos, corantes sintéticos.

DOI: https://doi.org/10.58277/MNMQ6211

António Augusto de Aguiar estudou Ciências Naturais na Escola Politécnica de Lisboa. Em 1861, ocupou o lugar de lente substituto e, em 1865, o de lente-proprietário de Química Mineral nesta mesma escola. Aguiar era 16 anos mais novo do que o seu colega Agostinho Vicente de Lourenço, mas quase contemporâneo no ingresso nos quadros da Escola Politécnica. Como não dispunha de meios financeiros, não teve oportunidade, contrariamente a Lourenço, de adquirir formação no estrangeiro. Em 1864, foi nomeado lente de Química Aplicada no Instituto Industrial de Lisboa, uma escola profissional onde eram ensinados assuntos técnicos, sendo conferidos graus de diferentes níveis, os quais não eram, todavia, equivalentes aos da Universidade de Coimbra ou da Escola Politécnica.

Apesar das numerosas tarefas de que foi incumbido por sucessivos governos, e, mais tarde, da sua atividade como deputado e como ministro no governo de Fontes Pereira de Melo, continuou a docência nas duas escolas, apenas com pequenas interrupções. Aguiar era um pedagogo dotado. As suas aulas eram, frequentemente, aplaudidas pelos estudantes, algo que não era nem é hábito em Portugal. O entusiasmo dos estudantes tornou-o famoso, o que terá contribuído para o seu lançamento numa carreira pública. Durante a sua visita a Portugal, o imperador do Brasil, D. Pedro II, mostrou desejo de assistir às aulas de Aguiar. Uma das principais avenidas de Lisboa tem o seu nome, justificando-se assim a razão de ainda hoje ser conhecido. Apesar da fama, são poucos os que sabem que Aguiar foi um cientista consumado com trabalhos publicados em revistas francesas e alemãs. A longa lista de cargos, que desempenhou de 1862 a 1879, revela a crescente influência que teve na vida pública portuguesa: membro da Comissão dos Trabalhos Geológicos (1862); membro da Comissão Encarregada do Estudo dos Vinhos Portugueses (1866); diretor do Instituto Industrial de Lisboa (1870); Comissário Régio da representação portuguesa na Exposição Vinícola de Londres (1874); membro da Comissão Geral das Alfândegas (1874); presidente da comissão que organizou a representação portuguesa à Exposição Industrial de Filadélfia (1876); Comissário Régio na Índia para a negociação do Tratado do Sal entre Portugal e a Grã-Bretanha (1878); Comissário Técnico da representação portuguesa à Exposição Universal de Paris (1878); membro da Comissão para a Reforma Fiscal da Índia portuguesa (1879); e deputado às Cortes (1879). 

A sua última publicação científica data de 1878. A partir daí, a lista de cargos públicos ampliou-se incessantemente até à sua morte, ocorrida em 1887. Dela fazem parte: par do reino (1881); organização e acompanhamento do príncipe D. Carlos na sua visita às principais cortes europeias (1882); ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria no governo de Fontes Pereira de Melo (1883–1885). Demitiu-se depois de ver gorados os seus planos para o alargamento do porto de Lisboa, devido à falta de adesão dos seus colegas no governo. Enquanto ministro, foi responsável por uma importante reforma do ensino industrial e comercial, outorgando, em 1884, ao Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, a capacidade de conferir diplomas de ensino superior aos estudantes do então chamado Curso Superior de Comércio. 

Em 1887, pouco antes de falecer, participou na reunião do Bureau International des Poids et Mesures, em Sèvres, na qualidade de delegado do governo português. Como um aspeto importante do papel social e político de Aguiar refira-se que, em 1862, aderiu à Maçonaria, e, em 1886, atingiu a posição de Grão-Mestre. 

Aguiar é habitualmente lembrado pelas suas contribuições para as reformas do ensino industrial e profissional, pelas campanhas públicas em prol do melhoramento da qualidade dos vinhos portugueses com vista à exportação e pela ampliação do porto de Lisboa, que só viria a concretizar-se após a sua morte. Poucos são os que estão a par da sua importância como químico orgânico de prestígio internacional. Aguiar foi membro, não só de sociedades científicas nacionais como a Academia das Ciências de Lisboa e a Sociedade de Geografia de Lisboa, mas também de inúmeras agremiações científicas estrangeiras como a Deutsche Chemische Gesellschaft (desde 1870). Os seus trabalhos mais significativos, no domínio da química orgânica, foram publicados em revistas estrangeiras, nomeadamente no periódico Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft (Relatórios da Sociedade Alemã de Química). 

Além do conjunto bastante substancial das publicações no âmbito da química orgânica, existem artigos, embora em número mais limitado e de importância mais marginal, frequentemente associadas aos múltiplos interesses e cargos públicos que Aguiar desempenhou, abrangendo áreas como a fotografia, enologia e farmacologia. Além disso, publicou diversos documentos com relevância para a Enologia, tais como relatórios, recomendações, conferências, discursos, etc. 

Na realização das suas investigações em química orgânica, colaborou com Agostinho Vicente Lourenço e com preparadores (assistentes de laboratório) formados na Alemanha. Lourenço, em 1861, estando ainda a trabalhar no laboratório de Charles Adolphe Wurtz, em Paris, fez saber a Emil Erlenmeyer, em Heidelberg, que estava à procura de um químico que o acompanhasse até Lisboa para o auxiliar na modernização do laboratório químico da Escola Politécnica e na introdução de métodos experimentais atualizados, a serem utilizados no ensino e na investigação. Foi-lhe recomendado Eduard Lautemann, que se doutorara com Hermann Kolbe e fora seu assistente em Marburgo. 

Aguiar e Lautemann estudaram a nitração do naftaleno. Um dos compostos nitrados novos foi o tetranitronaftaleno, que ainda hoje é utilizado como componente de explosivos de alta potência. A partir das misturas de dinitronaftalenos isoméricos, isolaram dois que designaram como isómeros α e β que reduziram separadamente aos respetivos diaminonaftalenos, cujas estruturas foram mais tarde determinadas como sendo da naftaleno-1,5-diamina e naftaleno-1,8-diamina. Nestas reduções usaram o método desenvolvido por Lautemann, em Marburg, em que se usava di-iodeto de fósforo. Estes trabalhos foram publicados em francês no Bulletin de la Societé Chimique em 1865 e, mais tarde, em 1868 e 1870, em português no Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturais, editado pela Academia Real das Ciências de Lisboa.

Após a partida de Lautemann, Aguiar continuou a trabalhar neste campo. Entre 1870 e 1873, publicou individualmente, em Portugal, diversas comunicações sobre a mesma temática. A parte mais importante destes trabalhos foi publicada em três artigos, na revista Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft, em 1869, 1870 e 1872, o segundo dos quais apareceu traduzido para francês no Bulletin de la Societé Chimique em 1870, seguido de um quarto no Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft em 1874. Neste último, descreve a reação da naftaleno-1,8-diamina com ácido nitroso, em que, em vez de se formar o sal expectável de bis-diazónio, se observou a formação de um composto em cuja estrutura uma cadeia de três átomos de nitrogénio está ligada a dois átomos da estrutura bicíclica do naftaleno. Na representação dessa estrutura é de notar que já fez pleno uso da teoria estrutural desenvolvida por August Kekulé, não conseguindo, porém, especificar quais os átomos de carbono do naftaleno aos quais as duas pontas da cadeia de três átomos de nitrogénio estão ligadas. Os trabalhos de Aguiar sobre os nitronaftalenos e as respetivas aminas foram citados por diversos autores alemães, entre os quais se sobressai Wilhelm Will que, sendo dirigente do laboratório central de explosivos do Ministério da Guerra prussiano, confirmou os resultados relatados por Aguiar sobre os derivados nitrados do naftaleno, vários dos quais têm propriedades detonantes. 

Depois da partida de Lautemann, entre 1868 e 1872, Aguiar teve por colaborador o jovem químico austríaco Alexander Bayer (1849–1928), formado pelo laboratório de Carl Remigius Fresenius, em Wiesbaden, e por Hermann Kolbe, em Leipzig, de 1867 a 1868. Os trabalhos de Aguiar e Bayer versaram vários tópicos, resultando na publicação de uma série de trabalhos em português, no Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturais, e em alemão no Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft e nos Annalen der Chemie und Pharmacie. Nesta última revista, publicaram um artigo sobre um novo solvente da indigotina. Este demonstra o interesse de Aguiar pelo corante índigo (anil) de grande importância para a indústria têxtil. Nessa altura, considerava-se a possibilidade de cultivar plantas indigóferas em Angola. Em dois artigos publicados no Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft, em 1871, relataram uma síntese da naftazarina (um corante negro, constituído por uma hidroxiquinona derivada do naftaleno) a partir do 1,5-dinitronaftaleno. O segundo desses artigos foi apresentado oralmente numa sessão da sociedade alemã de química por Carl Liebermann, célebre por ter determinado, com Carl Graebe, a estrutura do corante natural alizarina, cuja síntese industrial patenteou em 1869, paralelamente e independentemente do inglês William Henry Perkin. O interesse de Liebermann na naftazarina compreende-se pela semelhança da sua estrutura e propriedades com as da alizarina, o primeiro corante sintético produzido em larga escala para a indústria têxtil, provocando a ruína dos agricultores da ruiva-dos-tintureiros e iniciando uma nova época da indústria química.

Os trabalhos publicados por Aguiar no estrangeiro granjearam-lhe uma sólida reputação internacional, sobretudo na Alemanha, no domínio da química orgânica. Lidos hoje, pode surgir a dúvida sobre a razão de Aguiar, tendo separado em elevado grau de pureza e caracterizado vários dinitronaftalenos e naftalenodiaminas, não ter sido capaz de determinar, nas estruturas dos isómeros, quais os átomos de carbono da estrutura bicíclica do naftaleno a que os grupos funcionais se encontram ligados. Convém lembrar a esse respeito que, no caso muito mais simples dos derivados isodissubstituídos do benzeno, a determinação rigorosa das posições relativas dos substituintes nos vértices do hexágono do benzeno, nos três isómeros (posições 1,2-, 1,3-, e 1,4-) só foi conseguida entre 1869 e 1874, através de um conjunto de trabalhos clássicos do germano-italiano Guglielmo Körner. No naftaleno, tendo este a estrutura de dois hexágonos de átomos de carbono com um lado comum, em vez de três isómeros isodissubstituídos como no benzeno, prever-se-iam dez isómeros, o que tornava a tarefa da determinação das estruturas muito mais complicada. Por isso, essa determinação só foi conseguida através de trabalhos de Hugo Erdmann, publicados na Alemanha, em 1888, e de Karl Wilhelm Will, em 1895. Os resultados destes trabalhos tiveram aplicações na indústria de corantes sintéticos e de explosivos. Como em Portugal não havia possibilidade de instalar tais indústrias, esses resultados não puderam ser aplicados localmente. Depois do desaparecimento de Aguiar, foi necessário passarem-se muitas décadas para que se voltassem a fazer investigações sobre química orgânica de síntese em Portugal.

Um feito extraordinariamente meritório foi a introdução no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa de um curso de Química prática laboratorial. Tal não lhe tinha sido possível na Escola Politécnica por se ter considerado que a sua função era a de ministrar um ensino propedêutico aos estudantes que iam seguir para as Escolas Militar, Naval ou Médica e não a de preparar químicos profissionais. No Instituto Industrial e Comercial, muitos alunos destinavam-se a carreiras nos serviços de alfândega. A esses serviços era exigido serem capazes de identificarem a natureza química dos mais variados produtos que atravessavam a fronteira. Aguiar, como vogal do Conselho Geral das Alfândegas desde 1875, esteve ligado à criação de um laboratório dos serviços alfandegários. Daí ter reconhecido a necessidade de o Instituto formar químicos práticos. Soube vencer as consideráveis dificuldades, sobretudo em termos de custos de instalação e funcionamento de um laboratório em que o Instituto pudesse ministrar um tal curso. Para tal apoiou-se nos preparadores de química orgânica da Escola Politécnica, o austríaco Alexander Bayer e o alemão Carl von Bonhorst, que se tinham formado no laboratório de Carl Remigius Fresenius em Wiesbaden, na Alemanha, na altura o mais importante centro de química analítica da Europa. 

Há trabalhos que, embora pouco tenham contribuído para a notoriedade científica de Aguiar, testemunham a gama variada de assuntos que despertavam a sua curiosidade. Um destes trabalhos relata uma análise de uns “granulos chineses anti-cholericos” que um médico amigo lhe trouxera de Macau. Esses grânulos continham pequenas percentagens de ácido arsenioso e cinábrio (modificação vermelha do minério sulfureto de mercúrio), sendo receitados por médicos chineses a doentes com cólera. Um outro trabalho mostra o seu interesse pela fotografia, em que os próprios fotógrafos preparavam as camadas fotossensíveis que depositavam na superfície de um material. Aguiar foi um praticante dessa arte e escreveu um artigo em francês que refletiu a sua experiência pessoal, relatando uma simplificação do método na altura apelidado de “collodion sec au tannin”.

Um aspeto da obra científica de Aguiar que não pode ser descurado diz respeito à enologia. O seu papel no estudo da vitivinicultura portuguesa e a sua militância nas chamadas conferências sobre vinhos foi inestimável para a promoção da qualidade e a expansão da exportação dos vinhos portugueses. Nomeado em 1866 pelo ministro João de Andrade Corvo, juntamente com Júlio Máximo de Oliveira Pimentel (segundo visconde de Vila Maior) e João Inácio Ferreira Lapa, para estudar os processos de “fabricação do vinho” usados em Portugal, foi coautor de duas extensas memórias “sôbre os processos de vinificação empregados nos principais centros vinhateiros do Continente do reino” publicadas em 1867 e 1868. Esses relatórios revelaram o grande atraso técnico da maioria dos processos usados pelos produtores de vinho, devidos à estagnação económica causada pelas invasões francesas, a Guerra Civil e outras causas da instabilidade política durante a primeira metade do século XIX. Ao mesmo tempo, noutros países produtores de vinhos como a França e a Alemanha houve grandes progressos técnicos em relação às várias fases da sua produção. Desenvolveram-se processos de prevenção das doenças da vinha, e as técnicas das operações de adega. Muitos produtores portugueses ainda usavam lagares de pedra onde as uvas eram pisadas, se dava a fermentação e, no caso dos vinhos tintos, a curtimenta, quando noutros países vinhateiros a fermentação dos mostos já não se executava nos lagares. Nesses países, eram usadas dornas depois de se trasfegar para as mesmas o mosto e, no caso dos vinhos tintos, a balsa, isto é, os sólidos constituídos pelo folhelho (películas dos bagos), grainha e eventualmente o cangaço, que ficavam a nadar à superfície do mosto. A fermentação e curtimenta nos lagares tinha o inconveniente de permitir o contacto com o ar, o que podia dar origem a processos de oxidação indesejáveis, como o da acetificação. A curtimenta costumava ser muito prolongada, resultando vinhos tintos demasiado encorpados, de cor intensa e muito travo. Estes vinhos eram apreciados pelos negociantes portugueses, porque suportavam bem todo o género de falsificações e eram apetecidos pelos bebedores comuns. No entanto, não era possível colocá-los em mercados como o da Inglaterra, onde tinham de enfrentar a concorrência sobretudo dos vinhos de mesa franceses, mais leves e menos encorpados. Acresciam as dificuldades aduaneiras, uma vez que a Inglaterra penalizava os vinhos de grau alcoólico mais elevado, como medida de combate ao alcoolismo das suas elites. Os vinhos do Porto, da Madeira e de Carcavelos, embora tenham ficado abrangidos pelos direitos alfandegários mais elevados, conseguiam, ainda assim, afirmar-se em Inglaterra devido à tradição centenária existente. O problema principal eram os vinhos de mesa, em que a persistência nos métodos tradicionais e a ignorância de processos modernos como o tratamento das videiras com fungicidas e a sulfuração, só para citar dois exemplos, impediam o melhoramento da qualidade dos vinhos portugueses. Os métodos de análise química do conteúdo em açúcares do mosto e do grau alcoólico dos vinhos, durante e após a fermentação, também só raramente eram aplicados para orientar o processo de fermentação. O reconhecimento por Louis Pasteur do papel de micro-organismos na fermentação alcoólica também não se tinha ainda refletido nos procedimentos praticados nas adegas portuguesas. 

Quando Aguiar foi nomeado comissário régio da representação portuguesa na exposição de vinhos de Londres em 1874, ficou muito desiludido com o resultado. As recomendações das memórias de que foi coautor em 1867 e 1868 não tinham dado os resultados esperados por falta de adesão da maioria dos produtores. Isso teve como resultado não encontrar compradores para grande parte dos vinhos de mesa exibidos na exposição. A seguir ao fracasso na exposição, Aguiar viajou a mando do governo durante oito meses pelos vários países vinhateiros europeus, para estudar os progressos mais recentes na cultura da vinha e da produção de vinhos.

Em face dos míseros resultados da exposição em Londres, resolveu o governo encarregar Aguiar da realização das chamadas conferências sobre vinhos. Estas realizaram-se em Lisboa primeiro no teatro D. Maria II e depois no teatro da Trindade, que se encheram de ouvintes. Aguiar utilizou os seus dotes oratórios para desafiar os produtores de vinhos a se atualizarem, apontando más práticas, erros grosseiros e fraudes que tinha observado, e divulgando os métodos que considerava alternativas aconselháveis. A sua retórica tribunícia surtiu o seu efeito, mas ao mesmo tempo criou-lhe inimizades, incluindo as de poderosos proprietários que se devem ter sentido ameaçados nos seus interesses.

Além desta intervenção política, também se dedicou a desenvolver aspetos técnicos particulares da vinificação. Propôs em 1868 um tipo novo de dornas, a que chamou das balsas dançantes. Nessa altura, estavam a ser introduzidas as chamadas dornas de Mimard, um invento de um vinicultor francês, patenteado em 1866, que eram dornas em madeira cobertas com uma tampa e um aparelho condensador. Este desempenhava o papel de recuperar os componentes voláteis, arrastados pela corrente de dióxido de carbono que se libertava durante a fermentação alcoólica. A libertação de calor no processo de fermentação fazia com que a perda de componentes voláteis, como seja o álcool e substâncias com aroma, era muito grande, resultando num abaixamento do grau alcoólico e na eliminação de aromas, ambos prejudiciais à qualidade do vinho. Aguiar, aproveitando a ideia do condensador, introduziu na dorna um sistema que evitava que a balsa formasse um chapéu em cima do mosto. Este isolava o mosto tanto termicamente como do ar, verificando-se uma distribuição muito desigual da temperatura, que era muito alta junto ao chapéu onde a fermentação era muito viva e demasiado baixa no fundo da dorna para que aí o mosto também fermentasse. Para atenuar esta diferença punha o emaranhado da balsa nuns cestos cilíndricos alongados de eixo vertical que mergulhavam no mosto presos com cordas, mas com tolerâncias que permitiam pequenos movimentos desses cestos, impulsionados pelas bolhas do dióxido de carbono que se libertavam. Daí um camponês, que assistia ao ensaio, ter sugerido a Aguiar o termo balsas dançantes. O invento foi publicado por Aguiar em 1868 numa comunicação à Academia das Ciências. O processo que Aguiar tinha ensaiado em ponto pequeno na adega de um amigo foi desvalorizado por Ferreira Lapa, o que levou Aguiar a publicar uma réplica em 1871. Não se sabe se o processo das balsas dançantes foi alguma vez adotado por algum vinicultor. Sobre as dornas de Mimard, a documentação é também muito escassa. Pode supor-se que a ideia comum aos dois tipos de dornas de recuperar as perdas de álcool e outras matérias voláteis através de um condensador tenha sido abandonada passado algum tempo. Hoje as mesmas perdas são antes evitadas pelo controlo da temperatura de fermentação, de forma a não a deixar subi-la ao ponto de estas se tornarem significativas.

A questão dos vinhos não foi a única ocasião em que Aguiar demonstrou o seu elevado sentido de responsabilidade social e política. Além da sua presença nas cortes e num governo de Fontes Pereira de Melo, notabilizou-se por ter sido um dos sócios fundadores e presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa e da Associação Industrial Portuguesa, instituições privadas que ainda hoje manifestam uma grande vitalidade. No seu curto mandato de Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano, promoveu a reorganização de alguns projetos filantrópicos.

O seu empenho nas múltiplas causas a que se dedicou caracterizava-se sempre por um grande entusiasmo, enquadrando-se o seu perfil numa sociedade caracterizada pelos ideais liberais e pelo romantismo.

Bernardo J. Herold 
Centro de Química Estrutural do Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa e Academia das Ciências de Lisboa

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Lisboa, Universidade de Lisboa, Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa – MUHNAC, Escola Politécnica de Lisboa (fundo), Actas do Conselho Escolar da Eschola Polytechnica, Livro 6.º, 1862-‒1865 e Conta Documentada 1863‒-1872.

Obras 

Aguiar, António Augusto de e Alexander Bayer. “Neues Auflösungsmittel des Indigotins.” Justus Liebigs Annalen der Chemie 157 (1871): 366–368.

Aguiar, António Augusto de e Alexander-Georg Bayer. “Zur Geschichte des Naphthazarins.” Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft 4 (1871): 251–253 e 438–441.

Aguiar, António Augusto de e Edouard Lautemann. “Investigações sobre as naphtalinas nitradas e bases polyatomicas derivadas – Primeira Parte.” Jornal de Sciencias Mathematicas Physicas e Naturaes 1 (1870): 106–112 e 198–208. 

Aguiar, António Augusto de e Edouard Lautemann. “Investigações sobre as naphtalinas nitradas e bases polyatomicas derivadas – Segunda Parte.” Jornal de Sciencias Mathematicas Physicas e Naturaes 2 (1870): 98–100.

Aguiar, António Augusto de. “As balsas dansantes (considerações sobre os processos de vinificação).” Jornal de Sciencias Mathematicas Physicas e Naturaes 1 (1868): 283–291.

Aguiar, António Augusto de. “Ueber Dinitronaphtalin.” Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft 2 (1869): 220–221. 

Aguiar, António Augusto de. “Ueber die von Dinitronaphtalinen α und β derivirenden Diaminen.” Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft 3 (1870): 27–34.

Aguiar, António Augusto de. “Ueber Nitronaphtaline.” Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft 5 (1872): 370–375 e 897–906.

Aguiar, António Augusto de. “Ueber einige Abkömmlinge des α und β-Diamidonaphtalins.”Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft 7 (1874): 306–319.

Aguiar, António Augusto de. Conferências sobre Vinhos. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1876.

Lautemann, Edouard e António Augusto de Aguiar. “Recherches sur les naphtalines nitrées et les bases dérivées.” Bulletin de la Société Chimique de Paris 3 (1865): 256-269.

Bibliografia sobre o biografado

Brito, Gomes de. “Sessão Solemne em 7 de Novembro de 1887 na Sala da Bibliotheca da Academia Real das Sciencias.” Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, 7 (1) (1887): 11–165.

Brito, Gomes de. Elogio Histórico de António Augusto de Aguiar. Lisboa: Typographia e Stereotypia Moderna, 1887. 

Cruz, Isabel Maria Neves da. “Da prática da química à química prática”Dissertação de doutoramento. Évora Universidade de Évora, 2015.

Herold, Bernardo J. e Ana Carneiro. “Portuguese Organic Chemists in the 19th Century. The Failure to Develop a School in Portugal in spite of International Links.” In 4th International Conference on History of Chemistry. Communication in Chemistry in Europe across Borders and across Generations – Proceedings, vol. 1, xx-xxBudapest: Hungarian Chemical Society, 2003.

Herold, Bernardo J. e Wolfram Bayer. “A transnational network of chemical knowledge: The preparadores at the Lisbon Polytechnic School in the 1860s and 1870s.” Bulletin for the History of Chemistry of the American Chemical Society, 1 (39) (2014): 26–42.

Martins, Conceição Andrade. “Aguiar, António Augusto de (1838-1887).” In Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910), ed. Maria Filomena Mónica, vol. 1, 59–64. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005-2006.

Santiago, Mário Jorge. António Augusto de Aguiar, As Conferências sobre Vinhos e a sua época. Anadia: Academia do Vinho da Bairrada e País Vinhateiro da Bairrada, 2000. 

Lourenço, Agostinho Vicente

Mormugão, Salsedas (Goa), 24 janeiro 1822 — Lisboa, 13 novembro 1893

Palavras-chave: química orgânica, teoria dos tipos, oligomerização, polimerização por condensação, Escola Politécnica de Lisboa.

DOI: https://doi.org/10.58277/MHKX9342

Agostinho Vicente Lourenço cursou medicina, de 1843 a 1846, na Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa (hoje Panji) e foi professor da mesma a partir de 1847. Em 1848, veio para Lisboa com uma bolsa de uma associação privada de Goa, para prosseguir os seus estudos em Paris. Uma vez que esta bolsa era insuficiente, o governo português atribuiu-lhe idêntica quantia, a fim de duplicar o seu per annum. No início da sua estada em Paris, ou seja, a partir de 1849, tudo indica que Lourenço tenha estudado química, uma vez que obteve, em 1853, o diploma de Ingénieur-chimiste na École Centrale des Arts et Manufactures.

Também frequentou os laboratórios de Justus von Liebig, em Giessen e, ainda, de August Wilhelm Hofmann, em Londres, onde viria a conhecer a sua futura mulher. Em 1856, frequentou um curso prático de química sob a tutela de Robert Bunsen no recém-inaugurado laboratório na Universidade de Heidelberg, juntamente com outros estagiários que viriam a notabilizar-se, como sejam o inglês Henry Roscoe, o suíço Hans Heinrich Landolt, o germano-russo Friedrich Konrad Beilstein e o alemão Adolf von Baeyer. Em Heidelberg, chegou ainda a trabalhar no acanhado laboratório particular de August Kekulé, juntamente com Baeyer, para preparar um doutoramento. No entanto, queixou-se de Kekulé cujas orientações mudavam frequentemente a ponto de o impedirem de completar os trabalhos iniciados. Esta versão foi contestada pelo biógrafo, discípulo e admirador de Kekulé, Richard Anschütz, que invoca o facto de Kekulé ter aceitado, em 1857, um convite para professor de química da Universidade de Gante. Fosse qual fosse a razão, Lourenço decidiu não o acompanhar e, em vez disso, aceitou a sugestão de Beilstein de ir para o laboratório de Charles Adolphe Wurtz, na Faculdade de Medicina de Paris, onde aquele entretanto ingressara. Um pouco mais tarde, por ocasião de uma visita de Kekulé a Wurtz, em 1859, Lourenço e Beilstein acompanharam o químico germânico numa visita a Nanterre, à recém-inaugurada fábrica de alumínio, então dirigida por Paul Morin, que utilizava o processo de Sainte-Claire Deville, consistindo na obtenção daquele metal pela redução do cloreto de alumínio pelo sódio. 

Lourenço integrou-se bem no laboratório de Wurtz, pois ao invés das restantes escolas de investigação em química, então existentes em Paris, mais circunscritas ao espaço nacional, este laboratório distinguia-se pela atmosfera cosmopolita. Durante cerca de 30 anos, o laboratório de Wurtz foi frequentado por mais de 200 discípulos, a maioria proveniente da Alsácia, correspondendo por isso a uma minoria étnica e religiosa, mas também de diversos países desde a Alemanha, Rússia, Suíça, Áustria, Ilhas Britânicas até aos Estados Unidos. Pertencendo a uma minoria portuguesa, católico e de ascendência indiana, Lourenço terá sido bem acolhido, para o que terá também contribuído o seu conhecimento de línguas estrangeiras. Além de ter aperfeiçoado o francês, inglês e alemão, gostava de ler obras literárias na língua original e de passar temporadas em países estrangeiros, para expandir as suas capacidades linguísticas. Nestas ocasiões, visitava laboratórios de química para se manter atualizado. Nos três anos que passou no laboratório de Wurtz, relacionou-se com colegas de diferentes nacionalidades, uma boa parte dos quais viria a alcançar grande prestígio no plano da química orgânica internacional. O programa de investigação desenvolvido por Wurtz e pelos seus discípulos mostrou-se especialmente produtivo. Tinha por fundamento as teorias dos tipos de Auguste Laurent e de Charles Gerhardt, que se revelaram de considerável capacidade preditiva, e caracterizou-se pela defesa do atomismo, sendo esta escola única no panorama da química francesa, marcado pela rejeição dos átomos.

No período que passou em Paris, Lourenço escreveu nove comunicações apresentadas por Wurtz na Académie des Sciences, além de um artigo publicado no Bulletin de la Societé Chimique. A sua dissertação de doutoramento, bem como o relatório do trabalho que realizou no laboratório do químico alsaciano, foram publicados, quer em livro, em 1862, quer nos prestigiados Annales de Chimie et de Physique, em 1863. Lourenço dá conta da síntese de novos compostos, que incluíam os primeiros membros da família dos glicóis polietilénicos H‒(O‒CH2‒CH2)n‒OH até ao glicol hexaetilénico, sendo este o primeiro exemplo conhecido de uma polimerização por condensação. Determinou os pontos de ebulição dos compostos que purificou por destilação e deu-se conta da elevação do ponto de ebulição com o aumento do valor de n(cerca de 45ºC de cada vez que n aumenta de uma unidade). Também observou o aumento de viscosidade com n

Uma vez que hoje parece ser óbvio que nas fórmulas de Lourenço n representa, no fundo, o grau de polimerização, somos tentados a concluir que ele verificou o aumento do ponto de ebulição e da viscosidade com o grau de polimerização e o peso molecular. É claro que Lourenço não propôs para estes compostos fórmulas estruturais, (os primeiros artigos de Archibald Scott Couper e de Kekulé ainda só tinham acabado de ser publicados), mas usa as fórmulas de acordo com a teoria dos tipos que agora incluía os tipos complexos que Alexander William Williamson e William Odling denominaram “condensados” e “mistos,” respetivamente. Consequentemente, Lourenço não expressa o aumento de n como um aumento do peso molecular, mas como uma crescente “complication moléculaire,” significando com isso o número de radicais envolvidos. Há, todavia, algumas características que são de destacar nas suas conclusões: 

1. Para a sua reação escreve uma equação geral com n+1 usando as fórmulas de acordo com a teoria dos tipos.

2. Estabelece o mecanismo da cadeia de reações para cada passo da condensação.

3. Transcrevendo para fórmulas de estrutura modernas as equações de Lourenço, então a sua interpretação torna-se clara. Considerou que, no passo da propagação, que transforma o poliglicol H‒(O‒CH2‒CH2)n‒OH, por reação com 2-bromoetanol, no poliglicol n+1, se liberta brometo de hidrogénio. Este reage, no passo subsequente da propagação com o glicol, regenerando 2-bromoetanol, necessário à continuação da propagação. 

4. Este foi, certamente, um dos primeiros mecanismos de uma reação da química orgânica a ser estabelecido, bem fundado em evidência experimental. 

5. Apesar de se poder argumentar que Lourenço não estudou reações de polimerização propriamente ditas, mas somente oligomerizações na medida em que não ultrapassou = 6, é contudo óbvio que considerou que o resíduo da destilação do glicol hexaetilénico conteria membros da série dos poliglicóis com n > 6 e que estes eram ainda mais viscosos e menos voláteis. 

Na introdução histórica do seu já clássico compêndio de química dos polímeros, Paul Flory relata com grande pormenor o trabalho de Lourenço, que considerou ser precursor da química dos altos-polímeros. O facto de alguns químicos da escola de Hermann Staudinger negligenciarem a importância dos primeiros trabalhos realizados no século XIX no âmbito desta área da química e, consequentemente, as contribuições de Lourenço, parece ter resultado do longo debate que opôs as duas grandes escolas de química dos altos-polímeros, relativamente aos méritos dos seus líderes. 

As investigações de Lourenço vieram a ter o maior relevo, quer à luz dos desenvolvimentos ulteriores da química dos polímeros, quer para o programa de investigação da escola de Wurtz, no que se refere aos conceitos de “atomicidade” (valência) e à estrutura atómica de radicais, no período imediatamente antes da publicação das propostas de Kekulé e de Couper. As reflexões de Lourenço sobre a “atomicidade dos radicais” e a admissão de uma estrutura atómica ainda desconhecida foram tais, que para o leitor atual impressiona ver como se estava perto do nascimento da teoria estrutural. As suas conjeturas sobre a estrutura atómica dos radicais basearam-se na conclusão de que era possível converter o glicerol em glicol propilénico, demonstrando que os radicais podem ser convertidos em outros radicais, contrariamente às anteriores teorias “clássicas” dos radicais.

Os trabalhos de Lourenço foram muito elogiados num relatório da Academia das Ciências de Paris, assinado por Jean-Baptiste Dumas e Antoine Jérôme Balard. Na conclusão deste relatório, a Academia expressou a esperança de que “o jovem ‘savant’ português, possuindo ao mesmo tempo a capacidade de observação que forneceu os materiais e o conhecimento geral que permitiu interpretá-los da forma mais racional, poderá atrair para a química orgânica, no país que lhe foi destinado habitar, mais trabalhadores que poderão concorrer para o desenvolvimento desta parte da ciência, tão vasta e onde há tanto a fazer.” Dumas, figura influente da química francesa, ofereceu-lhe um lugar no Instituto Francês do Egipto, mas Lourenço teve outras propostas como a de ser professor na Faculdade de Medicina de Lyon que declinou, preferindo regressar a Lisboa.

O período mais marcante de toda a sua atividade científica foi aquele em que trabalhou no laboratório de Wurtz, tendo-lhe sido atribuído, em 1862, o grau de docteur-ès-sciences pela Faculdade de Ciências de ParisRegressado a Portugal em 1861, Lourenço foi eleito, em 1862, sócio da Real Academia das Ciências de Lisboa e nomeado lente substituto da cadeira de Química Orgânica e Analítica da Escola Politécnica. Em 1864, torna-se lente proprietário da mesma cadeira, posição que manteve até à data da sua morte, em 1893. No entanto, no período que ali lecionou, não terá produzido investigação considerada relevante no domínio da química orgânica. Eduardo Burnay, médico, zoólogo e seu sucessor na cadeira de Química Orgânica, especulou acerca das razões, no discurso proferido durante uma cerimónia académica em memória de Lourenço. Segundo Burnay, o lugar na Escola Politécnica não correspondera às suas expectativas, em razão de promessas não cumpridas e de fricções entre colegas, a que se somava o isolamento dos meios científicos francês, inglês e alemão. Burnay deixou ainda entrever que Lourenço possuía dificuldades de expressão oral, limitação que se faria sentir especialmente nas aulas. Apesar dos seus textos serem precisos e profundos, os estudantes tinham dificuldade em segui-lo e era temido nos exames. 

Independentemente do juízo de Burnay, deverá atender-se ao facto de os cursos da Escola Politécnica terem um carácter preparatório à engenharia, medicina e farmácia e de, na época, não haver oportunidades de emprego significativas para químicos em Portugal, dada a debilidade do tecido industrial. Para a maioria dos estudantes, a aprendizagem desta ciência era, possivelmente, apenas um requisito no percurso de obtenção de um grau que permitisse uma carreira militar ou na função pública, no âmbito da engenharia, ou o exercício de uma profissão liberal em medicina, ou farmácia. Neste contexto desfavorável, um professor, com ou sem dons de oratória, teria sempre dificuldade em impor-se, por mais dotado que a Academia das Ciências de Paris o considerasse. Lourenço contribuiu, no entanto, para a modernização do equipamento do laboratório químico e do ensino experimental na Escola Politécnica, com o auxílio do então preparador Eduard Lautemann, por ele recrutado na Alemanha, que fora assistente do químico orgânico Hermann Kolbe com quem se doutorara na Universidade de Marburgo. Lautemann também realizava, na bancada do anfiteatro de química da Escola Politécnica, as demonstrações experimentais que acompanhavam as lições magistrais de Lourenço.

Um aspeto menos conhecido da atividade científica de Lourenço é o facto de a sua primeira tentativa de publicar um artigo em Portugal ter constituído um falhanço. Numa comunicação em coautoria com o jovem colega António Augusto de Aguiar, Lourenço afirmou ter isolado os álcoois nonílico, decílico e undecílico, trabalho que nunca foi citado no estrangeiro, nem mesmo no Dictionnaire de Chimie Pure et Appliquée, editado por Wurtz, ou no Handbuch der Organischen Chemie, de Beilstein. Como era muito amigo de ambos, é certo que a omissão não foi por esquecimento. Os compostos que Lourenço pensava ter isolado por destilação fracionada e identificado eram, efetivamente, misturas de um número de compostos com uma composição média que simulava a estequiometria dos álcoois, que ele e Aguiar supunham ter em mãos. Este facto deve ter sido um rude golpe para Lourenço, já que no convívio e nos gostos parece ter sido um homem elegante e sofisticado, mas algo distante. Embora Burnay refira que Lourenço dera continuidade à investigação iniciada no laboratório de Wurtz, o facto é que nunca chegou a publicar tais trabalhos. Para Burnay, a maior contribuição de Lourenço em Portugal foi ter despertado o interesse de Aguiar pela química orgânica e tê-lo ensinado a ser um consumado experimentalista, apesar de o único artigo que publicaram em conjunto se ter revelado um fiasco (algo que Burnay nunca mencionou). 

No laboratório da Escola Politécnica, Lourenço ocupou-se, principalmente, de análises de águas minerais de numerosas termas que, provavelmente, lhe trouxeram alguns proventos adicionais ao salário de professor, e publicou, em francês, um livro sobre águas termais portuguesas. O termalismo, então em franca expansão, era naturalmente uma fonte de receita com alguma relevância na economia local e do país e, neste sentido, Lourenço deu um contributo importante com estes estudos.

Bernardo J. Herold 
Centro de Química Estrutural do Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa e Academia das Ciências de Lisboa.

Ana Carneiro

Arquivos

Lisboa, , Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa – MUHNAC, Escola Politécnica de Lisboa (fundo):Diplomas oficiais do Governo-geral do Estado da Índia, da École Centrale des Arts et Manufactures e da Real Academia das Ciências de Lisboa.

Munique, Archiv Deutsches Museum: correspondência e fotografia de Agostinho Vicente Lourenço.

Obras 

Lourenço, Agostinho Vicente. “Note sur la formation d’un éther intermédiaire du glycol.”  Comptes Rendus de l’Académie des Sciences 49 (1859): 619.

Lourenço, Agostinho Vicente “Alcools et Anhydrides polyglycériques.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 52 (1861): 359.

Lourenço, Agostinho Vicente Reboul, M. “Sur quelques éthers de Glycerine.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 52 (1861): 401.

Lourenço, Agostinho Vicente Reboul, M. “Sur quelques éthers éthyliques des alcools polyglycériques.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 52 (1861): 466.

Lourenço, Agostinho Vicente “Transformation de la glycérine en propylglycol.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 52 (1861): 1043.

Lourenço, Agostinho Vicente “ Recherches sur les composés polyatomiques.” Annales de Chimie et de Physique, [3] 67 (1863): 186 – 339. 

Lourenço, Agostinho Vicente Renseignements sur les eaux minérales portugaises. Paris : E. Dentu, 1866. 

Lourenço, Agostinho Vicente  “ Estudos preliminares sobre as principaes aguas mineraes do Reino.” In Trabalhos preparatorios ácerca das aguas minerais do Reino e providencias do Governo sobre proposta da Commissão respectiva. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867.

Lourenço, Agostinho Vicente Algumas informações sobre as aguas sulfureas salinas do Arsenal da Marinha de Lisboa. Lisboa: Tipografia da Companhia Nacional Editora,1889. 

Bibliografia sobre o biografado

Anschütz, Richard, August Kekulé. Berlim: Verlag Chemie, 1929, 2 vols.

Burnay, Eduardo. “Elogio historico do Dr. Agostinho Vicente Lourenço.” Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, Classe de Sciencias Moraes, Politicas e Bellas-Letras, 7 (1895): Parte 1, 1 – 42. 

Carneiro, Ana. The Research School of Chemistry of Adolph Wurtz, Paris, 1853-1884, Unpublished PhD thesis. Canterbury: University of Kent, 1992.

Dumas, Jean-Baptiste Dumas e Balard, Antoine Jérôme, “Rapport  sur plusieurs Mémoires présentés à l’Académie par M. Lourenço.” Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 53 (1861): 322–326.

Flory, Paul John. Principles of Polymer Chemistry. Ithaca and London: Cornell University Press, 1953. 

Herold, Bernardo J. “Bernardino Gomes Pai e Agostinho Lourenço Precursores Portugueses da Química dos Alcalóides e dos Polímeros Sintéticos.” In História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1986, vol. 1, pp. 417– 433. 

Herold, Bernardo J, and Bayer, Wolfram, “A transnational network of chemical knowledge: The preparadores at the Lisbon Polytechnic School in the 1860s and 1870s.” Bulletin for the History of Chemistry of the American Chemical Society, [1] 39, (2014):  26–42.

Roussanova, Elena. Friedrich Konrad Beilstein, Chemiker zweier Nationen. Hamburg:  Norderstedte, 2007, 2 vols.