Castro, Rodrigo de (Rodericus a Castro, David Nahamias ou Nehemias)

Lisboa, ca. 1546 — Hamburgo, ca. 1627/1629

Palavras-chave: medicina, ginecologia, ética médica.

DOI: https://doi.org/10.58277/AOLD7159

Rodrigo de Castro, que publicou as suas obras sob o nome latino de Rodericus a Castro Lusitanus, foi um nome importante da história da medicina portuguesa, tendo-se distinguido a nível europeu principalmente devido à publicação de duas das suas obras, uma sobre doenças das mulheres, que lhe granjeou o título de criador da ginecologia e da obstetrícia, e a outra sobre ética médica, que o distinguiu como um dos primeiros especialistas nesta área. 

Médico português de origem sefardita, terá nascido em Lisboa em meados do século XVI, provavelmente ca. 1546. Estudou na Universidade de Salamanca, como se pode depreender de algumas informações que transmite nas suas obras. Foi discípulo de Andrés Alcáçar (ou Valcácer), de Juan Bravo de Piedrahita e de Rodrigo de Sória. Herdeiro da tradição galénica, que era ensinada naquela universidade a par da medicina de Avicena, revela na sua obra grande respeito pelos ensinamentos da medicina árabe, que afirma ser injustamente desprezada pelos seus contemporâneos, mas principalmente pela medicina hipocrática, cujas fontes cita e comenta com pormenor.

Terá regressado a Lisboa, onde exerceu medicina durante alguns anos, até sair do país e se instalar em Hamburgo, na última década do século XVI. Nasceu numa família ligada à prática médica: eram médicos o pai, André Fernandes, e alguns tios maternos, nomeadamente o tio Manuel Vaz, que Rodrigo de Castro cita com frequência e com admiração nas suas obras e que terá sido médico, de acordo com Castro, de quatro reis de Portugal (D. João III, D. Sebastião, D. Henrique e D. Filipe). Outro dos seus tios foi enviado ao Norte de África por D. João III, para tratar o rei de Fez, mesmo estando em guerra com ele. Castro foi convidado por Filipe I a viajar para a Índia para estudar plantas medicinais e dar continuidade aos trabalhos de Garcia da Orta e de Cristóvão da Costa, mas declinou o convite real por causas justas, como ele próprio escreveu. Estava em Lisboa em 1588, data em que exerceu funções como médico dos soldados da Armada Invencível que simulavam doenças para não embarcarem.

Foi depois deste ano que saiu do país, talvez devido ao reforço das medidas contra as práticas judaicas. Parece certo que antes de se instalar em Hamburgo, terá vivido noutra ou noutras cidades europeias, talvez em Antuérpia, centro por onde muitos judeus portugueses terão passado antes de se instalarem em outros pontos da Europa. Aí ou já em Hamburgo casou com Catarina Rodrigues, também de ascendência sefardita. 

Em 1596, Castro publica em Hamburgo a sua primeira obra, um pequeno tratado médico acerca da peste que assolou a cidade. Trata-se de um texto escrito em língua latina, dedicado ao senado de Hamburgo, em que Castro faz oferta do conhecimento e da experiência relacionados com a peste que adquiriu em outras regiões, como afirma no prefácio. Em Hamburgo, parece ter conquistado fama e reconhecimento, já que da sua clientela terão feito parte o rei da Dinamarca, o arcebispo de Bremen, o governador de Flensburgo e o duque de Holstein, entre outros. Nos primeiros anos do século XVII, faleceu-lhe a esposa, no parto do seu terceiro filho, depois de já em Hamburgo terem nascido os filhos mais velhos, Bento e André, que haveriam de dedicar-se também à medicina. Apesar de nos primeiros anos em Hamburgo Rodrigo de Castro se ter mantido mais ou menos próximo, pelo menos em aparência, da fé católica—os seus filhos foram batizados e frequentaram escolas católicas, a esposa foi sepultada num cemitério católico—terá assumido publicamente a sua identidade judaica, adotando o nome de David Nahamias ou Nehemias. Parece ter-se envolvido em acesa polémica quando, falecido o irmão sem deixar descendência, quis exercer o direito de levirato, isto é, de casar com a cunhada, ainda que na altura estivesse casado em segundas núpcias. Foi impedido de o fazer pelos líderes da comunidade judaica de Hamburgo, que declararam herem, excomungando-o. Castro denunciou-os às autoridades da cidade. Atribui-se-lhe a autoria de um tratado acerca deste assunto, o Tratado de herem, escrito em português, mas perdido.

A data da sua morte é incerta. Foi sepultado no cemitério judaico de Altona e a data gravada na pedra tumular é 1627. Foi incluída, no entanto, nas edições de 1649 e 1657 dos Opera omnia de Zacuto Lusitano, antes do De medicorum principum historia, uma carta escrita por Rodrigo de Castro e que termina com a data de 16 de julho de 1629. Que a carta é da autoria de Rodrigo de Castro provam-no as referências às suas duas obras maiores. Menciona também na carta, além do encómio à obra de Zacuto, a debilidade causada pela idade avançada, pelos estudos ininterruptos e pelos extremos labores, debilidade que o impedia de retribuir aos amigos a cordialidade e os serviços devidos.

Em 1603, foi publicada, em Colónia e em Hamburgo, a obra de maior fôlego de Rodrigo de Castro, o De universa mulierum medicina, em dois volumes. O título completo da primeira edição era De universa mulierum medicina novo et antehac a nemine tentato ordine, opus absolutissimum et studiosis omnibus utile, medicis vero pernecessarium, isto é “Acerca da medicina completa das mulheres, com uma organização nova e até agora não realizada por ninguém, obra perfeita e útil para todos os estudiosos mas muito necessária para os médicos”. Teve várias reedições (Hamburgo 1617, 1628; Veneza 1644; Hamburgo 1662, Colónia 1689), o que prova o interesse que suscitou. O tratado divide-se em duas partes: uma teórica, com o subtítulo De natura mulierum (“Sobre a natureza das mulheres”), dividida em quatro livros (1. anatomia do útero e dos seios; 2. semente e menstruação; 3. coito, conceção e gravidez; 4. parto e amamentação), outra prática, intitulada De morbis mulierum (“Sobre as doenças das mulheres”), igualmente organizada em quatro livros (1. doenças comuns a todas as mulheres; 2. doenças específicas das viúvas e das virgens; 3. doenças relacionadas com a geração e com a gravidez; 4. doenças das puérperas e das amas-de-leite). A obra deve ser associada ao incremento, que se verificou entre meados do século XVI e início do XVII, da publicação de obras médicas dedicadas à condição feminina. Composto devido à necessidade que o autor identificou de uma obra escrita de forma clara e sucinta, e organizada de modo a permitir uma consulta fácil e rápida ao leitor, o tratado pretende ser uma resposta à coletânea de textos sobre ginecologia que, publicada pela primeira vez em Basileia em 1566 e reeditada até 1597, reunia materiais antigos e contemporâneos, numa amálgama confusa e de difícil manuseamento. Os dois volumes do De universa mulierum medicina apresentam estruturas e objetivos divergentes. Na primeira parte, o enquadramento é principalmente teórico, enquanto na segunda se procura uma abordagem mais prática e se apresentam as causas, os sintomas, o prognóstico e o tratamento das doenças das mulheres. Nesta segunda parte, por uma questão de clareza, incluíram-se, após muitos capítulos, apêndices (scholia) de forma a que assuntos de carácter mais teórico ou mais controverso fossem nestes explorados e não no corpo do texto. 

Em 1614, foi publicada a obra Medicus-Politicus sive de officiis medico-politicis tractatus, isto é Médico-político ou tratado sobre os deveres médico-políticos, reeditada em 1662. Trata-se de uma obra de ética médica, em que Castro propõe como definição de medicina “uma arte com razão e experiência com a finalidade de obter e manter a saúde”. Descreve também o que considera ser o melhor médico (“um homem bom, perito em medicina”) e denuncia as fraudes dos que considera maus profissionais, propondo um conjunto de normas a serem seguidas pelos médicos. A obra é composta por quatro livros de dimensões desiguais. A maioria dos cerca de setenta capítulos é encabeçada por uma questão relacionada com a prática médica que depois se discute com profundidade, primeiro apresentando opiniões várias sobre o assunto, depois argumentos a favor e contra cada uma das opiniões aduzidas, e, por fim, a opinião do autor. As citações e comentários de autores antigos e contemporâneos são muito frequentes, o que transforma a obra num testemunho da formação e da erudição de Castro. De realçar também a profusão de citações bíblicas. De grande interesse é a perspetiva de Castro sobre a dimensão social e comunitária da prática médica, sempre contextualizada na sua relação com o plano divino, que dela exige padrões morais de excelência. A relação médico-paciente deve ser também acautelada, mesmo em situações polémicas ou ambivalentes, como por exemplo, no caso de o paciente recusar tratamento, de ter uma relação demasiado próxima com o médico, de ter uma doença incurável ou de não estar em seu juízo perfeito. De acordo com alguns autores, o Medicus-Politicus é das obras de Castro aquela em que mais se assume a identidade judaica do autor, que parece ter-se esforçado por estabelecer para o médico ideal (virtuoso, prudente e erudito) um lugar na comunidade política, legitimando e enaltecendo assim o papel dos médicos judeus.

Nas suas obras, Castro estabelece um diálogo aceso e profícuo com a medicina do seu tempo, tanto nas suas tradicionais configurações clássicas e na sua matriz galénica, como nas novas abordagens que por então se difundiam pela Europa. Nelas é de assinalar a reflexão contínua que aí se faz sobre as ideias e polémicas mais importantes da tradição médica, fortemente influenciada pelos textos gregos e latinos que moldaram a medicina ocidental, mas também sobre os desenvolvimentos contemporâneos, uma vez que Castro descreve, analisa e avalia o trabalho de muitos autores, tanto antigos como autores do seu tempo, de nacionalidades diversas. Foi admirado pelos seus contemporâneos e adquiriu notoriedade em Hamburgo e em especial entre a comunidade de judeus portugueses que se estabeleceu no estrangeiro. Na sua obra, precursora da medicina forense, Paolo Zacchia recorre com frequência aos tratados de Castro para fundamentar os seus preceitos. Zacuto Lusitano atribuiu-lhe, entre outros, os títulos de scientissimus, elegantissimus, celeberrimus medicinae antistes, “mestre de medicina”, título normalmente atribuído a Hipócrates.

Cristina Santos Pinheiro
Universidade da Madeira
Centro de Estudos Clássicos/Universidade de Lisboa

Obras

Tractatus brevis de natura et causis pestis, quae hoc anno M. D. XCVI Hamburgensem civitatem affligit [Tratado breve acerca da natureza e das causas da peste que neste ano de 1596 assolou a cidade de Hamburgo]. Hamburgo: Jacobus Lucius Junior, 1596. Tradução portuguesa: Rodrigo de Castro: A Peste de Hamburgo (introdução, tradução e notas de Bernardo Mota, Cristina Santos Pinheiro e Gabriel A. F. Silva; prólogo de Jon Arrizabalaga). Porto: Afrontamento, 2021.

De universa mulierum medicina novo et antehac a nemine tentato ordine, opus absolutissimum et studiosis omnibus utile, medicis vero pernecessarium [Acerca da medicina geral das mulheres, com uma organização nova e até agora não realizada por ninguém, obra perfeita e útil para todos os estudiosos mas muito necessária para os médicos]. Hamburgo: Fröben, 1603. 

Medicus-Politicus sive de officiis medico-politicis tractatus [Médico-político ou tratado sobre os deveres médico-políticos]. Hamburgo: Fröben, 1614. Tradução portuguesa: Rodrigo de Castro. O Médico Político: ou tratado sobre os deveres médico-políticos (tradução de Domingos Lucas Dias, revisão científica de Adelino Cardoso, apresentação de Diego Gracia). Lisboa: Colibri, 2011.

Bibliografia sobre o biografado

Lemos, Maximiano. História da Medicina em Portugal: Doutrinas e Instituições. Lisboa: D. Quixote-Ordem dos Médicos, 1991 [1899].

Arrizabalaga, Jon. “Medical Ideals in the Sephardic Diaspora: Rodrigo’s de Castro’s Portrait of the Perfect Physician in Early Seventeenth-Century Hamburg.” Medical History Supp. (2009): 107–124.

Frade, Florbela V. e Sandra Neves Silva. “Medicina e Política em dois Físicos Judeus Portugueses de Hamburgo.” Sefarad71 (1) (2011): 51–94.

Cardoso, Adelino. “A Biblioteca Proposta por Rodrigo de Castro em O Médico Político.” Ágora 14 (1) (2011): 159–167.

Pinheiro, Cristina S. “The ancient medical texts in the chapters about infertility of Rodrigo de Castro’s De Vniuersa Mulierum Medicina.” In The Palgrave Handbook of Infertility in History: Approaches, Contexts and Perspectives, ed. Gayle Davis & Tracy Loughran, 291–310. Palgrave MacMillan, 2017.

Pinheiro, Cristina S. “From flesh to text: The chapters on the uterus and its parts in Rodrigo de Castro’s De uniuersa mulierum medicina”, Ágora: Estudos Clássicos em Debate 23 (1) (2021): 293-317.

Foscati, Alessandra, “From the Ancient Myth of the Caesars to the Medieval and Renaissance Tradition. The Practice of Caesarean Section in De Universa mulierum medicina by Rodrigo de Castro”, Journal of the History of Medicine and Allied Sciences 76 (1) (2020): 1-19.González Manjarrés, Miguel Ángel, “Quae in ipso coitu obseruanda. Técnica compositiva en un capítulo de la Uniuersa muliebrium morborum medicina de Rodrigo de Castro.” Ágora: Estudos Clássicos em Debate 23 (1) (2021): 343-371.

Gomes, Bernardino António

Lisboa, 22 setembro 1806 – Lisboa, 8 abril 1877

Palavras-chave: medicina, Conferência Sanitária Internacional, epidemias, autópsia do rei D. Pedro V.

DOI: https://doi.org/10.58277/VBNM4967

Bernardino António Gomes foi filho do médico com o mesmo nome (1768–1823) e de Leonor Violante Rosa Mourão (1775–1864). O seu pai foi descrito como um dos mais importantes cientistas mundiais, ao nível de Pasteur, Koch e Roux. Os seus trabalhos na área da botânica permitiram-lhe o isolamento da cinchonina, um antipirético, e a sua posterior cristalização. Foi também um promotor da vacinação anti-varíola em Portugal, ao fundar, juntamente com outros médicos, a Instituição Vacínica em 1812, da qual foi diretor.

Bernardino António Gomes (filho) estudou Medicina em Paris e Matemática em Coimbra. Foi lente de Medicina, de Matéria Médica e Farmácia. Foi o primeiro médico a utilizar o clorofórmio em Portugal e um aparelho de inalação de éter, como forma de anestesia. 

Casou com Maria Leocádia Fernandes Tavares de Barros (1819–1854). O casal teve dois filhos: Bernardino António Barros Gomes (1839–1910), engenheiro silvicultor, responsável por levantamentos cartográficos de várias áreas de Portugal, e Henrique de Barros Gomes (1843-1898), autor de obras sobre matemática, astronomia e geografia, deputado, ministro da Fazenda, dos Negócios Estrangeiros e da Marinha e Ultramar, Par do Reino e conselheiro de Estado.

Da uma vida dedicada à prática clínica, à docência e ao estudo das ciências médicas destaca-se a sua obra muito variada, com quase duas dezenas de títulos, abrangendo maioritariamente as especialidades da epidemiologia e medicina geral, mas incluindo também áreas como higiene, farmácia, patologia, psiquiatria, termalismo, vacinas e até as biografias do seu pai e do Padre João Loureiro e uma memória sobre fósseis vegetais do terreno carbonífero. 

Foi o fundador e colaborador da Gazeta Médica de Lisboa e do Jornal da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa. Participou, em 1876, na Farmacopeia Portuguesa. Realizou viagens de estudo ao estrangeiro, nas quais adquiriu conhecimentos e as mais recentes novidades em instrumentos e aparelhos cirúrgicos da sua época, que trouxe para Portugal, além de visitar as redações e estabelecer contactos com revistas médicas internacionais, onde divulgou as revistas médicas portuguesas e estabeleceu trocas de periódicos. 

Foi um dos médicos que acompanhou a doença que afligiu o rei D. Pedro V e dos irmãos, os infantes D. Fernando, D. João e D. Augusto após um regresso do Alentejo em setembro de 1861. Depois de uma caçada em Vila Viçosa, D. Pedro e os irmãos seguiram para Portalegre, Alter do Chão e Abrantes. Na volta para Lisboa revelaram-se os primeiros sintomas da doença que os afetou a todos, provocando a morte ao rei e aos infantes D. Fernando e D. João. Foi aberto um inquérito policial e a equipa de médicos que realizou a autópsia negou a hipótese de envenenamento, declarando como causa de morte uma febre tifoide, doença muito comum na época, provocada por uma bactéria intestinal da família das salmonelas, habitualmente ingerida em águas ou alimentos contaminados. Bernardino António Gomes escreveu um livro registando todo o processo da doença e da autópsia, no qual foi um dos protagonistas.

Em 23 de novembro de 1865, foi eleito presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.

Estudou a fundo as epidemias que assolaram o mundo no seu século e em particular as que afetaram Portugal desde 1833 com a chegada do cólera-mórbus ao Porto nos navios de soldados belgas que ajudaram os liberais na Guerra Civil. Durante o cerco do Porto, e depois quando se espalhou pelo país, a epidemia de cólera acabou por causar mais de 40 mil mortos, um número mais elevado do que o da própria guerra. Depois desta, seguiram-se mais oito vagas epidémicas, disseminadas por indivíduos com profissões de alta mobilidade, como soldados, marinheiros, comerciantes ou pedintes, e intensificadas pela falta de higiene nas casas e nas ruas, pelo uso de água e alimentos contaminados e pela concentração dos doentes em pequenos espaços. Os Estados reagiram, por vezes de forma divergente, com medidas restritivas que privilegiavam os cordões sanitários e as quarentenas, e que tinham consequências económicas por vezes tão devastadoras como a própria doença. A comunidade médica internacional, se bem que beneficiasse de uma circulação bastante regular do conhecimento, pelo menos entre os países europeus e da América do Norte, verificou a falta de capacidade de resposta prática à doença. A partir de 1851, as potências europeias começaram a enviar os seus melhores especialistas a Conferências Sanitárias Internacionais. Estas conferências foram iniciadas em Paris e repetidas em Constantinopla em 1866, Viena em 1874, Washington em 1881, Roma em 1885, Veneza em 1892, Dresden em 1893 e de novo em Veneza em 1897.

A posição defendida por Bernardino António Gomes inseriu-se na teoria do contágio, baseando-se na sua longa experiência e em exemplos práticos, que foram expostos no artigo publicado na Gazetta Médica de Lisboa em 16 de fevereiro de 1858, sob o título “Sur la transmissibilité et l’importation de la fièvre jaune, du choléra, et de la peste. État actuel de la question. 1858” (publicado de novo em Constantinopla em 1866). Esta teoria fora contestada nas décadas anteriores. Enquanto desde o século XVI o contágio das doenças fora defendido, o século XIX viu surgir uma nova geração de cientistas que o negaram, baseando-se na ineficácia das quarentenas e dos cordões sanitários (especialmente na altura da pandemia de cólera de 1832), remetendo-o para o domínio do fantástico, absurdo e infantil. Baseados em experiências várias, incluíndo no seu próprio corpo, e imbuídos do espírito liberal da época, os cientistas defensores do anticontagionismo lutaram pela liberdade do indivíduo e do comércio, contra o despotismo e a reação. Verificou-se assim uma clara associação entre teorias anti-contágio e interesses comerciais. Enquanto os governos do norte da Europa, mais liberais e progressistas, avançaram com políticas higienistas, abolindo quarentenas e cordões sanitários, os do sul da Europa, mais conservadores, mantiveram as práticas correspondentes à teoria do contágio. Sem dúvida que a teoria anti-contágio apresentou aspetos positivos, uma vez que os países que a defenderam colocaram em prática grandes operações sanitárias dirigidas especificamente contra a sujidade, as quais acabaram por ser eficientes na prevenção das subsequentes epidemias. Por isso, mesmo quando os trabalhos de John Snow fizeram retomar a teoria do contágio, que foi readmitida pela maioria dos cientistas a partir de 1865, os conceitos higienistas continuaram a ser considerados fundamentais e foram postos em prática cada vez com mais intensidade.

Bernardino António Gomes representou Portugal na Conferência Sanitária Internacional de Constantinopla em 1866, o ano a seguir a nova epidemia de cólera, defendendo a teoria do contágio e a necessidade da interrupção da navegação. Colocou-se do lado de França e da maioria dos representantes dos países da Europa do Sul, contra as posições liberais da Inglaterra e da Alemanha, que defendiam ainda a postura anti-contágio e, portanto, o levantamento das quarentenas e dos cordões sanitários, escudando-se na eficácia das medidas sanitárias postas em prática nestes países. O relatório final da conferência reafirmou a contagiosidade da cólera e declarou que a água e certos alimentos podiam ser as vias de entrada no organismo do agente patogénico (já como reflexo dos trabalhos de John Snow), além de declarar que as comunicações marítimas eram um fator de propagação da epidemia.

Bernardino António Gomes recebeu as seguintes condecorações: comendador da Ordem de Sant’Iago e de Torre e Espada, grã-cruz da Ordem de Isabel, a Católica, e oficial da Legião de Honra de França. 

Maria Antónia Pires de Almeida
CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Obras

Gomes, Bernardino António. Memoria sobre a epidemia da cholera-morbus que grassou na cidade do Porto desde 1832 a 1833. Lisboa: Typografia da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, 1842). 

Gomes, Bernardino António. Elementos de farmacologia geral, ou Principios geraes de materia medica e de therapeutica. Lisboa: Typ. da Academia, 1851. 

Gomes, Bernardino António. “Apontamentos para a História da Epidemiologia em Portugal.”Gazetta Médica de Lisboa 6 (1857): xx-xx (página inicial e final)

Gomes, Bernardino António. O marechal Duque de Saldanha e os medicos: breves considerações ácerca da memoria sobre o estado da medicina em 1858. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859). 

Gomes, Bernardino António. Noticia da doença de que falleceu sua Magestade El-Rei o Senhor D. Pedro V e das que na mesma occasião atacaram Suas Altezas os Senhores Infantes D. Fernando, D. Augusto e D. João no anno de 1861. Lisboa: Imprensa Nacional, 1862.

Gomes, Bernardino António. Questão vaccinica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1864). 

Gomes, Bernardino António. As epidemias no Asylo da Ajuda, nos annos de 1860-1864. Lisboa: Imprensa Nacional, 1865. 

Gomes, Bernardino António. Aperçu historique sur les épidémies de choléra-morbus et de fièvre jaune en Portugal, dans les années de 1833-1865 par le Délégué du  Gouvernement Portugais a La Conférence Sanitaire Internationale Réunie a Constantinople. Constantinopla: Imprimerie Centrale, 1866.

Gomes, Bernardino António. Sur la transmissibilité et l’importation de la fièvre jaune, du choléra, et de la peste. État actuel de la question. 1858. Constantinopla: Imprimerie Centrale, 1866.

Gomes, Bernardino António. O esgôto, a limpeza e o abastecimento das águas em Lisboa: o que foram ou são, e o que devem ser, considerado tudo á luz das boas praticas e doutrinas. Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias, 1871.

Bibliografia sobre o biografado

Ackerknecht, Eriwn H. “Anticontagionism between 1821 and 1867.” Bulletin of the History of Medicine 22 (1948): 562-593.

Almeida, Maria Antónia Pires de. Saúde pública e higiene na imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918. Lisboa: Colibri, 2013.

Garnel, Maria Rita Lino. “Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus).” Revista de História da Sociedade e da Cultura 9 (2009): 229-251.

Gomes, Joaquim Eleutério Gaspar. Elogio do conselheiro Bernardino António Gomes. Lisboa: Imprensa Nacional, 1877.