Cambournac, Francisco José Carrasqueiro

Sintra, 26 dezembro 1903 — Lisboa, 8 junho 1994

Palavras-chave: Instituto de Malariologia, Instituto de Medicina Tropical, Organização Mundial de Saúde.

DOI: https://doi.org/10.58277/RVRI2581

Francisco José Carrasqueiro Cambournac nasceu em 26 de dezembro de 1903 na freguesia de Rio de Mouro, concelho de Sintra, no seio de uma família de industriais.

Realizou os seus estudos primários em Sintra, e os estudos secundários nos Liceus Camões e Passos Manuel, em Lisboa, que concluiu em 1922. No ano letivo de 1922-23, Francisco Cambournac frequentou as cadeiras preparatórias para o curso de medicina na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e matriculou-se no curso de medicina da mesma Faculdade no ano lectivo seguinte, concluindo-o em 1929. Como parte da sua formação médica iniciou o serviço hospitalar em 1925 no Hospital de Santa Marta, em Lisboa.

Em 1930-1931, matriculou-se no Curso de Medicina Tropical, na Escola de Medicina Tropical de Lisboa (EMT) e, em maio de 1931, já detentor do diploma em Medicina Tropical, terminou as suas funções no Hospital de Santa Marta e ingressou como médico auxiliar na Estação Experimental de Combate ao Sezonismo de Benavente. De imediato, Francisco Cambournac foi proposto pelo governo português à Sociedade das Nações, para usufruir de uma bolsa de estudos que lhe permitisse frequentar o curso internacional de malariologia da sua Comissão de Higiene. Concedido o apoio, iniciou os estudos teóricos do curso da Sociedade das Nações na Faculdade de Medicina de Paris em 1932, onde contactou com Léon Bernard, professor naquela faculdade e fundador e representante da Comissão de Higiene da Sociedade das Nações, que influenciaria de forma determinante a sua carreira. Ao curso teórico seguiram-se os estágios práticos em Itália e na Jugoslávia. No mesmo ano, ingressou na recém-criada Estação Anti-Sezonática de Alcácer do Sal para dar continuidade ao projecto de luta anti-malárica em Portugal. Em maio de 1933 foi designado para representar a Direcção Geral de Saúde (DGS) na missão de estudo sobre a malária em Portugal, realizada em colaboração com a Fundação Rockefeller (FR), e para dirigir o laboratório privado organizado em Benavente especificamente para aquela missão. Como resultado, a agência americana fundou, em 1934, a Estação para o Estudo do Sezonismo em Águas de Moura na qual Cambournac assumiu o cargo de diretor de campo.

Ao longo dos anos seguintes dedicou-se à consolidação dos seus conhecimentos em medicina tropical, higiene, parasitologia e entomologia, frequentando os circuitos internacionais fundamentais para os cargos que ocuparia mais tarde, no país e no estrangeiro. Com uma bolsa da FR frequentou, em 1935, o curso de Higiene e Medicina Tropical na Escola de Medicina Tropical de Hamburgo, e dedicou-se ao estudo da entomologia e da estatística aplicada à hereditariedade. Com o prolongamento daquela bolsa, Cambournac viajou pelos principais centros de ensino e de pesquisa das doenças tropicais da Europa, tendo visitado o Instituto Pasteur de Paris, o Instituto Colonial de Amesterdão, a Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, o Instituto Ross e a secção de Entomologia do Museu Britânico, ambos em Londres, e ainda, a secção de malarioterapia do Hospital Psiquiátrico Horton, em Epson.

Nomeado pela DGS, encabeçou, em 1937, a fiscalização sanitária para a prevenção de infecções maláricas no decurso dos trabalhos de hidráulica agrícola em algumas regiões portuguesas, e integrou as duas comissões do Ministério da Agricultura que elaboraram a lei da cultura do arroz publicada em 1938, na qual foi contemplada a organização dos serviços anti-sezonáticos por si proposta.

De novo com o apoio da Fundação Rockefeller, no ano letivo de 1937-1938 Francisco Cambournac frequentou o curso de Higiene e Medicina Tropical da Escola de Medicina Tropical de Londres, visitou a Escola de Medicina Tropical de Liverpool e frequentou a secção de entomologia do Museu Britânico, onde recebeu o apoio do entomólogo Frederick Wallace Edwards para a descrição de uma nova espécie de mosquito do género Aedes encontrada em Portugal.

No final de 1938, a Fundação Rockefeller e a Direcção Geral de Saúde converteram a Estação de Águas de Moura em Instituto de Malariologia, destinado à investigação e ao ensino da patologia da malária. Com a inauguração do Instituto de Malariologia de Águas de Moura, Francisco Cambournac foi nomeado subdiretor, cargo que exerceu até ser nomeado seu diretor em dezembro de 1939.

A partir deste instituto organizou e dirigiu o primeiro curso de Malariologia em Portugal, em 1939, bem como os cursos nos anos subsequentes, a par com o curso de Técnica de Profilaxia Sezonática, e promoveu as obras de expansão do instituto com a construção de um hospital. Cambournac empenhou-se no estudo da malária e nos métodos para a combater. Obteve e aplicou experimentalmente inseticidas de ação residual nos territórios da região circundante, entre os quais o diclorodifeniltricloroetano (DDT), mesmo quando a sua aquisição se encontrava comprometida pela Segunda Guerra Mundial. Dedicou-se igualmente à sanidade e à nutrição nas comunidades rurais, à erradicação da febre recorrente transmitida pela carraça, ao estudo da filaríase canina, e à identificação e descrição de novas espécies de insectos.

Cambournac começou a colaborar com o Instituto de Medicina Tropical (IMT) em 1939, sendo professor da cadeira de Hematologia e Protozoologia, colaboração que manteve no ano seguinte.

Em 1941, prestou provas documentais e públicas como candidato ao lugar de professor auxiliar da cadeira de Higiene, Climatologia e Geografia Médicas do IMT, vaga que ocupou em fevereiro de 1942. Com base na sua experiência, remodelou o programa da cadeira amplificando a componente prática, planeando um posto meteorológico e projectando um insectário destinado à criação laboratorial de insectos para o estudo, a investigação e o ensino. Este seria o primeiro passo para a organização de um centro de malarioterapia que lhe permitiria aprofundar a profilaxia e a terapêutica da malária, o tratamento da paralisia geral de alienados e o tratamento da neurosíflis assintomática. Este projecto, Cambournac concretizou-o não no IMT mas no Instituto de Malariologia, disponibilizando assim aos serviços de psiquiatria do país um serviço de malarioterapia e o fornecimento de material infectante.

Às actividades lectivas no IMT juntaram-se ainda a direção do Laboratório de Análises Clínicas do IMT e a direção do IMT durante um mês, em substituição de Manoel Máximo Prates. Ao longo de 1943, dedicou-se à organização e à direção do Serviço de Vacinação contra a febre-amarela, à preparação dos projectos para a organização dos Institutos de Investigação Médica, nas colónias, e para a construção de um pavilhão destinado à preparação de vacinas e soros anti-venenosos. Foi nomeado secretário do conselho escolar e diretor da biblioteca do IMT, tomou o lugar do presidente da Junta de Saúde das Colónias e dirigiu novamente o IMT durante um mês, em substituição de João Fraga de Azevedo.

Entre janeiro e fevereiro de 1944, Cambournac sub-chefiou a missão de estudo médico-sanitária à colónia da Guiné, a sua primeira missão científica a partir do IMT. Nos anos seguintes, várias missões científicas foram organizadas, realizadas e dirigidas por si, para África e para a Índia.

O prestígio científico que Francisco Cambournac adquiriu nesta época no circuito nacional e internacional da medicina e da saúde tropicais, como malariologista, epidemiologista e sanitarista, aliado ao seu temperamento tranquilo, afável e diplomático, à sua experiência e às suas ligações à Sociedade das Nações e à Fundação Rockfeller, levaram-no a representar Portugal na Conferência Internacional de Saúde realizada em Nova Iorque, e a assinar a Constituição que criou a Organização Mundial de Saúde (OMS) no dia 22 de julho de 1946. Foi, assim, por via de Francisco Cambournac que Portugal se tornou membro fundador da OMS.

Com o início formal de atividade na OMS em abril de 1948, Cambournac passou a integrar o Comité de Peritos de Malária e a administração de saúde pública da nova agência de saúde mundial, e, ao mesmo tempo, a integrar as delegações portuguesas que participaram nas reuniões da organização.

O Instituto de Malariologia que Francisco Cambournac dirigia passou a colaborar regularmente com a OMS, participando em projectos de luta contra a malária e recebendo bolseiros de diversos países da Europa, do Médio e Extremo Oriente, e de África, para a frequência dos cursos ali ministrados. Paralelamente, a presença de Cambournac no Comité de Peritos de Malária da OMS permitiu-lhe discutir a situação da malária em Portugal no contexto da saúde pública internacional, num relatório que foi apresentando em fevereiro de 1950 àquela Comissão.

Respondendo à solicitação da OMS para elaborar um estudo sobre a situação da malária em África Equatorial, Francisco Cambournac passou grande parte do ano de 1950 a viajar pelo continente africano e a visitar as administrações dos serviços de saúde de vários países. Em outubro, Cambournac entregou à OMS o relatório solicitado sobre a malária em África Equatorial, que serviu de base à Primeira Conferência de Malária realizada naquela região africana no mês seguinte. Foi, então, um dos vice-presidentes do encontro e fez parte da comissão que redigiu o relatório dos debates da conferência. Com base na decisão aqui tomada para a criação de um Bureau da OMS em África, Cambournac propôs Brazzaville como a cidade de acolhimento, que foi aceite para a instalação da sede africana da Organização Mundial de Saúde.

Nos primeiros anos da década de 1950, Cambournac acumulou as funções na OMS com aquelas que desempenhava em Portugal e nas colónias: a direção do Instituto de Malariologia em Águas de Moura e a organização dos respectivos cursos de Malariologia; a regência da cadeira de Higiene, Climatologia e Geografia Médicas e a participação no conselho escolar do IMT; as reuniões científicas internacionais e as missões de estudo às colónias.

Entre maio e agosto de 1952, o nome de Francisco Cambournac foi várias vezes mencionado para o lugar de responsável da OMS em África. Era considerado pelos governos dos países membros da OMS com colónias em África e com delegações na Comissão para a Cooperação Técnica em África a sul do Sáara (CCTA), como conhecedor dos interesses dos países africanos, recomendável pela sua erudição e pela sua competência, alinhado com os interesses das potências coloniais no que respeitava às questões africanas, fiel à política da OMS, e competente para a administração dos fundos da organização. Cambournac foi unanimente eleito para o cargo de diretor regional da OMS para África a 1 de agosto de 1952, posição que assumiu a 1 de fevereiro de 1954.

Durante o seu mandato na OMS-África, Francisco Cambournac percorreu o continente africano visitando os serviços de saúde, definiu estratégias de combate à malária e a outras doenças que afectavam o continente, e promoveu a formação de técnicos em medicina tropical. Continuou com actividades profissionais em Portugal e nas colónias portuguesas: em 1955 apresentou um estudo sobre a malária em S. Tomé e Príncipe; em 1956 apresentou vários estudos sobre algumas patologias em Angola; e em 1957 integrou, na qualidade de vogal, a recém-criada Comissão de Higiene e Saúde do Ultramar do IMT.

Ao longo do ano de 1958 o seu desempenho na OMS-África foi reconhecido pela sua reeleição para o cargo pelos Estados-Membros e pela CCTA. Iniciou o segundo mandato de 5 anos como Diretor do Bureau Regional Africano em 1 de fevereiro de 1959. No mesmo ano, o nome de Cambournac foi falado para a substituição do Diretor Geral da OMS, caso Marcolino Gomes Candau renunciasse às funções no ano seguinte, o que não aconteceu.

Enquanto dirigiu o Departamento da OMS-África, Cambournac influenciou a carreira de alguns especialistas, entre os quais M. A. C. Dowling (WHO 1955-1982 / 1996) e W. L. Barton (OMS 1972-1983), médicos que ficaram associados aos programas de erradicação e de controlo da malária da OMS.

A conduta de Francisco Cambournac na Organização Mundial de Saúde, distinta da política colonial portuguesa, valeu-lhe uma homenagem numa sessão do Conselho Executivo da OMS pelos seus colegas das Nações de África e a sua permanência até ao final do segundo mandato.

Em 1961, Cambournac foi nomeado transitoriamente para a Direção do IMT até 1962, substituindo João Fraga de Azevedo no cargo de diretor, e definitivamente nomeado diretor do IMT em 1964, quando regressou a Portugal após a conclusão do seu mandato na OMS-África.

Quando em 1 de janeiro de 1967 se deu o início da atividade da Escola Nacional de Saúde Pública e Medicina Tropical (ENSPMT) que resultou da fusão do IMT com o Instituto Superior de Higiene Dr. Ricardo Jorge, Francisco Cambournac assumiu também as funções de diretor por um período de 5 anos. Por inerência, foi vogal do Conselho Superior de Saúde e Assistência.

Em outubro de 1972, com a separação da ENSPMT em Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) e em Escola Nacional de Saúde Pública, Cambournac foi nomeado diretor do IHMT, cargo no qual se manteve até à sua jubilação em 26 de dezembro de 1973.

Em 1978, Francisco Cambournac foi distinguido pela OMS com o Prémio da Fundação Léon Bernard, pelo seu contributo para o estabelecimento da OMS em África e para a prevenção e o controlo das doenças endémicas tropicais.

Cambournac manteve-se ativo na medicina tropical portuguesa após a sua jubilação: entre 1980 e 1981 acompanhou um projecto-modelo da OMS com a finalidade impedir a re-introdução da malária em Cabo Verde; acompanhou o diretor do IHMT António Rendas numa Missão à Guiné-Bissau em 1984 para apresentar uma proposta de cooperação com o Ministério da Saúde daquele país, e a S. Tomé e Príncipe em 1985 numa missão para a cooperação com os novos Estados africanos. Em 1986, assumiu a coordenação técnico-científica da missão realizada a S. Tomé e Príncipe conjuntamente pelo IHMT e pela Cruz Vermelha Portuguesa, bem como a representação oficial das duas instituições.

Francisco Cambournac foi sócio do grupo português da História das Ciências, membro da Academie Internationale d’Histoire dês Sciences, e foi membro da comissão científica da Rivista di Malariologia, de Roma. Foi condecorado com o Grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 1985, e recebeu a Medalha de Honra do Concelho de Palmela, atribuída a título póstumo, em 1 de junho de 2012.

Faleceu em Lisboa a 8 de junho de 1994.              

Rita Lobo

Arquivo

Cambournac, Francisco e Landeiro, Fausto. O Sezonismo em Portugal. Missão da Direcção Geral de Saúde – Rockefeller Foundation. Direcção e Orientação do Dr. R.B. Hill. Colecção de Relatórios, Estudos e Documentos Coloniais (28), Ministério das Colónias, 1933

Cambournac, Francisco. Le Paludisme au Portugal. Comité D’Experts du Paludisme – Organisation Mondiale de la Santé (WHO/Mal/35), 1950.

Cambournac, Francisco. Report on Malaria in Equatorial Africa. World Health Organization (WHO/Mal/58, Afr/Mal/Conf/14), 1950.

Obras

Hill, Rolla, Landeiro, Fausto e Cambournac, Francisco. A malária e a organização da luta anti-malárica em Portugal. Lisboa: Tipografia Henrique Torres, 1938.

Cambournac, Francisco. “Aedes (Ochlerotatus) longitubus, a new species from Portugal (Diptera, Culicidae)”. The Proceedings of the Royal Entomological Society of London, Series B. Taxonomy (7) (1938):74-86.

Cambournac, Francisco. Sobre a epidemiologia do sezonismo em Portugal. Lisboa: Tipografia da Sociedade Industrial, 1942.

Cambournac, Francisco. As ciências médicas e a melhoria da saúde nas províncias ultramarinas. Porto: Tipografia Sequeira, 1965.

Cambournac, Francisco. Actividades actuais dos portugueses no campo da Saúde pública nas regiões tropicais. Porto: Imprensa Portuguesa, 1967.

Bibliografia sobre o biografado

Cambournac, Francisco, curriculum vitae – Exposição documentada da carreira e títulos científicos e pedagógicos, Concurso para professor auxiliar da 1ª cadeira do Instituto de Medicina Tropical: Higiene, Climatologia e Geografia Médicas. Lisboa: 1941.

Abranches, Pedro. O IHMT, um século de história, 1902-2002. Lisboa: CELOM, 2004.

Mora, António Damas

Rio de Moinhos, 2 maio 1879 — Lisboa, 4 junho 1949

Palavras-chave: Doença do Sono, Angola, Instituto de Medicina Tropical, Assistência Médica aos Indígenas.

DOI: https://doi.org/10.58277/LNDF9819

António Damas Mora foi um médico que dedicou a maior parte da sua vida aos programas de Assistência Médica aos Indígenas e ao combate à doença do sono, tendo a sua ação principal decorrido em Angola (1921-1934).

Nasceu em Rio de Moinhos (Abrantes) onde frequentou o Ensino Primário, findo o qual se inscreveu no Colégio de S. Fiel (Serra da Gardunha), pertencente à Companhia de Jesus.

Terminado o curso secundário matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, onde foi aluno, entre outros, de José António Serrano, Miguel Bombarda, Curry Cabral, Alfredo da Costa e Ricardo Jorge. Este último viria a ter a maior influência na sua carreira profissional. 

Em 1896 alistou-se como voluntário no Exército Português na situação de “soldado aspirante a facultativo do Ultramar”,e, em 1901, defendeu a tese de licenciatura intitulada “Breves considerações sobre o fórceps como tractor”.Nesse mesmo ano entrou como Externo no Internato do Hospital de S. José e Anexos, mas a sua passagem por esta instituição foi breve, pois, em 1902, foi nomeado para o quadro de Saúde de Angola e S. Tomé e Príncipe, tendo aportado a S. Tomé em março desse ano, após o que foi colocado na Ilha do Príncipe na qual permaneceu até 1910.

A doença do sono, importada de Angola, era uma endemia que dizimava as populações, e foi ao combate desta doença, que se dedicou enquanto permaneceu na ilha.

A Escola de Medicina Tropical (EMT) empenhou-se na luta contra a doença e enviou 3 missões médicas que ali atuaram entre 1904 e 1911.

António Damas Mora foi integrado na 2ª missão (1907-1908), chefiada por Correia Mendes, que tinha como finalidade a destruição do habitat da mosca tsé-tsé (desmatação), a eliminação dos animais selvagens portadores da doença, e, a terapêutica e profilaxia com Atoxyl, um medicamento injetável pela primeira vez utilizado por Ayres Kopke em 1905. Esta missão preparou a seguinte, chefiada por Bruto da Costa, que pôs fim à doença ao eliminar o seu vetor, feito que teve repercussão internacional.

Damas Mora regressou à metrópole em 1910, e, após um período passado em Lisboa, ofereceu-se para ser colocado no Quadro de Saúde de Macau e Timor, chegando a esta ilha em 16 de Fevereiro de 1914. Aqui assumiu o cargo de diretor dos Serviços de Saúde. Organizou, então, um sistema de visitas médicas periódicas ao interior do território.

Para além disso criou o Boletim Sanitário de Timor, publicação mensal, fundou uma Escola de Enfermagem no Hospital de Díli, e combateu as doenças endémicas: beribéri, lepra, paludismo, doenças venéreas e úlceras tropicais. Criou, também, as termas do Marôbo, indicadas para tratamento de “reumatismos, micoses e eczemas”.

Quando em 1919 regressou a Lisboa (numa viagem que durou 110 dias) foi louvado pelo governador de Timor, o oficial de Marinha Filomeno da Câmara (1873-1934).

Em 1920 assumiu a chefia da Direção de Saúde do Ministério das Colónias onde fomentou legislação com a intenção de fazer a reforma sanitária das colónias: promoção de estágios no estrangeiro para médicos coloniais, reorganização da EMT, organização de congressos e publicação de uma revista de medicina tropical.

Quando, em 1921, o General Norton de Matos (1879-1955) foi nomeado Alto-comissário de Angola, chamou-o para ocupar o lugar de Chefe de Repartição de Saúde e Higiene de Angola, o mais alto cargo no âmbito da saúde, e incumbiu-o de organizar a assistência médica aos indígenas. Ao longo dos anos passados em Angola foi a sua grande causa. Ainda neste ano foi nomeado diretor do Hospital de Luanda e lançou a Revista Médica de Angola, anos mais tarde substituída pelo Boletim de Assistência Médica aos Indígenas e da Luta contra a Doença do Sono.

Em 17 de Novembro foi promulgado por Norton de Matos o Dec. Nº24 da Província de Angola, que, entre outras obrigações, promovia a administração gratuita do quinino a funcionários e pobres, e determinava a gratuitidade da assistência médica para muitas classes de europeus e para todos os africanos não assimilados. Esta generalização da assistência médica, sem distinção étnica era uma medida nunca até então praticada. 

Competia à Assistência Médica aos Indígenas (AMI) estabelecer os cuidados preventivos à mulher grávida e à criança, fazer visitas periódicas às sanzalas (aldeias), criar maternidades e promover a vacinação antivariólica em larga escala, bem como a profilaxia das doenças contagiosas, particularmente a Doença do Sono. Com a criação desta estrutura, o número de médicos aqui destacados tinha passado de 25 para 51, no interior de Angola. Um dos seus colaboradores, Carlos d´Almeida, destacado para o norte (Congo e Zaire) conseguiu, em três anos, reduzir a incidência da da doença, de 12% para valores residuais. Todo o programa da AMI se iniciou no mandato de Norton de Matos (1921-1924), mas a sua concretização só foi conseguida no tempo do engenheiro militar, Vicente Ferreira.

Entretanto, com o apoio de Norton de Matos, organizou o 1º Congresso de Medicina Tropical de África Ocidental, que teve lugar em Luanda entre 16 e 23 de julho de 1923. O tema principal foi a assistência médica aos indígenas nas colónias dos diversos países europeus. Compareceram 76 congressistas entre os quais se destacava Émile Brumpt (1877-1951), professor de Parasitologia da Faculdade de Medicina de Paris, e uma autoridade mundial nesta matéria, e, entre os nacionais, Ayres Kopke e Carlos França. As atas do Congresso foram reunidos numa obra publicada em cinco volumes, com cerca de 2.900 páginas.

Durante o Congresso Damas Mora atingiu o posto de coronel – médico, o mais alto da carreira médica militar à época. Pouco depois, Norton de Matos, que tinha realizado obras de fomento em Angola, acusado pelos seus adversários metropolitanos de despesismo, foi demitido e colocado como embaixador em Londres.

Sem o apoio do general, Damas Mora foi exonerado a seu pedido e, em 1924, regressou a Lisboa.

Em março de 1926 foi nomeado por Ricardo Jorge para, juntamente com João Ornelas, integrar uma missão de estudo constituída por 12 médicos higienistas europeus, que, com o apoio da Fundação Rockefeller iriam percorrer, as colónias do noroeste africano entre Dakar (Senegal) e Freetown (Serra Leoa). Foi o designado” tour de Dakar”, após o qual, na conferência reunida nesta última cidade, se estabeleceu o princípio de que o progresso de África só era possível se as suas populações – desnutridas e vítimas das mais agressivas endemias – fossem saudáveis.

O que observou nesta viagem teria a maior importância no pensamento e na ação de Damas Mora em Angola.

Em setembro do mesmo ano Vicente Ferreira foi nomeado Alto-comissário em Angola e promoveu o regresso de Damas Mora a quem entregou a direção dos Serviços de Saúde e Higiene. Foi então criado o Fundo de Assistência ao Indígena com um orçamento de 7000 contos doado pelo Governo Central.

O território, em que era maior a incidência da doença do sono, foi então dividido em 4 Zonas Sanitárias (Congo-Zaire, Cuanza, Luanda e Benguela) cada uma sob a alçada de um médico- chefe, zonas subdivididas em Sectores, também com um médico por cada sector, sendo estes sectores constituídos por Postos Sanitários, sob a responsabilidade de enfermeiros. O último escalão deste sistema eram os Centros de Convocação nos quais compareciam periodicamente, e num regime obrigatório, as populações vizinhas que eram submetidas a observação para vigilância não só desta patologia, mas também da varíola, boubas, paludismo, etc. O tratamento com Atoxyl passou, também, a ser obrigatório.

Ao mesmo tempo foram criadas as Missões Volantes que levavam a assistência médica aos mais recônditos lugares da selva africana.

O âmbito da AMI foi então alargado aos campos administrativo, moral e religioso, sendo este entregue aos missionários. É a AMI Integral, um conceito genuinamente português, que os belgas adaptaram na sua colónia do Congo. 

Havia a intenção de aplicar este programa a todo o território de Angola, mas, por razões políticas e financeiras, só foi possível cumpri-lo nas zonas endémicas da doença. Foi ainda neste período que se criaram as sanzalas-enfermarias,aglomerados de cubatas em que aos doentes era permitido o convívio com a família, provendo esta ao seu sustento alimentar, e as aldeias-modelares, nas quais se distribuíam casas e terrenos a casais africanos saudáveis, que tinham, como contrapartida, a obrigação de se autossustentarem cultivando o terreno.  

As sanzalasenfermarias atingiram um número elevado, sendo atribuído a uma delas o seu nome, ao contrário das aldeias-modelares para as quais foi sempre escasso o apoio financeiro e político.

Entretanto, Salazar tinha chegado ao poder, e era ministro das Finanças. Considerando o regime financeiro de Vicente Ferreira, absurdo, demitiu-o em novembro de 1928.

Damas Mora foi nomeado Governador-geral Interino, e após uma viagem de 3000 quilómetros pelo interior de Angola prometeu aos agricultores a manutenção da campanha do trigo, e afirmou a sua convicção de que o futuro da província assentava em três fatores: multiplicação da população europeia e africana, desenvolvimento agrícola e melhoria nas comunicações.

Em Dezembro, no decorrer do 1º Congresso de Higiene e Medicina Tropical, realizado no Cairo, foi agraciado com o grau de Doutor pela Universidade do Cairo.

O seu mandato foi curto. Em 2 de Fevereiro de 1929 desembarcou em Luanda o novo Alto – comissário, o oficial de Marinha Filomeno da Câmara, que trazia instruções do governo central para impor a maior austeridade nas finanças de Angola. Foi assim destruída toda a estrutura sanitária erguida nos anos precedentes, e Damas Mora considerou que não tinha condições para desempenhar o seu cargo e regressou, mais uma vez, a Lisboa.

Foi neste período que o presidente da Organização de Saúde da Liga das Nações, Ludwik Rajchman, o convidou para o “Comité” de Peritos da doença do sono., sediado em Genebra.

Filomeno da Câmara governou Angola despoticamente, e um levantamento militar, em março de 1930, obrigou o governo central a demiti-lo.

Damas Mora regressou às suas funções em Angola, mas, lutando com falta de verbas que o ministro Armindo Monteiro lhe não concedia, não conseguiu que o Serviço de Saúde atingisse os padrões anteriores.

Nos relatórios oficiais Damas Mora queixou-se de só em parte lhe ter sido possível converter a orientação básica daquele serviço, que era a do tratamento individual, em Higiene Pública, mas lembrava que a doença do sono. tinha deixado de ser a calamidade dos anos 20, tendo o índice de infeção, por exemplo na Zona do Cuanza, baixado de 2,86%, em 1927, para 0,14% em 1934.

Em 1932 representou Portugal na Conferência Médica do Cabo (África do Sul) dedicada à peste e à Assistência Médica aos Indígenas e provou que Portugal nestes campos estava claramente avançado em relação aos outros países coloniais. 

Em 1933 foi publicado o Diploma 442 que regulamentou o exercício das farmácias em Angola.

Em 1934 foi convidado pelo governo central para desempenhar o lugar de Diretor dos Serviços de Saúde de Macau, onde desembarcou em 1 de fevereiro de 1935. Editou, então, mais uma revista: o Boletim Sanitário de Macau e tomou várias medidas na área da Higiene Pública: fomentou o saneamento do pântano de Sankin e da lagoa de Mong-Há, combatendo assim o paludismo, e acabou com o beribéri nas prisões da cidade. Participou na II Conferência Internacional de Cantão para estudo da Lepra e na de Hong-Kong para combate ao tráfico de mulheres, sendo, em 1936, nomeado para a Comissão de estudos sobre o ópio. Foi, ainda, provedor da Santa Casa da Misericórdia e vogal substituto do Juiz de Direito.

Em 1936 regressou definitivamente a Lisboa, onde foi nomeado diretor do Instituto de Medicina Tropical, cargo habitualmente desempenhado por um professor do Instituto, norma que neste caso foi ultrapassada, pela experiência que adquirira ao longo da  vida dedicada à Medicina Tropical.

No Instituto criou a cadeira de Assistência Médica aos Indígenas, e instituiu os concursos académicos semelhantes aos da Faculdade de Medicina de Lisboa, tendo presidido a vários júris.

Em 1939 atingiu o limite de idade e viveu mais 10 anos de uma reforma tranquila, que teve o seu término no dia 4 de junho de 1949, tendo morrido de um provável enfarte do miocárdio.

Ao longo da sua vida recebeu numerosos louvores e as seguintes condecorações: Medalha Militar de Prata de Bons Serviços (1925), Medalha Militar de Prata de Comportamento Exemplar (1925), Grande Oficial da Ordem Militar de Avis (1925), Cavaleiro da Ordem de Leopoldo (agraciado pelo rei Alberto da Bélgica, que tinha por ele grande estima), Medalha Militar de Ouro de Comportamento Exemplar (1932), Comenda de Nichan-El-Anouar (governo Francês – 1934), Grande Oficial da Coroa Belga (1935) e Comenda da Ordem do Império Português.

O seu tempo de serviço oficial nas colónias portuguesas – considerando os aumentos resultantes da colocação nestes territórios – atingiu 56 anos:19 em S. Tomé e Príncipe, 24 em Angola, 10 em Timor e 3 em Macau.

Luiz Damas Mora
Ex-Cirurgião dos Hospitais Civis de Lisboa, 
 Presidente da Comissão do Património Cultural do Centro Hospitalar de Lisboa Central

Arquivo

Mora, António Damas. Processo individual, Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Proc. 90.760, P1, cx 5620.

Mora, António Damas. Processo Militar, depositado no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), com as seguintes cotas: AHU-MC-DGM – 4ª Rep.,Cxª 647, P.tª 80, Pro.º 39; AHU-MC-DGM – 4ª Rep., Cx.ª 1201, P.tª 19, Pro.º 23; AHU-MC-DGM-4ª Rep., Cx.ª 1055-A, P.tª 1-B, Pro.º 38, 1º vol.; 4ª Rep., Cx.ª 1055-A, P.tª 1-B, Pro.º 38, 8º vol.

Obras 

Mora, A. Damas. “Assistência Médica aos Indígenas em África.” A Medicina Contemporânea, 43, 1926 : 353 a 357 e 393 a 396.

Mora, A. Damas. “O Estado actual da assistência médica aos indígenas na colónia de Angola e outras colónias estrangeiras do grupo da África inter-tropical.” Memória apresentada no 3º Congresso Colonial Nacional, 1930. 

Mora, A. Damas. “Serviços de Saúde e Higiene – Considerações finais de um relatório do seu Director.” A Província de Angola, 27 de junho, 1934.

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