Tomás, Álvaro (Alvarus Thomas)

Lisboa, ca. 1489 — Paris, 1521

Palavras-chave: filosofia natural, medicina, tradição calculatória, Collège de Cocqueret, Universidade de Paris. 

DOI: https://doi.org/10.58277/FMHY1443

Álvaro Tomás nasceu em Lisboa e faleceu na cidade de Paris, onde viveu muito provavelmente a partir de 1500. 

Destacou-se pelos seus trabalhos no âmbito da ciência do movimento; desenvolveu um estudo sobre as propriedades do movimento uniformemente acelerado; apresentou uma análise complexa da teoria das proporções; e alcançou resultados relevantes no estudo das séries infinitas. O prestígio que lhe conferiram estes trabalhos científicos tornaram-no uma figura marcante da tradição calculatória europeia, de tal forma que alguns historiadores o consideraram até como um precursor de Pedro Nunes e de Galileu Galilei.

Muito escassas são as informações sobre a sua biografia. A primeira notícia data de 1509, ano em que Tomás surge como professor de artes no Collège de Cocqueret (ou Cocquerett) da Universidade de Paris. Em 1513, Tomás estava ainda a ensinar Filosofia Natural no mesmo colégio universitário. Como era hábito àépoca, muitos estudantes inscritos nas Faculdades de Medicina, Teologia e Direito trabalhavam como professores nos colégios parisienses para conseguirem pagar as suas propinas universitárias. Entre 1515 e 1518, licenciou-se primeiro em Medicina e, logo depois, recebeu o título de Doutor. Em 1518, começou a ensinar na Faculdade de Medicina, onde foi nomeado professor, e ficou com este cargo até à data da sua morte, em 1521. 

O ambiente intelectual de Paris e da sua universidade no início do século XVI era extremamente estimulante Na altura em que Álvaro Tomás chegou á universidade, estava já bem enraizada uma forte tradição de estudantes ibéricos. Entre outros, contam-se Francisco de Melo, Pedro Margalho, Pedro Ciruelo e Juan de Celaya.

Publicado em Paris, em 1509, o Liber de triplici motu é a única obra conhecida de autoria de Álvaro Tomás. Trata-se de uma obra sofisticada e complexa, sobretudo escrita por um homem com pouco mais de vinte anos. O Liber de triplici motu revela uma evidente filiação à escola dos calculadores do Merton College, em Oxford – e principalmente à obra de Richard Swineshead (Suiseth, fl. 1340-1354) –, integrada nos trabalhos científicos da tradição medieval parisiense representada por Nicole Oresme .Não obstante a complexidade técnica do Liber de triplici motu, a obra teve uma larga divulgação e era bem conhecida pelos intelectuais do seu tempo. 

Luana Giurgevich 

Obras

Álvaro Tomás, Liber de triplici motu proportionibus annexis magistri Alvari Thomae Ulixbonensis philosophicas Suiseth calculationes ex parte declarans, Impressum Parrisiis, per Guillermum Anabat, 1509.

Bibliografia relevante sobre o biografado

Carlos Correia de Sá, “A soma de séries na obra De triplici Motu de Álvaro Tomás,” in Encontro Luso-Brasileiro de História da Matemática (2004), disponível online, último acesso a 26 de Janeiro de 2017: http://chcul.fc.ul.pt/textos/Sa_2004-Tomas.pdf.

Edith Sylla, “Alvarus Thomas and the role of Logic and Calculations in sixteenth century Natural Philosophy,” in Studies in Medieval Natural Philosophy, ed. Stefano Caroti (Firenze: Leo S. Olschki, 1989), 257-298. 

Edith Sylla, “Mathematics in the Liber de triplici motu of Alvarus Thomas of Lisbon,” in The practice of Mathematics in Portugal (Coimbra: 2004), 109-161.

Francisco Gama Caeiro, “Tomás, Álvaro,” in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 17 (Lisboa: Editorial Verbo, 1963-1985), 1643.

Francisco Gomes Teixeira, “Alvaro Tomaz e Gaspar Nicolas, aritmeticos,” in História das Matemáticas em Portugal (Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1934), 95-97.

Heinrich Wieleitner, “Zur Geschichte der unendlichen Reihe im Christlichen Mittelalter,” Bibliotheca Mathematica, Dritte Folge 14 (1914) 150-168.

Henrique Leitão, “Notes on the life and work of Álvaro Tomás,” Bulletin do CIM [Centro Internacional de Matemática] 9 (2000) 10-15.

Henrique Leitão, “Álvaro Tomás, calculator português em Paris,” Ciência em Portugal: Personagens e Episódios, disponível online, último acesso a 26 de Janeiro de 2017: http://www.instituto-camoes.pt/cvc/ciencia/e44.html. 

Julio Rey Pastor, Los Matematicos Españoles del Siglo XVI (Toledo: Biblioteca Scientia, 1926), 82-89.

Luís de Matos, Les Portugais à l’Université de Paris entre 1500 et 1550 (Coimbra: Universidade de Coimbra, 1950).

Maria Elfrida Ralha e Maria Fernanda Estrada, “Os conceitos matemáticos de número irracional e de razão composta, segundo Álvaro Tomás, no seu Liber de Triplici Motu,” in 4.º Encontro Nacional de História das Ciências e da Tecnologia: Construir Ciência, Construir o Mundo, 12-14 de Junho de 2014, disponível online, último acesso a 26 de Janeiro de 2017: http: //hdl.handle.net/1822/42845. 

Pascal Brioist e Jean-Jacques Brioist, “Harriot, lecteur d’Alvarus Thomas et de Niccolo Tartaglia,” in Mathématiques et théories du mouvement. XIVe-XVIe siècles, ed. Joel Biard e Sabine Rommevaux (Villeneuve d’Ascq: Presse Universitaire du Septentrion, 2008), 147-172.

Pierre Duhem, Études sur Léonard de Vinci, vol. 3 (Paris: Hermann et Fils, 1906-1913), 532-543.

Stefan Paul Trzeciok, Alvarus Thomas und sein Liber de triplici motu, 2 vols. (Berlin: Max Planck Institute for the History of Science-Edition Open Access: 2016) [Sources 7].

William Wallace, “Thomaz, Alvaro,” in Dictionary of Scientific Biography, ed. Charles Coulston Gillispie, vol. 13 (New York: Charles Scribner’s Sons, 1970-1980), 350.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano

Almada, 1637 – 1675

Palavras-chave: astrologia, almanaques, medicina, Barroco Português.

DOI: https://doi.org/10.58277/JIGL9265

Manuel Gomes Galhano Lourosa foi um dos mais prolíficos autores portugueses de almanaques astrológicos do século XVII. Apesar disto, existem poucos dados biográficos sobre a sua figura. 

Antes de ingressar no ensino superior, tirou o curso de Artes, onde aprendeu matemática, astronomia e astrologia, a qual venerava como a “rainha” de todas as artes liberais. Em seguida estudou e licenciou-se em Medicina na Universidade de Coimbra e exerceu a profissão de médico na Costa de Caparica e em Almada. 

Foi discípulo de Frei Pedro de Menezes (1623–1650), religioso beneditino e lente de Matemática na Universidade de Coimbra e em vários lugares das suas obras deixou transparecer a admiração pelos “doutissimos Padres Conimbricenses, que são a nata de todas as boas letras, e a quem se deve toda a benevolencia, e beneplacito, como primeiros productores de bom leite, que todos os estudantes mamamos nas suas Academias, e Universidades”. 

Apesar de se inserir na tradição cosmológica aristotélico-ptolemaica, aceite pela maioria dos astrólogos portugueses seus contemporâneos, Lourosa acompanhou de perto os debates científicos e filosóficos mais atuais da sua época e, especialmente, as teorias sobre a natureza dos cometas de astrónomos como Tycho Brahe (1546–1601), Manuel Bocarro Francês (1588–1662) ou o jesuíta Cristóvão Borri (1583–1632). No que respeita à tradição médica, Lourosa socorreu-se da medicina hipocrática. 

Os lunários e prognósticos escritos pelo autor foram obras vendidas a preços muito baixos (custavam apenas 4 reis  na década de 1640) e conseguiram chegar a um público muito amplo. Este facto garantiu-lhe um sucesso editorial imediato e trouxe-lhe uma grande fama, que não foi afetada nem pelas polémicas acaloradas com outros ilustres cientistas. A controvérsia com António Pimenta (1620–1700), professor de Matemática em Coimbra, está patente no Tratado nas Ephemeridas de Euclides, em o qual refuta certas opinioens de Manuel Alvares Galhano Medico de Almada divulgadas no seu Prognostico do anno de 1662. A disputa com Francisco Guilherme de Casmach (1570–1650), cirurgião e médico da Família Real, foi a que se tornou particularmente violenta. A causa que provocou a acesa discussão entre os dois intelectuais foi um pequeno tratado sobre a praga de gafanhotos de 1639 – publicado anonimamente – que Lourosa reivindicara como seu num prognóstico datado de 1641. A diatribe,[2]  ao contrário do que era de esperar, reforçou o prestígio social de Lourosa, que ficou tão famoso que até D. Francisco Manuel de Melo (1608–1666), numa das suas Cartas familiares, o indicou como um “acreditado vaticinador de tempos e novidades”. Lourosa ficou conhecido também pelo seu empenho na Restauração da Independência de Portugal. O apoio dado ao novo governo foi evidente no prognóstico de 1669, no qual o autor festejou o tratado de paz entre Portugal e Espanha de 1668 e a independência de Portugal.

A sua carreira astrológica foi intensa. Ao longo de quarenta anos, publicou regularmente almanaques astrológicos. Para além de prognósticos e lunários, editou também versos em latim e escreveu um comentário ao primeiro canto d’Os Lusíadas de Camões. As obras científicas de Lourosa foram editadas por oito impressores diferentes: Manuel da Silva (1644?), Vicente de Lemos (1645?), António Alvarez (1643–1653), João Alvarez de Leão (1655–1657), Domingos Carneiro (1662?–1665), João Pereira (1666), António Craesbeeck de Melo (1659 e 1666–1668) e Francisco Vilela (1672–1674). Muitas das suas obras nunca foram impressas, apenas existindo versões manuscritas. Entre estas, salienta-se uma das suas primeiras obras juvenis, o Alvitre matemático, que ficou inédita por não ter recebido a autorização da Inquisição. A Polymathia Exemplar, onde expôs a sua teoria sobre a natureza dos cometas e analisou a passagem de um cometa em 1664–1665, é considerada a sua obra maior. 

Faleceu em Almada e foi sepultado no Convento dos Capuchos da Caparica da Ordem dos Frades Menores da Província da Arrábida. 

Luana Giurgevich

Obras

Lisboa, Biblioteca Nacional. Lourosa, Manuel Gomes Galhano.  1641. Alvitre Mathematico. Tratado Politico, physiologico, democratico, ethico, aristocratico e theologico. Dado et dirigido ao novo monarcha da lusitania, aos briosos fidalgos et leays deste reyno, aos nobres vassalos seus et ao fidelissimo povo de Portugal. Repartido em quatro discursos breves et ultimamente em hum epilogo succinto de todo tratado historico. Offerecido ao mesmo monarcha excelso Dom João IIII Rey do nome dado pelo ceo a esta monatchia[?] lusitana. Composto pelo licenciado Manuel Gomes Galhano Louroza Medico et Mathematico natural da villa de Almada. Almada: s. n. Cod. 517.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Documentos varios para todos, e segundo prognostico: Tirados da Astrologia, Dignos de se observarem em todas as Luas dos doze mezes do anno de 1645… Lisboa: Manuel da Silva, s. d., 1644?.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e Lunario do Anno de 1646: Com todos os aspectos assi do Sol com a Lua, como dos mais Planetas: Vão juntamente 7 notabilidades deste mesmo Anno de 46 dignas de ponderação: Calculado ao meridiano de Lisboa… Lisboa: Vicente de Lemos, s. d., 1645?.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1644: com todos os aspectos da Lua com o Sol, & dos mais Planetas com a mesma Lua: leva mais seis notabilidades dignas de ponderar neste mesmo anno de 644.: calculado ao Meridiano de Lisboa…: offerecido, não a quem o ler de emprestimo, mas a quem o comprar por seu dinheiro.Lisboa: Antonio Alvarez Impressor del Rey N. Senhor, 1643. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognosto, e Lunario do anno de 1647: com os aspectos mais principaes de todos os 7. Planetas: vam tambem 4. notabilidades do mesmo anno, que são dignas de notar: calculado ao Meridiano de Lisboa… dedicado aos Medicos Astrologos deste Reyno. Lisboa: Antonio Alvarez Impr. DelRey N. S., 1647. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e Lunario do Anno de 1648: Com todos os aspectos mais notaveis de todos os 7 Planetas: Vam tambem 6 notabilidades do mesmo Anno de 48: Calculado ao meridiano da Cidade de Lisboa…Lisboa: Antonio Alvarez, 1647. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e Lunario do Anno de 1649: Com os mais principaes aspectos dos Planetas: Vam tambem 7 notabilidades do mesmo Anno de 49: Calculado ao meridiano da Cidade de Lisboa… Lisboa: Antonio Alvarez Impr. DelRey N. S., 1648.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1650: com as conjunçoens, quadrados, & opposiçoens de todos os 7. Planetas: vam tambem 5. notabilidades do mesmo anno de 50: calculado ao Meridiano da Cidade de Lisboa…Lisboa: Antonio Alvarez Impr. Del Rey N. S., 1649. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1651: com os aspectos dos Planetas mais notaveis, vam tambem 2. notabilidades do mesmo anno de 51.: calculado ao Meridiano da Metropoli deste Reyno… Lisboa: Antonio Alvarez Impr. Del Rey N. S., 1650. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1652: com as suas notabilidades dignas de ponderação: estas seram 4. abaixo referidas: calculado ao Meridiano de Lisboa, cabeça da Lusitania… Lisboa: Antonio Alvarez, 1651.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1653: com 6. notabilidades dignas de consideração: calculado ao Meridiano de Lisboa, cabeça da Lusitania…Lisboa: Antonio Alvarez Impressor Del Rey N. S., 1652. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1654: com 3. notabilidades dignas de consideração: calculado ao Meridiano de Lisboa, cabeça da Lusitania… Lisboa: Antonio Alvarez Impressor Del Rey N. S., 1653.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1656: calculado ao Meridiano da Cidade de Lisboa… desempenho do anno passado de 1655. que tambem servirà de prologo ao leitor deste presente de 1656. Lisboa: João Alvarez de Leão, Impressor de livros, 1655. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Pronostico e Lunario do anno de 1658: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: João Alvarez de Leão, 1657. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1660: calculado ao Meridiano de Lisboa… vay acrecentado com algumas annotações, & notabilidades raras de cousas preteritas, & futuras, tudo digno de ponderação, que nota cautellas & advertencias. Lisboa: Officina d’Antonio Craesbeeck, 1659. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhan. Prognostico e lunario do anno de 1662… Lisboa: Antonio Craesbeeck, 1661. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1663: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: Domingos Carneiro?], 1662. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1665: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: Domingos Carneiro?], 1664. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1666: calculado, ao Meridiano da Cidade de Lisboa… vai acrecentado com huma advertencia breve, ou annotação succinta sobre a noticia do Cometa passado, que todos vimos neste anno de 1665. Lisboa: Domingos Carneyro, 1665. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1667: calculado ao Meridiano da Cidade & Corte de Lisboa… Lisboa: Joam Pereira Mercador de Livros, 1666. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano Lourosa. Polymathia exemplar: doctrina de discursos varios: offerecido ao Conde de Castel-Melhor: Cometographia Meteorologica do prodigioso, e duturno Cometa, que appareceo em Novembro do anno de 1664, occupação curiosa do Licenciado Manoel Gomez Galhano Lourosa, Medico Lusitano. Lisboa: Officina de Antonio Craesbeeck de Mello Impressor de S. Alteza, 1666. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Discurso Medico, appendis de contagios ao tratado do Cometa. Lisboa: Officina de António de Craesbeeck de Mello Impressor de S. Alteza, 1666. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario de 1668: calculado ao Meridiano da Cidade de Lisboa… Lisboa: Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, Impressor del Rey N. Senhor, & de Sua Alteza, 1667.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e Lunario do anno de 1669: calculado ao Meridiano de Lisboa…: prognostico de Pazes, & de aplausos Lusitanos. Lisboa: Impressão de Antonio Craesbeeck de Mello, Impressor de Sua Magestade, & Alteza, 1668.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico & Lunario do anno de 1673: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: Officina de Francisco Villela, 1672.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico, e Lunario do anno de 1674: com todos os aspectos da Lua com o Sol, & mudanças do tempo: calculado ao Meridiano da Cidade de Lisboa… Lisboa: Officina de Francisco Villela, 1673.

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico & lunario do anno de 1675: com as particularidades mais necessarias das mudanças dos tempos dos 12, mezes do anno: calculado ao Meridiano de Lisboa… Lisboa: Officina de Francisco Villela, 1674. 

Lourosa, Manuel Gomes Galhano. Prognostico e lunario do anno de 1669… Lisboa: Impressão de Antonio Craesbeeck de Mello, 1681?. 

Bibliografia relevante sobre o biografado

Camenietzki, Carlos Ziller. “O Astrônomo e a Restauração. Manuel Gomes Galhano Lourosa e sua intervenção na política de Portugal Restaurado.” In History of Astronomy in Portugal, Proceedings of the International Conference History of Astronomy in Portugal: Institutions, Theories, Practices, Lisboa, 24-26 September, 2009, ed. Luís Saraiva, vol. 1, 183-202. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Astronomia, 2014. 

Camenietzki, Carlos Ziller e Luís Miguel Carolino, “Astrologers at War: Manuel Gomes Galhano Lourosa and the Political Restoration of Portugal, 1640-1668.” Culture and Cosmos 13 (2009): 63-85.

Mota, Carlos Henrique Vólaro Caminha. “Sinais de soberania. Leitura dos céus e ação política na guerra da Restauração portuguesa (1640-1668)”. Dissertaçãao de mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010 

Machado, Diogo Barbosa. “Antonio Pimenta.” In Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e Cronologica…, tomo 1, 353-353. Lisboa: Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1741.

Machado, Diogo Barbosa., “Manoel Gomes Galhano de Lourosa.” In Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e Cronologica…, tomo 3, 278 Lisboa: Officina de Ignacio Rodrigues, 1752.

Melo, D. Francisco Manuel de. “Centuria Quarta: Carta I. Ao Doutor Manuel Temudo da Fonseca Vigairo Geral do Arcebispado de Lisboa. Acha-se impressa em a terceira parte das suas Decisões Eclesiasticas. Estampadas em Lixboa ano de 1650.” In Primeira Parte das Cartas Familiares de D. Francisco Manuel escritas a varias pessoas sobre assuntos diversos…, ed. António Luís de Azevedo, 492. Roma: fficina de Filipe Maria Mancini, 1664. 

Silva, Inocêncio Francisco da. “Manuel Gomes Galhano Lourosa.” In Diccionario Bibliographico Portuguez, tomo 5, 444. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860.

Carolino, Luís Miguel Carolino. A Escrita Celeste. Almanaques astrológicos em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Access, 2002. 

Carolino, Luís Miguel Carolino. Ciência, astrologia e sociedade. A teoria da influência celeste em Portugal (1593-1755). Porto: Imprensa Portuguesa, 2003.

Carolino, Luís Miguel. “Tokens of the future: comets, astrology and politics in early modern Portugal.” Cronos 9 (2006): 33-58. 

“Manuel Gomes Galhano de Lourosa (16–).” In Obras de Luiz de Camões Precedidas de um Ensaio Biographico no qual se relatam alguns factos não conhecidos da sua vida Augmentadas com algumas composições ineditas do poeta pelo Visconde de Juromenha, vol. 1, 347. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860. 

Santucci, Bernardo

Cortona, Grão-ducado da Toscana, ca. 1701 — 1764

Palavras-chave: anatomia, medicina, Hospital Real de Todos os Santos, médico, anatomista.

DOI: https://doi.org/10.58277/EQSZ4658

Bernardo Santucci notabilizou-se pela sua atividade de médico e anatomista em Itália e em Portugal no reinado de D. João V. Foi também o autor da obra A anatomia do corpo humano (1739) dedicada aos cirurgiões aprendizes que frequentavam o Hospital Real de Todos os Santos.

Embora sejam relativamente escassas as informações biográficas sobre Bernardo Santucci, sabe-se que os seus pais foram Carlos Santucci e Maria Galeazze, tendo nascido por volta de 1701 em Cortona, no grão-ducado da Toscana. Obteve o título de doutor em Medicina na Universidade de Bolonha, indo depois para Florença onde cultivou o estudo da anatomia no Hospital de Santa Maria Nuova. O seu desempenho como médico e anatomista motivou a sua nomeação como médico da princesa Violante Beatriz da Baviera. Munido de cartas de recomendação da princesa, veio para Lisboa em 1730. Neste mesmo ano o rei D. João V nomeou-o seu anatómico e dois anos mais tarde lente de anatomia no Hospital Real de Todos os Santos. Concomitantemente decretou a aposentação de Monravá e Roca, seu antecessor no cargo desde 1721. O estudo e a prática regular da anatomia passou a ser obrigatória na formação dos cirurgiões.

A permanência de Bernardo Santucci em Portugal não foi destituída de controvérsia. A sua obra A anatomia do corpo humano dada a lume em 1739 foi prontamente atacada por Monravá e Roca no manuscrito Desterro crítico das falsas anatomias que hum anatómico novo deu à luz em Lisboa, neste presente anno de 1739. Neste mesmo ano o exercício de dissecação de cadáveres humanos no Hospital Real de Todos os Santos viria a ser suspenso por decreto real. Desconhecem-se as razões precisas que motivaram esta alteração, tendo sido apontada a influência  junto ao trono das críticas de Monravá e Roca a Santucci e o apoio com que contou por parte de um grande número de médicos cirurgiões que desconheciam os fundamentos e a utilidade da anatomia e que persuadiram o rei de que as dissecações anatómicas determinavam a morte daqueles que a ela se entregavam. Foi também conjecturada a influência dos jesuítas no processo. Apesar do desagrado causado pela proibição das dissecações anatómicas, Santucci continuou a reger Anatomia durante uns sete ou oito anos, voltando a Itália só em 1747. Regressaria a Portugal em 1751, altura em que D. José o contemplou com uma tensa de 30$000 reis anuais e com o grau de cavaleiro da Ordem de São Tiago. Pouco tempo depois, retorna definitivamente a Itália onde irá falecer no ano de 1764. 

A anatomia do corpo humano de Santucci constitui uma obra ímpar na história editorial portuguesa já que, até finais do século XVIII, foi o único compêndio de anatomia publicado com estampas ilustrativas. No entanto, um estudo de Hermano Neves revelaria que as gravuras anatómicas executadas pelo artista francês Michel le Bouteaux eram na sua maioria cópias adaptadas da obra Corporis humani anatomia (1707) do autor flamengo Philip Verheyen. Identificou ainda algumas cópias de outras obras anatómicas. Deve, no entanto, salientar-se que o processo de apropriação de imagens era uma prática comum ainda no século XVIII. A mesma permitia reduzir os custos associados à produção de obras com imagens e colmatar as lacunas de dissecações necessárias à visualização das várias formas e órgãos do corpo humano. Embora no Hospital de Todos os Santos se procedesse a dissecações até à publicação da obra de Santucci, estas seriam muito provavelmente executadas num número limitado de cadáveres. No entanto, é no texto da obra de Santucci que se encontra a sua maior debilidade uma vez ser muito próximo, para não dizermos no seguimento da análise de Hermano Neves, praticamente uma cópia não reconhecida da Anatomia corporis humani de Verheyen. Contudo, este aspecto não diminui o valor pedagógico da obra de Santucci no Portugal de setecentos. É ainda de assinalar que entre os alunos de Santucci contam-se dois que foram lentes de anatomia na Universidade de Coimbra, Caetano Alberto e Santos Gato e outros dois alunos que foram professores de cirurgia no Hospital Real de Todos os Santos, António Gomes Lourenço e Pedro de Arvellos Espinola.

Palmira Fontes da Costa

Obras

Bernardo Santucci. Anatomia do Corpo Humano. Lisboa: Oficina de António Pedroso Galran, 1739.

Bibliografia sobre o biografado

Lemos, Maximiano. História da Medicina em Portugal. Doutrinas e Instituições, vol. II: 68–72. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1991 [1889].

Neves, Hermano. “O livro de Bernardo Santucci e a ‘Anatomia Corporis Humani’ de Verheyen. Contribuição para o estudo da obra do anatómico cortonense.” Arquivo de anatomia e antropologia 10 (1926): 315–346.

Serrano. Tratado de osteologia humana, Tomo II: vii–lxxxix. Lisboa: Typografia da Academia Real das Sciencias, 1897.

Santos, Sebastião Costa. A escola de cirurgia do Hospital Real de Todos os Santos, 93–143. Lisboa: Faculdade de Medicina de Lisboa, 1925.

Sanches, António Nunes Ribeiro

Penamacor, 7 março 1699 — Paris, 14 outubro 1784

Palavras-chave: Iluminismo, República das Letras, medicina, pedagogia.

DOI: https://doi.org/10.58277/MHXG2355

António Nunes Ribeiro Sanches foi uma das figuras portuguesas que maior projeção adquiriu na cultura da Europa ilustrada. Os seus pais, Simão Nunes e Ana Nunes Ribeiro, eram cristãos-novos. Teve sete irmãos, Maria, Isabel, Guiomar, Diogo, Manuel, José e Theodosia. 

Com treze anos, após ter frequentado a escola latina, Sanches foi enviado pelo pai para a casa de uns familiares na Guarda. Aqui aprende a tocar cítara e convive com o erudito Martinho de Mendonça de Pina e Proença. Em 1716, matriculou-se no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Frequenta depois o curso de Direito Civil. Contudo, em 1720, acabou por abandonar esta instituição, devido à sua insatisfação com o ensino aí ministrado e o ambiente estudantil tumultuoso. Decidiu então cursar Medicina na Universidade de Salamanca onde, a 5 Abril de 1724, obteve o título de licenciado.

Regressou a Portugal e passou a exercer medicina em Benavente. Em 1726, o seu primo Manuel Nunes Sanches denunciou-o à Inquisição por práticas judaicas. O seu grande receio de ser alvo de perseguições religiosas, à semelhança do que já tinha acontecido com muitos dos seus familiares, levou-o a abandonar prontamente a pátria.

Dados os seus contactos familiares em Londres e a tolerância religiosa aí vivida, Sanches decidiu estabelecer-se nesta cidade. Foi acolhido pelo seu tio Diogo Nunes Ribeiro, médico e membro da comunidade sefardita de Bevis Marks. No âmbito deste círculo social e religioso, abraçou o culto do judaísmo e submeteu-se à circuncisão. Conheceu também o naturalista Emanuel Mendes da Costa (1717–1791) e o médico Jacob de Castro Sarmento (1691–1762), ambos membros da Royal Society of London. Nos dois anos que permaneceu na capital inglesa, alargou os seus horizontes intelectuais e aprofundou a sua formação médica e científica. Frequentou com entusiasmo as aulas do médico James Douglas (1675–1742) e do matemático Jacob Stirling (1688–1766). Visitou hospitais, a coleção de história natural de Hans Sloane (1660–1753) e tomou contacto com a literatura médica então publicada em Inglaterra que, mais tarde, referenciará em algumas das suas obras. 

Em 1728, Sanches regressou ao continente europeu. Nesta sua nova etapa, começou por visitar a Universidade de Montpellier, passando por Paris e Marselha onde conheceu o médico João Baptista Bertrand (1670—1752), que o aconselhou a frequentar as lições de Herman  Boerhaave (1668—1738) na Universidade de Leiden. Seguidamente, o médico português partiu para Pisa, onde, por um breve período, frequentou a universidade. No Inverno de 1729, encontra-se em Bordeaux. Foi aqui que uma família judia o convidou para acompanhar e orientar os estudos médicos  do seu filho em Leiden, oferta que aceitou sem qualquer hesitação. Chegou a esta cidade no início de 1730 e, a 12 de abril, matriculou-se, também ele, na Faculdade de Medicina da Universidade. A sua passagem por este afamado centro universitário, onde permaneceu durante quase dois anos, e a possibilidade que teve de ser discípulo de Boerhaave marcaram de forma indelével a sua formação e o seu futuro profissional. Foi o eminente médico que recomendou o nome de Sanches à imperatriz Ana Ivanova (1693–1740) para médico ao serviço da Corte Russa.

O período em Leiden foi também determinante para o desenvolvimento da rede de contactos que Sanches tinha iniciado em Inglaterra. Ao longo da sua vida, o médico português manteria correspondência com Hieronym David Gaubius (1705–1780), Gerard Van Swieten (1700–1772) e Albrecht von Haller (1708–1777), também eles discípulos de Boerhaave. Já na Rússia, e depois em França, estabeleceu trocas epistolares com Herman Kauu e Abraham Kauu, sobrinhos e testamentários do seu mestre, o que lhe permitiu ter acesso a alguns dos seus manuscritos.

Sanches chegou à Rússia em Outubro de 1731, sendo nomeado médico do Senado e da Cidade de Moscovo. Passados dois anos, foi chamado para exercer medicina junto da Corte Russa em São Petersburgo. Passados quatro anos, foi nomeado Primeiro Médico da Armada Imperial, lugar que lhe permitiu estudar doenças que eram comuns nos campos militares e conduzir observações em hospitais de campanha. Após as expedições militares, regressou à capital russa e foi nomeado médico do Corpo Imperial de Cadetes, instituição dedicada à educação de membros da alta aristocracia russa. Em 1740, passou a ocupar o lugar de médico da Corte e a assistir de perto vários membros da família imperial, tendo desempenhado um papel crucial na cura da princesa Sophia Augusta e da futura imperatriz Catarina II (1729–1796), na altura com 15 anos. Esta aludiria ao facto com gratidão nas suas Memórias. Os sucessos do médico português na Corte Russa motivaram a sua designação como Conselheiro de Estado em 1744. Contudo, devido a intrigas políticas e a alegações de judaísmo, Sanches foi forçado a deixar a Rússia em 1747. Antes de partir, a Imperatriz Isabel Petrovna (1709–1762) honrou-o com um certificado de bons serviços e a Academia Imperial das Ciências nomeou-o membro estrangeiro, atribuindo-lhe uma tença anual de 200 rublos. Sanches decidiu estabelecer-se em Paris, cidade onde permanecerá até ao final dos seus dias. No seu trajeto, passou por Berlim e foi recebido por Frederico II da Prússia. Na capital francesa, tomou conhecimento de que foi excluído como membro da Academia russa após uma denuncia à Imperatriz, a qual era anti-semita militante, de que Sanches era judeu de nascimento e praticante. Após a  ubida ao trono de Catarina II em 1762, foi-lhe estabelecida uma pensão anual e vitalícia de mil rublos. Contudo, não lhe foi restituído o título de membro da Academia.

Os cerca de dezasseis anos passados na Rússia desempenharam um papel crucial na vida e na obra de António Nunes Ribeiro Sanches. Aqui enriqueceu a sua experiência médica e esboçou algumas das obras que, mais tarde, viria a publicar. Este período foi ainda determinante na extensão da sua rede de contactos e correspondentes, para a qual a frequência da Academia Imperial das Ciências em São Petersburgo desempenhou um papel central. Foi através desta instituição que conhece o matemático Leohnard Euler (1707–1783), o naturalista Johann Georg Gmelin (1709–1755), o estudioso de música e Director da Academia Jacob von Stahlin (1709–1785) e o matemático e Secretário da Academia Christian Goldbach (1690–1764). Tem também a oportunidade de conviver com o estudioso de línguas e história oriental Gottlieb Siegfried Bayer (1694–1738) e o astrónomo Nicholas Delisle (1688–1768), através dos quais iniciou correspondência com jesuítas portugueses a residir na cidade de Pequim, que lhe enviavam notícias sobre plantas do oriente e sobre práticas médicas chinesas. Por sua vez, o médico português enviava-lhes várias obras e instrumentos científicos, tendo, provavelmente, recorrido a Jacob de Castro Sarmento. Em várias ocasiões, Sanches atuaria como intermediário entre várias instituições, com vista ao envio de informações, bibliografia e objetos científicos. Ainda na Rússia, manteve com este propósito contactos com Academia Real da História Portuguesa. 

Em Paris, Sanches consolidou e ampliou a sua rede de amigos e correspondentes. Passou a conviver de perto com Charles Andry (1741–1829) e Félix Vicq d´Azir (1748–1794), ambos professores da Faculdade de Medicina da Universidade  de Paris e membros fundadores da Société Royale de Médecine, à qual irá pertencer. Estabeleceu também contacto com os astrónomos Jean Jacques Mairan (1678–1791) e Charles Messier (1730–1817), o Conde de Buffon (1707–1788) e o seu colaborador Louis D´Aubenton (1716–1800). Foi para o célebre naturalista que, ainda na Rússia, compilou observações sobre história natural que mais tarde figurariam no terceiro volume da História Natural (1769) deste autor. O médico português travou ainda conhecimento com o matemático e co-editor da Encyclopédie Jean le Rond D´Alembert (1717–1783) e o filósofo e co-editor da Encyclopédie Denis Diderot (1713–1784). 

Foi na capital francesa que Sanches redigiu a maioria das suas obras e manuscritos, tendo sido os estudos sobre a sífilis os que mais marcaram a sua contribuição para a medicina da época e a obra Dissertation sur l’origine de la maladie vénérienne a que alcançou mais sucesso editoral. Foi publicada pela primeira vez em Paris em 1750, vindo a ter duas re-edições (1756, 1765) e traduções em inglês (1751), alemão (1775) e holandês (1792). Mais tarde, veio a lume o Examen historique sur l’apparition de la maladie vénérienne en Europe, supostamente editado em Lisboa em 1774. Estas duas obras foram depois reunidas num só volume, preparado e dado à estampa por Hieronym David Gaubius, em Leyden, em 1778. Ainda em vida, redigiu, a convite de Diderot, uma pequena síntese sobre o diagnóstico e tratamento da doença venérea crónica, destinada à segunda edição da Encyclopédie num volume publicado em 1771. Postumamente virão a lume, com a chancela da Sociedade Real de Medicina de Paris, as Observations sur les maladies vénériennes (1785), uma edição organizada e revista por Charles Andry.

O médico português iniciou o seu interesse pelas doenças venéreas quando ainda se encontrava na Rússia. Aqui, conduziu estudos sobre as virtudes terapêuticas  os banhos de vapor preparados neste país e assinalou os seus efeitos benéficos no tratamento de várias doenças e, em particular, da sífilis. Registou também a manifestação clínica da doença e indicou métodos para o seu tratamento. A sua preferência recaiu sobre a administração oral de um preparado de bicloreto de mercúrio, também conhecido por sublimato corrosivo. O autor demonstrou ainda, em oposição ao que no seu tempo se admitia, que a sífilis já era conhecida na Europa alguns anos antes do regresso de Colombo da sua segunda viagem.

Sanches nunca regressou ao seu país natal mas, durante toda a sua vida, manteve um interesse vivo por aquilo que estava a acontecer em Portugal. Evidenciam-no a sua correspondência e algumas das obras que escreveu especificamente destinadas a uma audiência portuguesa. O seu objetivo era o de contribuir para a circulação de novas ideias e para alterações sobre os modos de pensar, particularmente no domínio da educação. O seu pensamento pedagógico esteve em inteira consonância com o papel primordial que era atribuído à instrução no século XVIII. O ideal de progresso da Europa ilustrada encontrava-se intimamente ligado a um sistema eficiente de ensino e destacava o papel fulcral da circulação de conhecimento entre os vários países e centros de aprendizagem. 

Em Paris, Sanches manteve contacto com diplomatas, sábios, médicos e estudantes portugueses a viver nesta cidade, alguns deles no exílio. Entre eles, encontrava-se José Joaquim Soares de Barros (1721–1792) que, depois de cursar matemática em Inglaterra e na Holanda, foi aluno de Alexis Clairaut (1713–1765) e Joseph Nicholas Delisle (1688–1768). Entre 1767 e 1787, conviveu com o padre oratoriano Teodoro de Almeida (1722–1804) exilado em Paris. Foi também nesta cidade que conheceu João Jacinto de Magalhães (172–1790) residente em Londres, mas que, devido à sua actividade de intermediário na troca e venda de obras e instrumentos científicos, se deslocava com frequência ao continente. Um dos seus correspondentes, a partir de Roma, foi Luís António Verney (1713–1792) com quem partilhou ideais e princípios pedagógicos.

Das obras que Sanches destinou a um público português, o Tratado sobre a Conservação da Saúde dos Povos (1756), publicado um ano após o Terramoto de 1755, foi a que alcançou maior reconhecimento ao longo da história. Tendo como audiência privilegiada os encarregados dos povos, o volume versa uma espécie de “medicina política” cuja finalidade é a de transformar a própria medicina num dos alicerces da racionalização da vida política e social. Tornava-se assim necessária a implementação de leis e de regulamentos que promovessem a conservação da saúde dos povos, sendo imprescindível que o médico, como legislador do corpo humano, indicasse os meios mais eficazes para estabelecer a saúde do corpo coletivo, quer em tempo de paz ou em tempo de guerra. É com base em noções da medicina hipocrática e nas novas descobertas da química pneumática, que o autor preconiza uma conceção higienista baseada na qualidade do ar dos espaços públicos incluindo as igrejas, os hospitais civis e militares, as prisões, os conventos e, igualmente, os navios. Sanches reclama a responsabilidade do Estado e dos seus dirigentes na higiene do corpo coletivo, defende que a prevenção deve ser considerada como o primeiro degrau da terapêutica e que o Estado deve ter um papel central na profilaxia, nomeadamente no que respeita à prevenção de doenças contagiosas. A principal estratégia de conservação da saúde pública é efetivada através da implementação de procedimentos elementares na purificação do ambiente e, em especial, dos espaços públicos e promíscuos. O Tratado revela o conhecimento do autor em relação às mais recentes autoridades na matéria. Contudo, não obstante os conhecimentos teóricos e práticos que demonstra, bem como a antecipação nas medidas preventivas que preconiza, o Tratado da Conservação da Saúde dos Povos não parece ter tido uma repercussão significativa na medicina e sociedade portuguesa da época. Na verdade, o Marquês de Pombal (1699–1782), Primeiro Ministro de D. José I (1714–1777), ignorou em grande parte a moderna e pioneira topografia sanitária contida na proposta higiénico-urbanística de Ribeiro Sanches. A obra foi, no entanto, objeto de uma edição revista em 1757. Viria ainda a ser traduzida em castelhano em 1781 e a secção sobre terramotos apresentada no seu final traduzida em italiano em 1783.

Após a expulsão dos jesuítas em 1759, tornava-se urgente uma reforma do sistema educacional português, tendo Sanches sido convidado a contribuir para a reestruturação dos estudos médicos da universidade de Coimbra. O seu interesse por questões pedagógicas já vinha de longa data. Em 1731 tinha delineado um plano sobre esta matéria quando residia em Leiden e, mais tarde, foi consultado pela Universidade de Estrasburgo em relação a um projecto sobre o ensino da cirurgia. Para além disso, as suas Cartas sobre a educação da mocidade vieram a lume em 1760. Nas mesmas, apresentava uma história do ensino e da pedagogia na Europa e uma defesa da laicização da educação e da sociedade em geral. Os princípios pedagógico protagonizados na obra influenciaram os moldes em que viria a funcionar o Real Colégio dos Nobres fundado em 1761.

Por volta de 1760, Sanches debatia os seus planos para a reorganização da educação médica em Portugal com o seu amigo Soares de Barros e o médico Joaquim Pedro de Abreu. Numa carta enviada para o Marquês de Pombal em 1763, anunciava que o Método para aprender e estudar a Medicina estava impresso e tinha sido enviado para Lisboa. Nesta obra, o médico e pedagogo defende a secularização da educação e a sua estruturação tendo como principal objetivo a utilidade pública. Realça a importância cimeira da observação e da experiência no novo sistema educacional médico e que da Faculdade de Medicina passem a fazer parte integrante um hospital, um teatro anatómico, um jardim botânico e um laboratório químico e farmacêutico. Atribui também relevância à inclusão da História da Medicina no curriculum já que a considera fundamental ao desenvolvimento do conhecimento científico e humanitário, ambos necessários à formação dos futuros médicos. Encoraja ainda o estágio dos estudantes portugueses em centros de excelência no estrangeiro, assim como a troca de experiências entre estudiosos de diferentes países europeus. No entanto, o projeto de Sanches foi apenas parcialmente adotado pela Comissão responsável pelos novos estatutos da Universidade de Coimbra e, em todo o caso, não lhe foi atribuído qualquer reconhecimento.

Os interesses de António Nunes Ribeiro Sanches não se restringiram à medicina e à pedagogia, tendo também abrangido a religião, a economia e a política e até as obra de Luís de Camões para as quais redigiu um ensaio introdutório em 1760. A grande riqueza do seu percurso vivencial e profissional contribuiu decisivamente para o ecletismo dos seus estudos e a repercussão que alcançaram na Europa Ilustrada e, embora em menor grau, em Portugal. Esta riqueza contribuiu ainda para que estabelecesse uma vasta rede de contactos com médicos, estudiosos de várias áreas, diplomatas e altas figuras de vários países e instituições. Foi essencialmente no âmbito de trocas de conhecimento e de influências, nomeadamente por via epistolar, que Sanches conseguiu conquistar para si um lugar de destaque na República das Letras do seu tempo.

Palmira Fontes da Costa

Obras

Sanches, António Ribeiro. “Affections de l’ame.” In Encyclopedie methodique — médecinepar une société de médecins, vol. I A-ALI: 247–277. Paris: Panckoucke, 1787. 

Sanches, António Ribeiro. Observations sur les maladies vénériennes, ed. Charles Andry. Paris: Théophile Barrois le Jeune, 1785.

Sanches, António Ribeiro. “Mémoire sur les bains de vapeur de Russie, consideres pour la conservation de la santé et pour la guérison de plusieurs maladies.” Histoire de la Société Royale de Médecine (1779): 223–280. Paris: Théophile Barrois le Jeune, 1782. 

Sanches, António Ribeiro. Dissertation sur l’origine de la maladie vénérienne, pour prouver que le mal n’est pas venu d’Ameriquem mais qu’il a commencé en Europe, par une epidemie: suive de l’examen historique sur l’apparition de la maladie véneérienne en Europe et la nature de cette epidémieNouvelle edition revue et corrigée. Leiden: Henri Hoogenstraaten, 1778).

Sanches, António Ribeiro. Examen historique sur l’apparition de la maladie vénérienne en Europe, et sur la nature de cette épidémie. Lisbonne, 1774).

Sanches, António Ribeiro. “Maladie vénérienne chronique.” In Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, ed. Diderot e D’Alembert, vol. XVI: 83–84. Neuchatêl: Samuel Faulche, 1771. 

Sanches, António Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina, illustrado com apontamentos para estabelecerse huma Universidade Real na qual deviam aprender-se as Sciencias humanas de que necessita o Estado Civil e Politico. Paris, 1763.

Sanches, António Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Colónia, 1760. 

Sanches, António Ribeiro. “Ao leitor sobre esta edição.” Obras de Luis de Camões. Paris: Pedro Gendron, 1759).

Sanches, António Ribeiro. Tratado da Conservação da Saúde dos Povos: Obra útil e, igualmente, necessária aos Magistrados, Capitães Generais, Capitães de Mar e Guerra, Prelados, Abadessas, Médicos e Pais de Famílias: Com um Apêndice: Considerações sobre os Terramotos, com a notícia dos mais consideráveis, de que faz menção a História, e dos últimos que se sentiram na Europa desde o I de Novembro 1755. Paris, 1756.

Sanches, António Ribeiro. Dissertation sur l’origine de la maladie vénérienne, dans laquelle on prouve qu’elle n’a point été apportée de l’Amérique, et qu’elle a commencé en Europe, par une épidémie. Paris: Durand et Pinot, 1750.

Bibliografi  sobre o biografado 

Costa, Palmira Fontes da e António Jesus. “António Ribeiro Sanches and the circulation of medical knowledge in eighteenth-century Europe.” Archives Internationales d’Histoire des Sciences 56 (2006): 185–197.

Dulac, Georges. “Science et Politique: les réseaux du Dr António Ribeiro Sanches (1699-1783).” Cahiers du Monde Russe 43 (2002): 251–274.

Lemos, Maximiano. Ribeiro Sanches, a sua vida e a sua obra. Porto: Eduardo Tavares Martins, 1911.

Machado, Fernando Augusto. Educação e Cidadania na Ilustração Portuguesa: Ribeiro Sanches. Porto: Campo de Letras, 2001.

WillenseDavid. António Nunes Ribeiro Sanches, élève de Boerhaave et son importance pour la Russie. Leiden: E. J. Brill, 1966.

Azeredo, José Pinto de

Rio de Janeiro, 5 maio 1764 – Lisboa, 15 abril 1810

Palavras-chave: medicina, Geração de 90, Ordem de Cristo, Hospital Real Militar de Lisboa.

DOI: https://doi.org/10.58277/GTWS1803

José Pinto de Azeredo nasceu na freguesia da Candelária no centro da cidade do Rio de Janeiro, então sede da colónia portuguesa do Brasil. Foi filho de Francisco Ferreira de Sousa e de Ângela Maria de Morais. O pai foi cirurgião do Primeiro Regimento Militar do Rio de Janeiro, com Carta de Cirurgião passada em Lisboa a 7 de dezembro de 1754 e fora sócio da Academia Fluviense Médica, Cirúrgica, Botânica, Farmacêutica, também designada Sociedade de História Natural do Rio de Janeiro ou Academia Científica do Rio, inspirada por José Henriques de Paiva e erigida pelo marquês do Lavradio em 1772.

No Rio de Janeiro, José Pinto de Azeredo estudou, depois de 1782, Latim, Filosofia Racional e Moral e Retórica com Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749–1814).Aos 22 anos (1786) partiu, com o irmão Francisco Joaquim de Azeredo (nascido em 1768), para Edimburgo com o propósito de frequentar o curso de Medicina. Aí teve por mestres, por dois anos académicos completos (outubro de 1786–maio de 1787 e outubro de 1787–maio 1788), Alexander Monro II na chair de Anatomy and Surgery, Joseph Black na de Chemistry, William Cullen na de Practice of MedicineJames Gregory nas de Institutes of Medicine (Theoretical Medicine) e de Clinical MedicineDaniel Rutherford na de Botany e, porventura, Francis Home, na de Materia Medica. Em Londres, de passagem, assistiu a algumas lições de John Hunter (em 1787 ou já em 1788). 

Foi membro da Royal Medical Society e, a 12 de abril de 1788, recebeu o prémio anual da Harveian Society relativo a 1787 pelo ensaio subordinado ao tema “An experimental enquiry concerning the chemical and medical properties of those substances called Lithontriptics, and particularly their effects on the human calculus”, do qual apenas se conhece um elogioso e extenso resumo de Andrew Duncan (1744–1828) nos Medical Commentaries publicados em 1789.

Depois de Londres, José Pinto de Azeredo e seu irmão Francisco dirigiram-se a Leiden, em cuja Universidade prestaram provas e obtiveram o desejado diploma (a 12 e 11 de junho de 1788, respetivamente), tendo regressado a Portugal pelo final daquele ano ou no início de 1789. Por decreto de 26 de fevereiro deste ano (1789), José Pinto de Azeredo foi nomeado físico-mor de Angola (com carta patente passada a 24 de abril). Aí exerceu aquele cargo e lecionou Medicina, entre 1791 e 1797. Gravemente doente, regressou a Portugal (depois de passar no Rio de Janeiro para convalescença junto dos seus) e, por meados de 1799, submeteu à Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros o único livro que publicou em vida: os Ensaios sobre Algumas Enfermidades de Angola.

José Pinto de Azeredo pertenceu à chamada Geração de 90 (com, entre muitos outros, Baltasar e José da Silva Lisboa, Bernardino António Gomes, Francisco de Melo Franco, João da Silva Feijó, Joaquim José da Silva, José Bonifácio Andrade e Silva, José de Rezende Costa, José Elói Ottoni, Manuel Ferreira da Câmara, Vicente Coelho Seabra, etc.), que soube perscrutar, entre os diferentes espasmos da estenia finissecular de setecentos, a direção dos ventos da História, os das revoluções americana e francesa, das independências, dos novíssimos Impérios e também das revoluções química, anátomo-patológica e terapêutica. 

O pensamento médico de José Pinto de Azeredo acha-se claramente expresso nos Ensaios sobre Algumas Enfermidades de Angola, mais tarde desenvolvido em dois escritos que não chegou a dar ao prelo: a Isagoge pathologica do corpo humano (1803) e a Collecção de observaçoens clinicas (c. 1804). Dois outros textos anteriores permitem augurar o melhor da literatura médico-científica luso-brasileira de então: o Exame Quimico da Atmosphera do Rio de Janeiro (1790, o ano seguinte à publicação do Traité élémentaire de chimie de Lavoisier), um estudo pioneiro de análise ambiental, como hoje se diria, realizado na América austral; e o Tratado Anatómico dos Ossos, Vasos Linfáticos, e Glândulas (datado dos primeiros anos da estadia de Azeredo em Angola, 1791–1793), o qual foi antecedido por Oração de Sapiência feita e recitada no dia 11 de Setembro de 1791, decerto o primeiro manual de ensino médico expressamente dirigido aos “Estudantes de medicina do Reino de Angola” para acompanhamento das aulas teórica e práticas ministradas no Hospital da Misericórdia de São Paulo da Assunção de Luanda e singular exemplo de literatura médica didática. 

Fiel aos ensinamentos da ilustração médica escocesa, em particular de William Cullen, Joseph Black, James Gregory e Erasmo Darwin, sem esquecer a “devoção experimental” dos irmãos Hunter, de William Hewson, de William Cruikshank, de Thomas Beddoes ou de Bichat e Pinel, na medicina, e de Black, Priestley, Laplace e Lavoisier na química, José Pinto de Azeredo adotou um modelo solidista do corpo (o dos “sólidos simples e vitais” de Cullen), ilustrado pela anatomia animada do tempo (de Haller e sequazes) e ancorado na suposta sede “nervosa” das enfermidades (dos “espasmos” de Cullen, na esteira de Hoffmann, com passagem pela “incitabilidade de Brown” e o “poder sensorial” de Darwin). Defendeu com convicção e desvelo o primado da observação clínica e da moderação terapêutica, com deflação dos regimes antiflogísticos, e a prática pioneira em terras lusas do uso interno do fósforo e do tratamento clínico com ares artificiais.

José Pinto de Azeredo foi agraciado com o hábito da Ordem de Cristo em 1799, exerceu no Hospital Real Militar de Lisboa (Xabregas) entre 1801 e 1810 e foi médico da Real Câmara depois de 1806. Faleceu a 15 de abril de 1810, com apenas 46 anos, em sua casa, na rua Larga de São Roque ao Bairro Alto em Lisboa. Instituiu o irmão Francisco seu herdeiro universal, incluindo na herança a sua preciosa biblioteca e os escritos inéditos que só recentemente foi possível trazer a lume.

António Brás de Oliveira

Arquivos

Lisboa, Arquivo Histórico Militar, Consulta da Real Junta da Fazenda dos Arsenaes do Exercito… (e outros documentos), PT/AHM/134/16/1/2/83

Lisboa, Arquivo Histórico Militar, Processo individual de José Pinto de Azeredo, caixa 389. 

Lisboa, Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Angola, caixa 74, documento 9; caixa 75, documento 56; caixa 79, documento 19; caixa 86, documento 30

Lisboa, Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Rio de Janeiro, caixa 223,documento 71.

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério do Reino, livro 356, f. 3, Aprovação do curso pela Junta do Protomedicato).

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Maria I, livro 32, f. 323 e 323v, Carta de Médico.

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Feitos Findos, Inventário post mortem, Letra I, J, maço 194, n.º 7, Testamento e inventário de bens).

Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, Azeredo, José Pinto de. 1791. Oração de Sapiência feita e recitada no dia 11 de Setembro de 1791. [Ms.]. BNP: COD. 8486//1, f. 1-7v.

Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, Azeredo, José Pinto de. 1802. Isagoge pathologica do corpo humano dedicada a Sua Alteza Real o Principe Regente Nosso Senhor [Ms.], 1802. BNP: COD. 8482.

Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, Azeredo, José Pinto de. 1804. Collecção de observaçoens clinicas [Ms], s.d. [c.1804]. BNP: COD. 8483.Edimburgo, University of Edinburgh, Historical Alumni Collection, Students of Medicine, 1762-1826,collections.ed.ac.uk/alumni/record/84661?highlight=*:*, Individual record.

Porto, Biblioteca Pública Municipal do Porto, Azeredo, José Pinto de. post. 1791. Tratado Anatómico Dos Ossos, Vasos Linfáticos, e Glândulas, [Ms], s.d [post.1791], COD. 1126.

Obras

Azeredo, José Pinto de. Dissertatio medica inauguralis de Podagra…, Progradu Doctoratus… Ad Diem XI. Junii MDCCLXXXVIII. H. L. Q. S. Leiden: Fratres Murray. 1788

Azeredo, José Pinto de. “Exame Quimico da Atmosphera do Rio de Janeiro.” Jornal Encyclopédico dedicado á Rainha N. Senhora… março (1790);, 259–288.

Azeredo, José Pinto de. Ensaios sobre Algumas Enfermidades de Angola. Lisboa: Regia Officina Typografica. 1799.

Azeredo, José Pinto de. reimp. Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola. Lisboa: Edições Colibri, reimp. 2013

Azeredo, José Pinto de. Tratado Anatómico dos Ossos, Vasos linfáticos e Glândulas. Lisboa: Edições Colibri, reimp., 2014

Azeredo, José Pinto de. Isagoge Patológica do Corpo Humano. Lisboa: Edições Colibri, reimp. 2014

Bibliografia sobre o biografado

Maia, Emílio Joaquim da Silva. Elogio Histórico do Dr. José Pinto de Azeredo.” Revista trimestral de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 2 (1858): 615–621.

Marques, Manuel Silvério. “Malhas que o corpo tece: excurso da medicina de José Pinto de Azeredo.” In Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola, ed. José Pinto de Azeredo, 213-261. Lisboa: Edições Colibri, 2013.

Marques, Manuel Silvério e António Braz Oliveira. “José Pinto de Azeredo: a cosmopolitan physician from Rio. Revisiting his Ensaios Sobre Algumas Enfermidades de Angola.” In Percursos da História do Livro (1450-1800), ed. Palmira Fontes da Costa e Adelino Cardoso, 231-254. Lisboa: Colibri, 2011..

 Marques, Manuel Silvério e António Braz Oliveira. “Shadows in the Enlightenment of Imperial Tropics: José Pinto de Azeredo’s Enfermidades de Angola, Part I and II.” In Essays on Some Maladies of Angola (1799), ed.  Timothy D. Walker, 31-59. Dartmouth, MA: Tagus Press, Center for Portuguese Studies and Culture e University of Massachusetts Dartmouth, 2016..

Oliveira, António Braz de. “Do Rio a Lisboa, passando a Luanda: achegas para uma biografia de José Pinto de Azeredo.” In Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola, ed. José Pinto de Azeredo, 135-187. Lisboa: Edições Colibri, 2013..

Pinto, Manuel Serrano, Marco Antonio G. Cecchini, Isabel Maria Malaquias, Lycia Maria Moreira-Nordemann e João Rui Pitta. 2005. “O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?–1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro.” História, Ciências, Saúde – Manguinhos 12(3) (2005): 617–73.

Samuda, Isaac de Sequeira

Lisboa, c. 1681 — Londres, 20 novembro 1729

Palavras-chave: The Royal Society, Astronomia, Medicina, Londres.

DOI: https://doi.org/10.58277/QFTS3320

Médico, poeta e homem de ciência com um variado conjunto de interesses, Isaac de Sequeira Samuda foi o primeiro judeu eleito sócio da Royal Society (RS) e um importante agente na circulação de ciência e tecnologia entre Londres e Lisboa durante a década de 1720s.

Filho de Rodrigo de Sequeira, mercador de panos, foi batizado na Igreja de São Julião, em Lisboa, com o mesmo nome do avô materno, Simão Lopes Samuda. Pouco se sabe sobre a sua infância e juventude, nascido e criado no seio de uma família cristã-nova originária do Alentejo constantemente alvo da perseguição inquisitorial.

Após completar o curso de Artes com a apresentação da tese Coronam physicam novem gemmis splendide imbutam…, Samuda matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra a 1 de outubro de 1696. Obtido o grau a 21 de maio de 1702, regressou a Lisboa, onde se estabeleceu numa casa no Beco das Comédias. Denunciado pelo parente António de Mesquita e Sá, foi preso pela Inquisição de Lisboa a 23 de agosto de 1703, mas nunca chegou a corroborar nenhuma das acusações que o haviam conduzido à prisão. Saiu no auto da fé celebrado a 21 de outubro de 1704, sentenciado a cárcere ao arbítrio dos inquisidores. Nestes primeiros anos de setecentos, a família de Samuda foi profundamente atingida por uma vaga de prisões inquisitoriais que atingiu algumas das principais famílias cristãs-novas de Lisboa.

Cumprida a pena, Samuda abandonou Portugal. A data de partida é incerta, mas situar-se-ia entre 1706 e 1709. Em outubro deste último ano, o médico português aparecia nos registos da sinagoga Bevis Marks de Londres. De facto, ao chegar à cidade britânica, Samuda abraçou publicamente a religião judaica e adotou o nome próprio Isaac e o apelido paterno Sequeira. Em Londres, encontrou vários parentes e conhecidos que, ao longo dos anos anteriores e muito devido ao recrudescer da perseguição inquisitorial, também haviam rumado a Inglaterra. Era o caso do meio-irmão Gaspar de Almeida, mercador que, ainda antes de fixar a residência em Londres, já operava em negócios entre a capital inglesa e Lisboa, ou da tia Grácia Caetana, esposa do médico Diogo Nunes Ribeiro (Samuel Nunes Ribeiro). Possivelmente devido a este consolidado círculo de relações, a sua integração no seio da comunidade judaica de Londres foi rápida e bem sucedida. Uma prova inequívoca é o facto de Samuda aparecer ao lado de alguns dos mais proeminentes judeus sefarditas da cidade como autor de dois poemas laudatórios na dedicatória a obra de Daniel Israel Lopez Laguna, Espejo fiel de vidas, uma paráfrase do Livro dos Salmos editada em 1720. Samuda pertencia então ao círculo de homens de letras e ciência que rodeavam David Nieto, rabi da sinagoga Bevis Marks. Essa proximidade encontra-se espelhada no sermão que pronunciou, oito anos mais tarde, por ocasião das exéquias dos 30 dias da morte do rabi, bem como no epitáfio que compôs para o seu túmulo.

A 19 de Março de 1721, Samuda ingressou no Royal College of Physicians. Pouco mais de dois anos depois, a 27 de junho de 1723, era eleito Fellow of the Royal Society, tornando-se, assim, no primeiro judeu a ingressar na instituição. Nos arquivos da RS, encontram-se alguns manuscritos de apresentações feitas por Samuda, sendo que apenas dois tratam de matérias médicas: um registo de observações anatómicas feitas pelo médico António Monrava e o estudo de uma febre que atingira Lisboa no verão de 1723. Fora estes dois exemplos, as apresentações de Samuda perante a RS versavam um espectro variado de temas, indo da meteorologia à história natural. Mas a área mais corrente — e aquela que teria despertado um maior interesse junto dos outros membros, justificando a publicação de vários artigos nas Philosophical Transactions of the Royal Society of London —era a astronomia. Tal encontra-se diretamente relacionado com a sua proximidade à representação diplomática portuguesa em Londres.

Em 1724, Samuda tornou-se no médico de António Galvão de Castelo-Branco, enviado extraordinário na cidade. Tinha sido o seu antecessor, o Dr. Fernando Mendes, quem o recomendara como pessoa de confiança para o exercício de tal cargo. Mas esta colaboração, que duraria até à morte de Samuda, havia começado ainda antes, com o desempenho de funções consultivas em matérias científicas. 

Samuda tornou-se então no porta-voz na RS da ciência desenvolvida por Portugal em 1720s. Por seu intermédio, chegaram até às páginas das Philosophical Transactions of the Royal Society of London, as observações astronómicas realizadas pelo jesuíta napolitano João Baptista Carbone nos observatórios mandados construir por D. João V em Lisboa. Através da correspondência trocada com Carbone (quer diretamente, quer por via de António Galvão), Samuda também se revelou numa peça fundamental no fomento do diálogo científico entre a RS e a Companhia de Jesus.

Mas a sua colaboração com a diplomacia portuguesa não se resumia ao vínculo com a RS. Num momento em que era necessário equipar os novos observatórios do Terreiro do Paço e do Colégio de Santo Antão, o conhecimento técnico e os contactos do médico português em Londres foram essenciais para responder às constantes encomendas de Lisboa – relógios, telescópios, barómetros e, sobretudo, livros e textos científicos, alguns dos quais traduzidos pelos próprio Samuda. Por seu intermédio, chegaram a Portugal as obras e ideias de John Kepler, John Flamsteed, James Bradley ou Francis Hauksbee.

Vítima de uma doença repentina, Samuda faleceu em novembro de 1729. Por terminar, deixou um longo poema épico, as Viríadas, finalizado pelo seu colega e parente Jacob de Castro Sarmento. Esta obra junto com o soneto e as oitavas que integram a obra de Lopez Laguna não são os únicos testemunhos da atividade poética de Samuda: ainda em Portugal e sob o nome de Simão Lopes Samuda, escrevera um poema de inspiração greco-latina, “Fábula de Píramo e Tisbe” (in Poesias diversas feitas por diversos autores e escritas por Rodrigo da Veiga, 1713, manuscrito conservado na Biblioteca Angelica di Roma). Das Viríadas apenas são conhecidos dois manuscritos (conservados nos acervos do Jewish Theological Seminar of New York e do The Thomas Fisher Rare Book Library at the University of Toronto) e só muito recentemente foi alvo de edição.

Além das Viríadas, Sarmento também prosseguiu com o trabalho deixado em aberto pela morte de Samuda enquanto médico e conselheiro científico da representação diplomática portuguesa em Londres, além de intermediário entre a RS e a comunidade científica portuguesa.

Carla Vieira
CHAM, Universidade NOVA de Lisboa, Universidade dos Açores
Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Arquivos

Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, Série Azul, Códices 600 a 603.

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo n.º 7178.

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cartório dos Jesuítas, maço 78, docs. 52, 55-56, 72-75.

Londres, Royal Society Archives, Classified Papers, vol. 5, doc. 34; vol. 12, doc. 4; vol. 12ii, doc. 19; vol. 14ii, doc. 18; vol. 15i, doc. 73.

Londres, Royal Society Archives, Register Book Original, vol. 12, doc. 23; vol. 11, doc. 75; vol. 13, docs. 35 e 41; vol. 14, doc. 118.

Londres, Royal Society Archives, Early Letters C2, docs. 61, 62, 83 e 84.

Toronto, The Thomas Fisher Rare Book Library at the University of Toronto, Ms. MSS 05074.

Obras

Samuda, Simão Lopes [Isaac Sequeira]. Coronam physicam novem gemmis splendide imbutam, praeside R. P. ac S.M. Iosepho de Almeyda Societatis Iesu, propugnabit Simon Lopes Samuda In Aula Regali Artium Collegij Conimbricensis. Integra die 1 Martij Qvaestio Problematica…. Coimbra: Impresso por João Antunes, 1697.

Samuda, Isaac Sequeira. “Observatio ejusdem Cometæ ab Illustrissimo Domino Francisco Bianchini habita Albani Mense Octobri, 1723. & ab eodem Ulysipponem missa P. Joanni Baptistæ Carbone Soc Jesu. Commuuicavit Isaacus Samuda, M.D. Col. Med. Lond, L. S.R.S.”. Philosophical Transactions of the Royal Society 33, n.º 382 (Março-Abril 1724): 51-53.

Samuda, Isaac Sequeira. “Meridianorum Ulyssiponensis, Parisiensis & Londinensis differentia, ex literis Clarissimi Doctrissimique Viri, Reverend. Patr. Johannis Baptistæ Carbone Soc. Jes. ad Isaacum Sequeyra Samuda M.D. Coll. Med. Lond. Lic. S.R.S.”. Philosophical Transactions of the Royal Society 33, n.º 385 (Outubro-Dezembro 1724): 186-189.

Samuda, Isaac Sequeira. “Observationes Astromicæ habitæ Ulyssipone, Anno 1725, & sub init. 1726, à Rev. P. Johanne Baptista Carbone, Soc. Jes. Communicante Isaaco Sequeyra Samuda, M.D. R.S.S. Coll. Med. Lond. Lic.”. Philosophical Transactions of the Royal Society 34, n.º 394 (Maio-Julho 1726): 90-101.

Samuda, Isaac Sequeira. “Eclipsis Lunæ observata Romæ, ad radices Collis Quirinalis, nocte sequente diem 31. Octobris, 1724. per clarissimum Virum Franciscum Blanchinum. Ex Epistola Rev. & Cl. Viri, Johannis Baptistæ Carbone, S. Jes. ad Isaacum Sequeyra Samuda, M.D. R.S.S. Coll. Med. Lond. Lic.”. Philosophical Transactions of the Royal Society 34, n.º 396 (Novembro-Dezembro 1726): 174-176.

Samuda, Isaac Sequeira. “Observationes Astromicæ habitæ Ulyssipone, Anno 1726. à Rev. P. Joh. Baptista Carbone, Soc. Jes. Communicante Isaaco Sequeyra Samuda, M.D. R.S.S. & Coll. Med. Lond. Lic.”. Philosophical Transactions of the Royal Society 35, n.º 401 (Janeiro-Fevereiro 1727): 408-413.

Samuda, Isaac Sequeira. “Observationes Astromicæ à R. P. Joh. Baptista Carbone transamissæ, communicante Is. de Seguera Samuda, M.D. R.S.S. & Coll. Med. Lond. Lic.”. Philosophical Transactions of the Royal Society 35, n.º 403 (Julho-Setembro 1727): 471-479.

Samuda, Isaac Sequeira? “Observationes Astromicæ habitæ in Observatorio Bononiensi Anno 1727, a Cl. Eustachio Manfredi, R.S.S. Ex Epistola J. Baptistæ Carbone ad Isaacum de Sequeyra Samuda M.D. Coll. Med. Lic. & R.S.S.”. Philosophical Transactions of the Royal Society 35, n.º 404 (Outubro 1728): 534-535.

Samuda, Isaac Sequeira. “Observationes Astromicæ Pekini habitæ a R.P. Ignatio Kogler Soc. Jesu Tribun, Math. in Sinis Præside. Ex Epistolà R. P. Joh Bapt. Carbone ad Isaacum de Sequeyra Samuda, R.S.S. &c.”. Philosophical Transactions of the Royal Society 35, n.º 405 (Novembro 1728): 553-556.

Samuda, Isaac Sequeira. Sermam funebre pera as exequias dos trinta Dias do insigne, eminente e pio Haham e Doutor R. David Netto. Londres: [s.n.], 1728.

Samuda, Isaac Sequeira, e Sarmento, Jacob de Castro. As Viríadas do Doutor Samuda. Edição crítica de Manuel Curado. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2014.

Bibliografia sobre o biografado

Barnett, Richard. “Dr. Jacob de Castro Sarmento and Sephardim in medical practice in 18th century London”. In Transactions of the Jewish Historical Society of England 28 (1982): 84-114.

Esaguy, Augusto d’. “Breve notícia sôbre o médico português Isaac de Sequeira Samuda”. O Instituto 87 (1934): 262-269.

Samuel, Edgar. “Samuda, Isaac de Sequeira (bap. 1681, d. 1729)”. In Oxford Dictionary of National Biography. Oxford: Oxford University Press, 2014, acedido 23 Maio 2016,  http://www.oxforddnb.com/index/71/101071570/.

Vieira, Carla. “Observing the Skies of Lisbon. Isaac de Sequeira Samuda, an Estrangeirado in the Royal Society”. Notes & Records. The Royal Society Journal of the History of Science 68 (2004): 135-149.  

Vieira, Carla. Nação entre Impérios: Judeus Portugueses e a Aliança Luso-Britânica. Famalicão: Húmus, 2022.

Montalto, Filipe Rodrigues (Philippi Montalto, Elianu Montalto, Philotei Eliani Montalto Lusitani)

Castelo Branco, 6 outubro 1567 — Tours, 19 fevereiro 1616

Palavras-chave: medicina, neuropsiquiatria, psicologia, melancolia.

DOI: https://doi.org/10.58277/BGUD7546

Filipe Rodrigues de Luna Montalto, filho de António Aires, boticário, e de Catarina Aires e neto materno de Filipe Rodrigues e Brízida Gomes, nasceu no seio de uma família cristã-nova conhecida por Luna Montalto na freguesia de Santa Maria. Estudou Medicina na reputada Universidade de Salamanca e dedicou-se à sua prática em Portugal no Adro de Santa Justa em Lisboa, onde era conhecido por Dr. Montalto ou Dr. Filipe Montalto.

Casou com Jerónima da Fonseca, filha de Lopo da Fonseca, médico da rainha D. Catarina, e neta de um “batizado em pé” (obrigado ao batismo, após o decreto de expulsão dos judeus de 1496). Grande parte das famílias de Montalto e sua esposa, incluindo irmãos, cunhados e sobrinhos, foi presa e desapossada pela Inquisição. Outra parte procurou refúgio em França, Amesterdão ou Hamburgo, nomeadamente os sobrinhos por afinidade de Montalto, conhecidos pelo apelido Curiel. Duarte Nunes da Costa ou Jacob Curiel foi financiador da companhia holandesa West Indische Compagnie, representante da Coroa Portuguesa em Hamburgo, sendo agraciado pelo rei que o nomeou Cavaleiro da Casa Real. Os seus feitos enquanto membro da Nação Portuguesa de Hamburgo de proteção a D. Duarte de Bragança foram honrados pelo poeta Levi de Barrios em Coro de las Musas. Por outro lado, Jerónimo Nunes da Costa ou Moisés Curiel representou a Companhia do Brasil em Amesterdão, sucedendo-lhe os seus descendentes até meados do século XVIII. A família Curiel foi um dos pilares de suporte da Restauração e da Dinastia de Bragança.

Montalto exilou-se inicialmente em Livorno, mas estabeleceu-se em Florença por volta de 1606, quando publicou a sua obra médica Optica, sobre doenças dos olhos, dedicada a Cosme de Médicis, onde, no prefácio, corroborou ter sido convidado para ensinar na Universidade de Pisa pelo duque da Toscânia, pai de Maria de Médicis. Em 1609, ainda se encontrava em Florença, pois foi daí que enviou uma carta a Tomás da Fonseca, seu cunhado, que, entretanto, fora preso pela Inquisição de Lisboa e que constituiu prova contra o réu. Em 1611–1612, já se encontrava em Veneza, enviando várias cartas a outro seu cunhado, Pêro Rodrigues, exilado em Saint Jean de Luz. Foi em Veneza que, sob a égide do rabino Leon de Modena (1571–1648), se converteu ao judaísmo e provavelmente escreveu o Tratado sobre Isaías 53, uma obra de polémica religiosa. 

Mais tarde, desempenhou as funções de médico pessoal dos monarcas franceses, Henrique IV e Maria de Médicis, assim como da ama favorita da rainha, Leonora Galigai. Foi o único judeu de sua casa a receber autorização para residir na corte francesa, a qual incluiu também o seu secretário Saul Levi Mortera (c. 1596–1660), futuro rabino de Amesterdão. Em Paris, beneficiou de grande consideração, pois integrou o conselho de Luís XIII, embora um dos seus escritos seja uma defesa perante as autoridades rabínicas contra acusações de que não cumpria o Shabat, tratando os seus doentes nesse dia.

Foi durante a sua estadia em França que publicou Archipathologia, obra considerada pelos seus contemporâneos e por diversos historiadores como precursora na neuropsiquiatria e psicologia e onde, pela primeira vez, assumiu o nome Philothei Eliani Montalto Lusitani. 

Em Archipathologia, Montalto classificou exaustivamente várias doenças neuropsicológicas e propôs para cada afeção uma abordagem específica, numa atitude tipicamente moderna, como refere Adelino Cardoso. Tornou-se uma das obras pioneiras no que às desordens psíquicas diz respeito, embora já tivessem sido abordadas e classificadas por Felix Platter (1535–1614), deão da Faculdade de Medicina da Universidade de Basel em Praxis Medica e Observationes

Montalto era reconhecido pelos seus pares e fazia parte da República das Letras que incluiu, neste caso, os autores e obras de Medicina. Facilmente se comprova pelas citações das suas obras médicas, principalmente de Archipathologia, que a sua obra foi muito bem acolhida pelos mais proeminentes vultos do ensino e prática de medicina. Exemplo desse reconhecimento e da sua inovação com base na sua experiência é o Consilium, que Montalto incluiu como apêndice ao “Tratado IV”, sobre a melancolia, na qual analisou um caso de hipocondria. Na essência, um consilium é um parecer especializado de um médico respeitado pelos seus pares, em resposta a um caso difícil colocado por um médico menos experiente.

O professor de Oxford, Robert Burton (1577–1640), citou a obra de Montalto mais de oitenta vezes no seu trabalho Anathomy of Melancholy. Por outro lado, Bento de Castro (1597–1684) nutriu por Montalto uma profunda admiração patente em Flagellum Calumniatum. Montalto encontra-se entre os médicos listados por Johannes Antonides van der Linden (1609–1664) em De Scriptis Medicis, também conhecido por Lindenius Renovatus. Por seu turno, Manuel Álvares de Távora ou Abraham Zacuto Lusitano (1575–1642) referiu-se às obras de Montalto em De Medicorum Principium Historia e Praxis Historiarumi. Por fim, o professor da Universidade de Jena, Konrad Schneider (1614–1680) citou Montalto mais de trinta vezes na sua obra Liber de Morbis Capitis

A importância da obra de Montalto estendeu-se aos séculos seguintes, pois foi listada pelo professor da Universidade de Groningen, Georgius Mathiae, em Conspectus Historiae Medicorum Chronologicus e pelo familiar do Santo Ofício e médico, João Curvo Semedo (1635–1719), em Polyanthea Medicinal. Foi ainda citado pelo médico de D. João V e membro da Real Academia das Ciências de Lisboa, Francisco da Fonseca Henriques (1665–1731), em Medicina Lusitana. As obras Optica e Archipathologia faziam parte da biblioteca de Raphael Bluteau (1638–1734), que citou esta última em vários dos seus escritos, nomeadamente em Primicias EvangelicasSermoensSermoens Panegyricos e Vocabulário Português. Por seu lado, Harry Campbell (1867–1915), que estava ligado ao London Hospital e ao Royal College of Physicians, citou Archipathologia mais de uma dezena de vezes na sua obra Headache and Other Morbid Cephalic Sensations.

Também o seu filho, Moseh Montalto, Miguel de Luna ou Dr. Luna, contribuiu para prolongar a relevância dos trabalhos de Montalto. Luna seguiu as pisadas do pai e dedicou-se à Medicina em Lublin na Polónia, onde tratou o príncipe Estanislau. Foi também administrador da Companhia de Dotar Órfãs e Donzelas em Amesterdão (cujo objetivo era casar sefarditas órfãs e pobres). Simultaneamente, comerciou civetas africanas ou gatos almiscarados, animais produtores de almíscar, muito utilizados em perfumaria e na elaboração de medicamentos. Este negócio foi partilhado com o irmão Isaac Montalto ou Lopo de Luna Montalto que, por seu turno, foi rabino, tendo estado durante um certo período de tempo no Norte de África e em Hamburgo. Descendem de Rachel Montalto, casada com David Israel Meldola, os famosos rabinos sefarditas Meldola

Entre os discípulos de Montalto, ou pelo menos acompanhantes, conta-se Saul Levi Mortera, embora essa ligação pareça ser apenas na área religiosa, pois Mortera tornou-se num dos principais rabinos na Nação Portuguesa de Amesterdão, responsável pela aplicação do Herem a Bento Espinosa, em consequência das suas ideias consideradas heréticas pelo conselho dos parnassim. A sua rede de contactos incluiu ainda Leon de Modena, um dos mais proeminentes rabinos da sua altura, o que granjeou a Montalto a alcunha de Haham, sábio, pois com o dito rabino deve ter tido discussões teológicas que provavelmente se materializaram mais tarde na sua obra Tratado sobre Isaías 53.

Em suma, Montalto beneficiou de uma vasta rede de contactos que, para além das elites religiosas de diversas comunidades judaicas, incluiu ainda a aristocracia portuguesa, italiana e francesa, podendo-se considerar Montalto um judeu de corte e simultaneamente um sábio e um médico proeminente. 

O reconhecimento da sua importância pelos seus pares está patente numa vasta disseminação pela Europa e esta só foi possível, porque vários professores das principais universidades europeias tinham Montalto e as suas obras como referências a serem transmitidas aos seus alunos. Para além disso, não se pode descurar o papel das academias a que pertenceram muitos dos leitores das obras de Montalto, nomeadamente a Academia Real das Ciências, da qual foram membros Francisco da Fonseca Henriques e Bluteau, que integrou ainda a Academia dos Generosos e as reuniões informais na casa do conde da Ericeira. Para além disso, Harry Campbell era membro do Royal College of Physicians que teve um papel fundamental na classificação das doenças e na melhoria da prática da Medicina.

Montalto faleceu subitamente em Tours, quando acompanhava o cortejo de Isabelle de Bourbon. O seu corpo foi embalsamado por ordem da rainha-mãe de França e enviado para Ouderkerk, o cemitério judaico da Nação Portuguesa de Amesterdão. A sua pedra tumular perpetuou em língua portuguesa a sua importância como médico e como rab raby Eliau Montalto.

Florbela Veiga Frade
CHAM

Obras

Montalto, Eliah. Tratado Sobre o capitulo 53, de Isahias do sapientissimo e celebre varao o Doutor Eliau Montalto de gloriossa memoria conselheiro e Medico, del Rey e da Reina da Franca de Nauarra. Amsterdão: Isaac Navarro, 1652.

Montalto, Philippi. Optica Intra Philosophiae, & Medicinae aream. De visu, de visus organo, et obieto theoricamaccurate complectens. Florença, Cosmum Iuntam, 1606.

Montalto Lusitani, Philothei Eliani. Archipathologia in qua internarum capitis affectionum essentia, causae, signa, praesagia & curatio accuratissima indagine edisseruntur. Paris: F. Jacquin, 1614.

Montalto Lusitano, Philotheo Eliano. Tractatus Accuratissimus de Morbis Capitis. Saint Gervais: Iac de la Pierre, 1628.

Philo-Veritas [Montalto]. A Jewish tract, on the fifty-third chapter of Isaiah written by Dr. Montalto, in Portuguese and translated from his manuscript, by Philo-Veritas. Londres: s. n., 1790.

Bibliografia sobre o biografado

Cardoso, Adelino. “Aproximação à Archipathologia de Filipe Montalto.”  In Humanismo, Diáspora e Ciência. Séculos XVI e XVII, ed. António e Júlio Costa Andrade, 41–50. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto, 2013.

Dias, José Lopes. “Laços Familiares de Amato Lusitano e Filipe Montalto (novas investigações).” Imprensa Médica 25 (1-2) (1961): 22–36 e 53–69.

Rooden, Peter van. “A Dutch Adaptation of Elias Montalto’s Tractado Sobre o Principio do Capitulo 53 de Jesaias. Text, Introduction and Commentary.” Lias 16 (1989): 1–50.

Roth, Cecil. “Quatre Lettres d’Elie de Montalto.” Revue des Études Juives 87 (174) (1929): 139–165.

Salomon, Herman Prins. Lettre Inédite du Docteur Felipe Rodrigues Montalto. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

Correia, Fernando da Silva

Sabugal, 20 maio 1893 – Lisboa, 19 dezembro 1966

Palavras-chave: medicina, higienismo, ensino, termalismo.

DOI: https://doi.org/10.58277/LULJ1669

Fernando da Silva Correia foi filho de Joaquim Manuel Correia (1858–1945), advogado e autor das obras Memórias sobre o concelho do Sabugal: terras de Riba-Côa e Celestina: episódios da última guerrilha carlo-miguelista

Licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1917, tirou em Lisboa as especialidades de Medicina Sanitária em 1920 e de Hidrologia em 1921. O curso de Medicina Sanitária, ministrado no Instituto Central de Higiene, fornecia a habilitação necessária para o exercício do cargo de delegado de saúde, cujas funções, a nível distrital, incluíam a direção técnica dos serviços sanitários, o licenciamento dos estabelecimentos, a fiscalização da higiene industrial e do trabalho operário ou agrícola, a higiene infantil e as condições sanitárias da população em geral.

Fernando da Silva Correia estabeleceu prática clínica nas Caldas da Rainha em 1919 e em 1921 assumiu os cargos de médico municipal e delegado de saúde. Em 1934, foi nomeado inspetor da Terceira Área da Saúde Escolar para os distritos de Castelo Branco, Guarda, Setúbal, Portalegre, Évora, Beja e Faro e iniciou a sua carreira docente como professor de Administração Sanitária, Estatística Sanitária, Higiene Social e Assistência Social e Demográfica no Instituto Central de Higiene Dr. Ricardo Jorge (novo nome atribuido em 1929 em homenagem ao seu fundador), do qual foi diretor de 1946 a 1961. Entre 1935 e 1957 foi também docente no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, leccionando Profilaxia das Doenças Venéreas, Legislação Sanitária e História da Assistência. 

A sua vasta obra científica, com mais de uma centena de títulos de livros e artigos publicados em revistas como a Clínica, Higiene e Hidrologia (publicada entre 1935 e 1957, dirigida por Armando Narciso e especializada em higiene e termalismo), entre outras, incidiu sobre os temas da higiene e da saúde pública, abrangendo com especial preocupação as questões ligadas à infância, à higiene escolar e à necessidade da educação física e do desporto, ao mesmo tempo que denunciou os exageros dos desportos mais violentos. Os conceitos de medicina social, serviço social e assistência também foram amplamente debatidos na sua obra que teve uma clara intenção pedagógica. O seu trabalho mais significativo foi sem dúvida Portugal Sanitário, publicado em 1938, no qual colocou em evidência os “15 anos de experiências sanitárias e médico-sociais, acompanhadas do estudo do que se fazia no resto do País e no estrangeiro” e desenvolveu a história da higiene, da epidemiologia e da política sanitária em Portugal, salientando os seus aspetos mais importantes, como a endemiologia e a epidemiologia. Salientou ainda os principais procedimentos de profilaxia (imunização e salubridade); defendeu a frequência da praia como medicina preventiva, tratamento da tuberculose e robustecimento do organismo pela natação e remo; e apresentou a tuberculose, a sífilis e o alcoolismo como flagelos sociais, especialmente esta última, que descreveu como sendo uma patologia hereditária que constituia uma “arma de enfraquecimento da raça”, um discurso que se insere nas teorias eugenistas correntes na sua época. Concluiu com a descrição das principais necessidades país em termos de obras de saneamento e resolução de “erros sanitários”. 

Após uma incursão de juventude pelo teatro, com a públicação, nos seus tempos de estudante, da peça A Máscara, publicada em 1914, Silva Correia também se aventurou pela literatura, publicando em 1933 a obra Vida errada: o romance de Coimbra. No entanto, é na história e na biografia, especialmente nos temas ligados à saúde, que mais de metade dos seus títulos se insere. Desenvolveu repetidamente temas ligados à história do termalismo, à história da medicina, com especial interesse sobre a história clínica e o diagnóstico das causas de morte das personagens mais marcantes da família real desde a época medieval, as únicas a cujas fontes ele teria acesso. Também a história das misericórdias o ocupou bastante. Nas biografias o destaque foi para médicos e professores de medicina, apreciando especialmente Ricardo Jorge e Maximiano de Lemos.

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

Correia, Fernando da Silva. Profilaxia das febres tifoides e paratifoides A. e B. pela vacinação. Coimbra: Casa Tipográfica, 1919. 

Correia, Fernando da Silva. Guia prático das águas minero-medicinais portuguesas. Coimbra: Livr. Ed. Moura Marques & Filho, 1922. 

Correia, Fernando da Silva. Doenças sociais e higiene. Caldas da Rainha: Dispensário de Profilaxia Social, 1932. 

Correia, Fernando da Silva. A educação física e a medicina em Portugal. Lisboa: s. n., 1935. 

Correia, Fernando da Silva. Esbôço da história da higiene em Portugal. S. l.: s. n., 1937. 

Portugal Sanitário (Subsídios para o seu estudo). Lisboa: Ministério do Interior – Direção Geral de Saúde Pública, 1938.

Correia, Fernando da Silva. Alguns aspectos do problema do alcoolismo em Portugal. S. l.: s. n., 1938. 

Correia, Fernando da Silva. Higiene rural: cartas abertas a um jovem médico / Velho Galeno. Coimbra: Federação dos Grémios da Lavoura da Província da Beira Litoral, 1942.

Correia, Fernando da Silva. “Portugal, pioneiro da assistência termal.”  Clínica, Higiene e Hidrologia 23 (1957): xx-xx[1] . 

Correia, Fernando da Silva. O conceito de medicina social. Coimbra: s. n., 1958. 

Bibliografia sobre o biografado

“Fernando da Silva Correia”. In Infopédia. Online. Disponível em: www.infopedia.pt/$fernando-da-silva-correia. Consultado em 5 de julho de 2022.

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Graça, Luís. 2000. História da Saúde no Trabalho. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa.

Paiva, Manuel Joaquim Henriques de

Castelo Branco, 23 dezembro 1752 — Baía, ca. 1829

Palavras-chave: medicina, farmácia, Iluminismo, popularização.

DOI: https://doi.org/10.58277/QSHI2990

Manuel Joaquim Henriques de Paiva foi um boticário, bacharel em Filosofia e médico, que se notabilizou na clínica, na investigação, no ensino e na popularização das ideias médicas, tendo sido o mais prolífico escritor médico do Iluminismo português.

Descendeu de uma família de cristãos-novos com tradição no âmbito das artes da cura. O seu pai foi António Ribeiro de Paiva, boticário e cirurgião acreditado, assim como boticário parece ter sido o seu avô materno, João Henriques. Dos seus dez irmãos, talvez a influência mais decisiva no seu percurso profissional, académico e literário tenha sido exercida por José Henriques Ferreira, médico e comissário do físico-mor do Reino no Brasil. Henriques de Paiva      foi também, com muita probabilidade, familiar do médico e enciclopedista António Nunes Ribeiro Sanches, com quem      manteve frequente troca epistolar.     

Sob os auspícios do irmão José Henriques Ferreira, Henriques de Paiva partiu em 1769, juntamente com o pai, para o Rio de Janeiro, com o intuito de aprofundar os seus conhecimentos farmacêuticos e botânicos. Um ano após a sua chegada, obteve carta de aprovação para o ofício de boticário (16 de junho de 1770), perante um júri de que fazia parte o seu próprio irmão, porventura por imposição do cargo de comissário do físico-mor que exercia, juntamente com outros três boticários. Em conjunto com o irmão e o pai, Paiva envolveu-se na criação da Academia Fluviense Médica, Cirúrgica, Botânica e Farmacêutica (1772), tendo-se dedicado ao estudo da fauna brasiliensis enquanto se aperfeiçoava na botica da mesma academia.

Com o objetivo de obter a formatura em Medicina, regressou à metrópole provavelmente ainda em 1772, ingressando na Universidade de Coimbra, onde foi nomeado Demonstrador de Química e de História Natural na Faculdade de Filosofia, cargo que      exerceu, com bastante probabilidade, entre 1773 e 1777. Neste período, envolveu-se na criação e dinamização da Sociedade de Celas ou Sociedade dos Mancebos Patriotas, em Coimbra, uma ambicionada agremiação científica que visou promover o debate livre e a discussão em torno de diversas inovações teóricas e metodológicas no campo científico. 

Em 1781, formou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, sendo que há indícios claros de que exerceu prática clínica nas cidades de Coimbra e Lisboa e seus arredores (Caparica, Almada e Pragal) nos anos de 1777 e 1778, ainda antes da conclusão dos seus estudos médicos – uma realidade que, à época, estava longe de constituir uma exceção. Nas décadas seguintes, Henriques de Paiva      notabilizou-se não só no exercício da clínica privada em Lisboa (com consultório aberto na rua dos Sapateiros), mas também como figura de relevo no seio de algumas das instituições pedagógicas, científicas e políticas mais relevantes e dinâmicas do seu tempo. Com efeito, entre inícios da década de 1780 e c. 1807, foi nomeado para cargos diversos: académico correspondente da Academia Real das Ciências,      diretor do Laboratório Químico da Casa Pia, médico da Casa Real;      diretor do  Dispensatório Geral do Exército, deputado da Real Junta do Protomedicato e lente da cadeira de Farmácia, criada em Lisboa em 1801, em dependência da Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra, além de manter estreita colaboração com o Laboratório da Casa da Moeda.   

Espírito inquieto e polémico, incompatibilizou-se frequentemente quer com autores (a polémica com o boticário lisboeta Francisco Raimundo Xavier da Costa, autor de  Apologia Crítico-Química e Farmacêutica, é a que mais merece destaque) quer com diferentes instituições, da Real Academia das Ciências à Censura e seus acólitos. Foi também perseguido, a diferentes tempos, pela justiça secular e pela justiça inquisitorial. Na ação judicial que lhe foi movida pela Inquisição de Coimbra em 1779, celebrizada na historiografia como o processo dos presuntos, Henriques de Paiva foi acusado de condutas atentatórias da fé e da santa disciplina da Igreja católica – discorrer sobre os erros formais do dogma, comer carne durante o período da Quaresma, maldizer Portugal e a falta de liberdade que aí se vivia – mas acabaria por ver o seu processo arquivado, por razões que se desconhecem.

Desfecho diferente teve a ação judicial com que se viu confrontado em 1808, numa acusação com contornos de crime de lesa-majestade. No contexto das Invasões Francesas, foi acusado de ter opinado publicamente em favor da invencibilidade de Napoleão e do exército agressor, o que lhe valeu o encarceramento nas cadeias da Trafaria e Almada e a exoneração de todos os cargos públicos a que havia ascendido. Juízo condenatório proclamado pela Junta da Inconfidência conduziu-o a um exílio definitivo no Brasil, onde, em 1818, ainda pôde assistir à reposição de todos os seus anteriores cargos e distinções por Decreto Real de D. João VI. Não mais      regressou a Portugal, tendo-se dedicado ao ensino da matéria médica e da farmácia no Colégio Médico-Cirúrgico na cidade da Baía, em terras de Vera Cruz.   

Especial destaque merece a sua produção literária, muito vasta e multifacetada. Publicou como autor e tradutor e “ordenou, corrigiu, aditou ou fez imprimir” um conjunto muito significativo de obra de outros autores. Distribuídos por estas categorias, foram-lhe atribuídos mais de meia centena de títulos. Enquanto autor, e no âmbito da farmácia e da química, destacamos as obras Elementos de Química e Farmácia e Farmacopeia Lisbonense, ou Colecção dos Simplices, Preparações e Composições Mais Eficazes e de Maior Uso. No domínio da medicina, assinou diversos Avisos ao Povo redigidos de acordo com o espírito do Iluminismo – obras de popularização das ideias médicas – que se debruçaram sobre temas de saúde pública muito significativos à época (asfixia, morte aparente, envenenamento), sendo igualmente de destacar as suas diversas contribuições no Jornal Enciclopédico. Sobre a profilaxia da varíola, publicou Preservativo das Bexigas e dos Seus Terríveis Estragos, ou História da Origem, e Descobrimento da Vacina, dos Seus Efeitos e Sintomas, e do Método de fazer a Vacinação, obra que conheceu duas edições em 1801 e 1806.

Foi igualmente um tradutor prolífico, vertendo para a língua portuguesa obras de autores e áreas científicas diversos de que destacamos Buchan, Plenck e Tissot, em medicina, Lineu, Scopoli e Brisson, em história natural, ou Fourcroy, em química. Por último, das várias obras que “ordenou, corrigiu e fez editar” destaca-se o Discurso crítico em que se mostra o dano que tem feito aos doentes, e aos progressos da medicina, em todos os tempos, a introdução e uso de remédios de segredo e composições ocultas, da autoria do seu irmão José Henriques Ferreira, que constitui um documento essencial para a história da medicina portuguesa no período do Iluminismo. 

Bruno Barreiros
CHAM – Centro de Humanidades 
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa; Universidade dos Açores 

Obras

Paiva, Manuel Joaquim Henriques de. Directório para se Saber o Modo, e o Tempo de Administrar o Alcalino Volátil Fluído nas Asfixias, ou Mortes Aparentes, nos Afogados, nas Apoplexias, na Mordedura de Víbora, de Lacraus e Outros Insectos, nas Queimaduras, na Raiva, e Outras Muitas Enfermidades. Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, 1782. 

Paiva, Manuel Joaquim Henriques de. Elementos de Química e Farmácia. Lisboa: Impressão da Academia das Ciências, 1783. 

Paiva, Manuel Joaquim Henriques de. Farmacopeia Lisbonense, ou Colecção dos Simplices, Preparações e Composições Mais Eficazes e de Maior Uso. Lisboa: Oficina de Filipe da Silva e Azevedo, 1785. 

Paiva, Manuel Joaquim Henriques de. Preservativo das Bexigas e dos Seus Terríveis Estragos, ou História da Origem, e Descobrimento da Vacina, dos Seus Efeitos e Sintomas, e do Método de fazer a Vacinação. Lisboa: Oficina de João Rodrigues Neves, 1801. 

     Paiva, Manuel Joaquim Henriques de, trad. Aviso ao Povo Acerca da Sua Saúde, por Mr. Tissot, Traduzido do Francês Sobre a Última Edição de Paris. Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, 1777, 2 tomos. 

Paiva, Manuel Joaquim Henriques de, trad. Instituições de Cirurgia Teórica e Prática, que Compreendem a Fisiologia, e a Patologia Geral e Particular, Extraída do Compêndio das Instituições Cirúrgicas, dos Elementos de Cirurgia e de Outras Obras do dr. José Jacob Plenck, e Notavelmente Acrescentadas. Lisboa: Oficina de Filipe da Silva e Azevedo, 1786. 2 tomos.   

Paiva, Manuel Joaquim Henriques de, trad. Medicina Doméstica, ou Tratado de Prevenir e Curar as Enfermidades, com o Regimento e Medicamentos Simples: Escrito em Inglês pelo Dr. Guilherme Buchan, Traduzido para Português com Várias Notas e Observações Concernentes ao Clima de Portugal e do Brasil, com o Receituário Correspondente, e um Apêndice sobre os Hospitais Navais. Lisboa: Oficina Morazziana, 1788.      4 tomos.     

Bibliografia sobre o biografado

Dias, José Lopes. “Manuel Joaquim Henriques de Paiva. Médico e Polígrafo Luso-Brasileiro.” Imprensa Médica 18 (3) (1954): 145–     171.

Giffoni, Carneiro. Presença de Manoel Joaquim Henriques de Paiva na Literatura Luso-Brasileira do Século XVIII”. São Paulo: II Congresso Brasileiro de História da Medicina, 1954. 

Pita, João Rui. “Manuel Joaquim Henriques de Paiva: Um Luso-Brasileiro Divulgador de Ciência. O Caso Particular da Vacinação Contra a Varíola.” Mneme – Revista de Humanidades 10 (26) (2009): 91–102. 

Roque, Mário da Costa. “Manuel Joaquim Henriques de Paiva. Estudante Coimbrão.” Arquivo de Bibliografia Portuguesa 15 (59-60) (1969) .

Silva, Inocêncio Francisco da. Dicionário Bibliográfico Português.     Lisboa: Imprensa Nacional, 1862. 

Casmach, Francisco Guilherme (Kasmach, Casmak)

ca.1570 — ca.1650

Palavras-chaves: medicina, astrologia, Restauração, almanaques.

DOI: https://doi.org/10.58277/UPQL3741

Astrólogo, médico e cirurgião licenciado pela Universidade de Salamanca. Filho de Nicolao Guilherme e de Catherina Manrique Casmak. Trabalhou para a corte portuguesa durante os reinados de D. Filipe II (1598–1621), D. Filipe III (1621–1640) e D. João IV (1640–1656). Aplicou os seus conhecimentos astrológicos tanto na sua prática médica como na elaboração de almanaques, afirmando-se desta forma como homem de ciência, tanto na corte, como perante um público mais vasto.

A sua primeira obra conhecida é relatório um médico intitulado Relação chirurgica de hum caso grave, impresso em 1623. Casmach apresenta-se já como intitula Chyrurgião del Rey nosso Senhor, & do seu Hospital Real em que se cura a Infantaria Espanhola. A obra descreve um grave acidente e a respectiva cura: “Tristam da Cunha de Mello, & Ataide, fidalgo muy conhecido neste Reyno (pella ilustre ascendência de seus progenitores) sobindo em hua mula, Domingo as cinco horas da tarde a vinte hu de Iunho, no anno de 1620. se lhe impinou, & querendo elle saltar della, por se liurar do perigo em que se via, cahio em terra, leuando-se diante a mao esquerda, paraque sustentandose nella, liurasse a cabeça & corpo. E soccedeo por no braço tanta força, que deslocãdose o osso pelo sangradouro, sahio fora, fazendo hua ferida transversal pella parte de dentro, que rompeo, & dilacerou veas, artérias, neruos, músculos, tendães, & ligamentos.” Segue-se uma detalhada e cruenta narração dos tratamentos a que o paciente foi sujeito, até à cura, finalmente alcançada a 20 de novembro de 1620.

Da sua obra sobrevivem também dois almanaques: Almanach Prototypo e exemplar de pronosticos, com previsões para o ano de 1645, dedicado à rainha D. Leonor de Gusmão, e Brachyologia astrológica e apocatastasis, para o ano de 1646, dedicado à “muito insigne, antigua, & ilustre nobreza lusitana”. Uma leitura dos prefácios destas publicações sugere que Casmach teria escrito outras obras, entre elas um estudo da conjunção máxima de Júpiter e Saturno, oferecido a D. João IV.

Estes almanaques consistiam na previsão dos principais eventos de cada ano, sendo estes deduzidos a partir do horóscopo do ingresso do Sol em Carneiro (ingresso Venal), que ocorre em Março. Estas publicações, bastante elaboradas, integram referências de literatura grega, latina e portuguesa (incluindo Camões), citações bíblicas, alusões a astrólogos reconhecidos (Ptolomeu, Marcus Manilius, Alfarganus, Alcabitius, Ali ben Ragel, Luca Gaurico, Origanus, Gerolamo Cardano, Guido Bonatti, entre outros) e a diversos astrónomos. Incluem também o desenho do horóscopo do ingresso do Sol em Carneiro para o respectivo ano—uma característica única das publicações de Casmach, omitida nas de outros autores. A presença dos horóscopos exige um processo de impressão mais complexo (e portanto mais dispendioso), sugerindo que parte dos leitores estaria familiarizada com o simbolismo astrológico. Esta escolha editorial vem confirmar a ideia de que estas publicações se dirigiam a um público culto, ajudando a explicar a disparidade de preços entre estes almanaques (quarenta reais) e o custo médio de outras publicações astrológicas coevas (quatro reais).

Casmach teve participação activa na política pós-Restauração, tendo usado os seus almanaques como veículos de propaganda da nova dinastia. Assim, a par de conteúdos relativamente inócuos de astrometeorologia (que versavam sobre eventos naturais e suas consequências na agricultura e economia), surgem várias incursões no terreno arriscado da astrologia judiciária, designadamente previsões sobre a família real. Estas eram duplamente perigosas: por um lado, versavam a instável política da época pós-Restauração, por outro, arriscavam a condenação da Igreja, por interferência com o livre arbítrio. Estes riscos, contudo, parecem não demover Casmach; a sua proximidade ao rei, associada ao seu prestígio como homem de saber, ter-lhe-ão certamente conferido alguma impunidade nesta área.

No seu Almanach Prototypo, de 1645, Casmach combina as habituais considerações meteorológicas com diversos argumentos astrológicos e numerológicos, constituindo-se como discurso patriótico e legitimador da recém-formada dinastia de Bragança. Assim, aponta a Stella Nova (a supernova de 1604) como sinal inequívoco do destino redentor de D. João IV: “apareceo esta Estrella no anno de 1604 em que nasceo nosso Serenissimo Rey, & Senhor Dom Joam o IV no signo a que esta sogeito Portugal” e acrecenta que “Deos nos manifestou nesta estrela ser este Rei o prometido, cujo Reyno se trocara muy cedo em Imperio, & Suprema Monarchia, com felicidades nunca vistas, nem ouvidas”.

Para além de legitimar a monarquia portuguesa, o almanaque pretendia ainda corrigir erros de cálculo de outros autores, mostrando assim aos estrangeiros “que ainda há em Portugal quem cultive & exercite esta sciencia & que não faltam ainda os Pedros Nunes Portugueses que tanto no século passado venerarão & ainda hoje reconhecem por oráculos desta ciência”.

Casmach decidiu ir mais longe na sua Brachyologia Astrologica e Apocatastasis, de 1646, onde fez previsões directas sobre o irmão do rei, Dom Duarte de Bragança (1605–1649), que na altura se encontrava cativo em Passau. Dom Duarte saíra de Portugal em 1636 para participar na Guerra dos Trinta Anos, lutando ao lado do imperador Fernando III do Sacro Império Romano-Germânico. Contudo, o Imperador mandou prendê-lo a pedido dos espanhóis em janeiro de 1641, quando lhe chegaram notícias da Restauração. É a esta situação que se refere Casmach quando expressa a esperança “de se por em liberdade o nosso sereníssimo infante, & concluir as pazes universais”. Esta esperança foi contudo gorada: as negociações falharam, tendo Dom Duarte permanecido em cativeiro, passado por diversas prisões, até à sua morte, em 1649 em Milão.

A carreira astrológica de Guilherme Casmach foi marcada por um aceso confronto com um outro astrólogo, Manuel Gomes Galhano Lourosa, também ele autor de almanaques. A disputa centrou-se na autoria de um tratado anónimo sobre uma invasão de gafanhotos que ocorreu em Lisboa em 1639. A obra colheu aprovação geral, pelo que não faltaram interessados em apresentar-se como autores. Lourosa chamou a si a autoria, no seu almanaque de 1641. Três anos mais tarde, Casmach insinuou o mesmo, no prefácio do Almanach Prototypo, ao afirmar “dado que até agora não desse ao prelo semelhantes obras, não deixei de fazer alguns tratados tocantes a esta ciência de não menos estima, que de certeza como poderão bem testemunhar os que os leram, e por meus os reconhecem, apesar de quem tão falsamente o contradiz”. Afrontado, Lourosa refirmou-se como autor no seu almanaque para o mesmo ano, acrescentando, num ataque directo a Casmach, que “chega um destes, prenhe de presunção, a apregoar ao mundo que é seu certo tratado meu que de mão anda na mão dos curiosos”. A discussão agravou-se, passando rapidamente da questão da autoria para a da competência astrológica: surgiram acusações mútuas de enganos nos cálculos, de erros crassos na determinação da posição dos astros e de má interpretação das regras astrológicas para a escolha do regente do ano (o planeta que maior peso teria na determinação dos acontecimentos). A provocações sucederam-se até ao final da década, sem que nenhuma das partes capitulasse. Longe de diminuir a reputação dos intervenientes, esta disputa acabou por beneficiar a ambos, dando-lhes grande visibilidade e apresentando-os ao grande público como homens de saber e de erudição.

Helena Avelar de Carvalho
Revista por Luís Campos Ribeiro

Obras

Casmach, Francisco Guilherme. Relação chirurgica de hum caso grave em que succedeo mortificar-se hum braço, e cortar-se com bom sucesso. Lisboa: Gerardo da Vinha, 1623.

Casmach, Francisco Guilherme. Almanach Prototypo e exemplar de pronósticos. Com particulares Ephemerides das conjunções, & aspectos dos planetas, Eclypses do Sol, & da Lua, & pronosticação de seus efeitos pera o presente anno de 1645. Calculado pela nova, & genuína theorica do motu celeste, & tesouro das observaçoens astronómicas Lansbergienses, Argolicas, & de Origano ao Meridiano desta Cidade de Lisboa. Lisboa: por Paulo Craesbeek, 1644. http://purl.pt/14186/1/index.html#/5/html

Casmach, Francisco Guilherme. Brachyologia astrologica e apocatastasis Apographica do Sol, Lua, & mais planetas, com todos seus aspectos, Eclypses, & pronosticação de seus effeitos, pera o presente anno de 646: Calculado pella nova, e genuina theorica do motu celeste, & thesouro das obseruações Astronomicas Lansbergienses, & Argolicas, Parisienses, & de Orîgano, tychomicas, & proprias pera o Meridiano desta Cidade de Lisboa. Lisboa: por Paulo Craesbeek, 1646. http://purl.pt/13996/1/index.html#/3/html

Bibliografia sobre o bibliografado

Carolino, Luís Miguel. A escrita celeste. Almanaques astrológicos em Portugal nos séculos XVII & XVIII, 42–43, 52–61.Rio de Janeiro: Access, 2002.

Carolino, Luís Miguel. Ciência, Astrologia e Sociedade. A teoria da influência celeste em Portugal (1593-1755), 207–208, 223–224.  Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian-Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2003.

Camenietzki, Carlos Ziller, and Luís Miguel Carolino. “Astrologers at War: Manuel Galhano Lourosa and the Political Restoration of Portugal, 1640-1668.” Culture and Cosmos 13 (2009): 63–85.