Malaca, 1563 — Goa, ca. 1623
Palavras-chave: Manuel Godinho de Erédia, Ásia, Malaca, cartografia, geografia, botânica, XVI, XVII.
DOI: https://doi.org/10.58277/ZAGJ1026
Manuel Godinho de Erédia foi autor de uma vasta obra cartográfica e geográfica sobre o mundo oriental, a qual na época permaneceu manuscrita e apenas modernamente tem sido editada. Filho de um soldado português de ascendência aragonesa e de uma princesa originária das Celebes (Sulawesi), Erédia foi educado no colégio jesuíta de Malaca. Mais tarde, em muitos dos seus mapas e escritos utilizaria palavras e expressões malaias, para além de se referir a fontes escritas de origem malaia ou javanesa, o que leva a supor que conhecia bem a língua malaia. Com 13 anos de idade, Manuel Godinho mudou-se para Goa, a fim de continuar a sua educação formal com os padres jesuítas, estudando gramática, artes, filosofia e matemática. Distinguiu-se no estudo desta última disciplina, pois durante alguns anos exerceu funções no colégio jesuíta de Goa como mestre de matemática. Era também um artista talentoso, pois as fontes jesuítas atribuem-lhe a autoria de uma pintura religiosa remetida para a corte do Grão-Mogol em Agra. A vocação religiosa de Erédia, contudo, não se revelou sólida, pois em 1586 abandonou a Companhia de Jesus, para se dedicar a outras atividades. Contudo, não se encontra confirmação documental para a alegação do próprio Erédia de que teria passado a desempenhar funções de cosmógrafo-mor do Estado da Índia.
O vice-rei D. Duarte de Meneses, que governou o Estado da Índia entre 1584 e 1588, fez-se acompanhar por GiovanniBattista Cairato, engenheiro de origem italiana que fora encarregado por Felipe II de Espanha (e I de Portugal) de realizar um cuidadoso levantamento das fortalezas orientais dos portugueses. Cairato viajou extensamente pelo Oriente até 1596, e parece certo que Erédia o serviu como desenhador; durante estas deslocações, o cartógrafo reuniu elementos para muitos dos seus posteriores desenhos de cidades e fortalezas. A primeira obra conhecida de Erédia, a Informação da Aurea Chersoneso, ou Peninsula, e das Ilhas Auriferas, Carbunculas e Aromaticas, foi escrita após este período, entre 1598 e 1600. Tratava-se de uma descrição da Península Malaia e das principais ilhas do arquipélago indonésio, com notícias referentes à história, costumes, crenças e lendas, e com a preocupação de identificar minas de metais preciosos e fontes locais de especiarias valiosas. Desde as primeiras décadas do século XVI que nenhum outro autor tinha analisado de forma tão cuidadosa estas regiões orientais. Este primeiro escrito de Erédia, paralelamente a informações geográficas inovadoras, incluía dezenas de referências livrescas, citando numerosos autores ocidentais, clássicos e modernos, como Ptolomeu, Estrabão, Plínio, Pompónio Mela, Marco Polo ou Ludovico de Varthema. Este procedimento foi depois repetido em todos os subsequentes escritos de Erédia, que gostava de alardear erudição, a qual, contudo, nem sempre era de primeira mão.
Entre 1600 e 1605, Erédia estanciou na Península Malaia, dedicando-se a trabalhos de engenharia militar, relacionados com as fortalezas portuguesas da região, e a atividades de prospeção mineira no sertão de Malaca. Preparou entretanto diversos planos de fortificações e detalhados mapas das regiões malaias visitadas, que conduziram a cartografia portuguesa para a representação inovadora de regiões interiores do continente asiático. Nada se consegue apurar sobre o seu paradeiro nos cinco ou seis anos seguintes, mas regressou decerto a Goa, pois muitas das suas cartas e plantas de fortalezas, cidades e regiões orientais, como o Atlas produzido em 1610 a instâncias do vice-rei Rui Lourenço de Távora, que governou o Estado da Índia entre 1609 e 1612, parecem datar deste obscuro período. Em 1611, efetuou uma viagem de prospeção mineira nas regiões setentrionais do Indostão, regressando na posse de vários mapas corográficos muito detalhados e inovadores, e de uma breve relação intitulada Discursos sobre a Província do Indostão, que descrevia esta região indiana. Como era habitual nos seus escritos, apresentava uma complexa combinação de observações em primeira mão e de informações orais, com diversas notícias recolhidas em fontes livrescas. Estas últimas incluíam não só referências ocidentais, mas também alusões a manuscritos persas. Erédia preparou também, durante esta expedição, um álbum de desenhos de árvores e plantas indianas, a Suma de Árvores e Plantas da índia Intra Ganges, dedicado a Rui Lourenço de Távora, que comprovava a sua curiosidade pela história natural e os seus dotes artísticos. Aparentemente satisfeito com este metódico trabalho de exploração, o novo vice-rei, D. Jerónimo de Azevedo, que governou entre 1612 e 1617, enviou-o em mais uma empresa de prospeção mineira na região de Goa. Erédia deve ter desempenhado este encargo nos anos de 1612 e 1613, descobrindo importantes jazidas de cobre e de ferro, e produzindo, como de costume, diversos mapas e cartas.
A partir de 1613, e até ao seu desaparecimento uma década mais tarde, Manuel Godinho viveu em Goa, a partir de onde dirigiu diversas cartas para Portugal, algumas das quais continham propostas de realização de viagens de descobrimento em partes inexploradas dos mares asiáticos. Mas nenhum desses projetos mereceu apoio régio. Dedicou-se, entretanto, a diversos afazeres. Trabalhou como pintor, sendo nomeadamente responsável pela elaboração de numerosos retratos de governadores e vice-reis portugueses, e também como cartógrafo, desenhando mapas e plantas de cidades e fortalezas, que andam reunidos em diversos atlas manuscritos. Erédia atravessou então o seu mais prolífico período de criação literária, pois no curto espaço de quatro anos produziu três tratados históricos e geográficos. Em primeiro lugar, em finais de 1613 concluiu a Declaraçam de Malaca e India Meridional com o Cathay, o seu mais ambicioso projeto textual, dedicado a Felipe III de Espanha (e II de Portugal), composto por três partes, e que desenvolvia a anterior Informação. Primeiro, uma detalhada corografia de Malaca e do seu sertão, ilustrada por mapas e desenhos diversos (pessoas, plantas, animais e embarcações), que abordava temas tão variados como a topografia urbana e rural, a história política local, as práticas comerciais, as produções naturais, as crenças religiosas ou o folclore tradicional. Depois, uma compilação de notícias sobre terras desconhecidas, alegadamente ricas em minérios auríferos, que se poderiam encontrar nos mares para sul de Timor, também ilustrada por diversos mapas especulativos. A partir desta secção da obra tem-se desenvolvido um debate, ainda não concluído, sobre o possível descobrimento da Austrália pelos portugueses. Enfim, em terceiro lugar, a Declaraçam continha uma geografia geral do continente asiático, desde a parte setentrional do Indostão até às regiões mais orientais da China, que procurava conciliar o saber geográfico ocidental com informações orais recolhidas na Índia e com cartografia produzida na Europa, recorrendo talvez a algumas fontes asiáticas. Esta secção era ilustrada por mapas parciais e globais da Ásia, que, como geralmente sucedia em toda a cartografia erédiana, tentavam reconciliar a diversidade de fontes utilizadas pelo cosmógrafo, que incluíam nomeadamente mapas analisados em edições bíblicas e edições do cartógrafo flamengo Abraham Ortelius. Pesem embora os muitos equívocos cometidos relativamente à real configuração das regiões tratadas, atribuíveis às limitadas possibilidades de exploração então disponíveis, a Declaraçamconstituiu um feito notável do ponto de vista do conhecimento europeu da geografia asiática, pois abordava áreas e temáticas pouco estudadas anteriormente. Tal como o seu primeiro tratado, também este estava recheado de referências eruditas, numa clara exibição de conhecimentos livrescos. Mas desta vez Erédia atribuía uma maior importância aos autores seus contemporâneos, citando nomeadamente João de Barros, Brás de Albuquerque, Benito Arias Montano, Diogo do Couto ou João de Lucena, entre outros.
Neste período, em finais de 1615, Erédia redigiu também a Historia de serviços com martirio de Luis Monteiro Coutinho, relato apologético das façanhas militares de um capitão português capturado e executado em 1588 por ordem do soberano do Achém, sultanato do norte da ilha de Samatra, que lhe fora encomendado por familiares. Manuel Godinho tentou situar a carreira de Luís Monteiro no contexto mais alargado da presença portuguesa na Ásia, mostrando de passagem que estava bastante bem informado sobre as passadas atividades militares do Estado da Índia. Tal como outras das suas produções, também esta obra (que se mantém inédita, num manuscrito autógrafo da Biblioteca Nacional de Portugal) era acompanhada de detalhadas ilustrações representando cenas bélicas. De finais de 1616 data o Tratado Ophirico, última das produções erédianas, também dedicada ao monarca Felipe III. As partes principais desta obra constituíam um ambicioso dossiê de exegese bíblica. A partir de uma edição latina da Bíblia, talvez a Poliglota de Arias Montano, e com o apoio de meia-dúzia de comentadores, Erédia lançou-se na resolução de um problema que durante séculos tinha estado na primeira linha de preocupações de estudiosos da tradição cristã. Procurando conciliar a tradicional geografia bíblica com a sua visão da configuração dos espaços asiáticos, obtida em tratados livrescos, através de informações orais, e também em repetidas viagens terrestres, o cosmógrafo luso-malaio procurava determinar a exata localização da região de Ofir, de onde vinha o ouro de Salomão.
Erédia, nos seus últimos anos, continuou a produzir materiais artísticos e cartográficos. O cronista Diogo do Couto, que também residia em Goa, mencionava numa carta enviada para Portugal em 1616 o ‘pintor Godinho’, que então trabalhava sob a sua supervisão na restauração das pinturas das armadas da carreira da Índia. Manuel Godinho parece ter falecido por volta de 1623. Nenhuma das suas inúmeras produções textuais ou cartográficas mereceu durante a sua vida as honras da impressão; e nenhum dos seus diversos projetos de descobrimento foi patrocinado pelas autoridades portuguesas. As suas obras rapidamente caíram no esquecimento, apenas sendo regularmente convocadas, em tempos mais recentes, no contexto da discussão sobre o descobrimento da Austrália pelas potências marítimas da Europa. Os variados e extensos escritos de Erédia foram produto do específico mundo cultural da Índia portuguesa, onde os saberes, os valores e as tradições da Europa e da Ásia se interligavam, formando uma única e complexa simbiose cultural. Manuel Godinho de Erédia produziu nas suas muitas obras uma síntese por demais curiosa, usando uma combinação complexa de experiência pessoal, de testemunhos vivenciais, de rumores dispersos, de tradições malaias, e de fontes cartográficas e literárias. As suas origens miscigenadas permitiram-lhe acesso franco às mais atualizadas fontes da educação humanista europeia, aos mais recentes descobrimentos portugueses no campo da geografia asiática, e a um vasto corpo de sabedoria asiática, consignada em manuscritos e em tradições orais. Estas contribuições múltiplas colocavam os seus tratados geográficos e as suas produções cartográficas num lugar de fronteira e de cruzamento, onde se ensaiava uma impossível ponte entre três heranças culturais muito distintas, a clássica europeia, a portuguesa e a malaia. Esta natureza simbiótica explica o singular destino dos escritos de Erédia, condenados durante séculos ao esquecimento. Mas os escritos históricos e geográficos de Erédia, de uma forma muito própria, eram bastante inovadores e estavam na linha da frente das preocupações de outros cosmógrafos contemporâneos. O infortúnio editorial de Erédia explica-se sobretudo pelos conturbados tempos em que lhe foi dado viver, numa época que assistiu à expansão holandesa e inglesa na Ásia marítima e ao sistemático assalto às posições ibéricas desencadeado pelas potências do Norte da Europa. Nessa conjuntura, as autoridades ibéricas não estimularam particularmente a difusão e a impressão de materiais de natureza geográfica sobre as Índias Orientais. E muitos dos escritos de Manuel Godinho de Erédia eram dedicados a tópicos demasiado sensíveis, como a localização de fontes produtoras de metais preciosos e o descobrimento de desconhecidas ilhas auríferas. O Estado da Índia, certamente, não gostaria de ver cair este tipo de informações estratégicas em mãos erradas.
Rui Manuel Loureiro
ISMAT e CHAM/NOVA
Obras
Erédia, Manuel Godinho de. Historia de serviços com martirio de Luis Monteiro Coutinho (Goa, 1615), ms., Biblioteca Nacional de Portugal, FG 414.
Erédia, Manuel Godinho de. Malaca, l’Inde Orientale et le Cathay, ed. Léon Janssen. Bruxelas: E. Lambert-Stevelinck, 1881.
Erédia, Manuel Godinho de. Eredia’s Descrition of Malaca, Meridional India, and Cathay, ed. J.V. Mills & Cheah Boon Kheng. Kuala Lumpur: Malaysian Branch of the Royal Asiatic Society, 1997.
Erédia, Manuel Godinho de. O Lyvro da Plantaforma das Fortalezas da Índia, ed. Rui Carita Lisboa: Edições INAPA e Ministério da Defesa Nacional, 1999.
Erédia, Manuel Godinho de. Suma de Árvores e Plantas da Índia Intra Ganges, ed. John G. Everaert, J. E. Mendes Ferrão e Maria Cândida Liberato. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descorbimentos Portugueses, 2001.
Erédia, Manuel Godinho de. Informação da Aurea Quersoneso, ed. Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau, 2008.
Erédia, Manuel Godinho de. Tratado Ophirico, 1616, ed. Juan Gil e Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau, 2016.
Bibliografia sobre o biografado
Flores, Jorge. “Between Madrid and Ophir: Erédia, a Deceitful Discoverer?” In Dissimulation and Deceit in Early Modern Europe, ed. Miriam Eliav-Feldon & Tamar Herzig, 184–210. London: Palgrave Macmillan, 2015.
Loureiro, Rui Manuel. “Manuel Godinho de Erédia e os seus tratados geográficos.” Oriente 9 (2004): 94–107.
Loureiro, Rui Manuel. “Manuel Godinho de Erédia revisited.” In Indo-portuguese History: Global Trends, ed. Fátima da Silva Gracias, Celsa Pinto e Charles Borges, 411–439. Goa: s.n., 2005.
Richardson, W.A.R. “A Cartographical Nightmare: Manuel Godinho de Erédia’s Search for India Meridional.” In The Portuguese and the Pacific, ed. Francis A. Dutra e João Camilo dos Santos, 314–348. Santa Barbara, Califórnia: Center for Portuguese Studies-University of California, 1995.
Subrahmanyam, Sanjay. “Pulverized in Aceh: On Luís Monteiro Coutinho and his ‘Martyrdom.’” Archipel 78 (2009): 19–60.