Silva, Eugénio Correia da Conceição

Lisboa, 11 maio 1903 — Lisboa, 26 abril 1969

Palavras-chave: Astrónomo amador, Física, Fotografia astronómica, Planetário.

DOI: https://doi.org/10.58277/CGHO9028

Eugénio Correia da Conceição Silva nasceu na freguesia de Santa Isabel, em Lisboa, no dia 11 de maio de 1903. Ingressou na Escola Naval em 1920, tendo terminado o curso em 1923. Com vinte anos iniciou a sua carreira como oficial e durante os primeiros anos esteve embarcado, como normalmente acontece com os oficiais da Marinha. Merece especial destaque a longa comissão que fez no Oriente, a bordo do cruzador República. Durante essa passagem por aquelas terras longínquas teve duas intervenções, ambas em Macau, que demonstram um elevado sangue-frio e uma enorme capacidade de reagir a situações inesperadas, tendo a sua atuação sido alvo da atribuição de louvores por parte do seu comando. A primeira aconteceu durante um incêndio de grandes proporções que deflagrou na ilha da Taipa, tendo a ação de Conceição Silva contribuído para reduzir significativamente os efeitos do incêndio, mesmo correndo sérios riscos. A segunda dessas intervenções deu-se em 20 de agosto de 1927. Nesse dia, a cidade de Macau foi atingida por um dos mais violentos tufões registados naquele território. O cruzador República foi arrancado da bóia na qual se encontrava amarrado e arrastado pelo temporal em direção a terra, tendo corrido por duas vezes perigo de naufragar. O papel de Conceição Silva, na altura um jovem oficial, foi fundamental nas manobras realizadas, garantindo a segurança do navio.

Após esse período de embarque seguiu-se o desempenho de funções em terra. Entretanto, em 1928 casou com D. Maria Helena George com quem teve dois filhos: Guilherme e Tomás. Seguiram ambos a carreira militar, tal como o pai. Ambos estudaram na Escola Naval. Tomás Conceição Silva frequentou posteriormente o curso de piloto naval e quando, na década de 1950, foi criada a Força Aérea, optou por transitar para esse novo ramo, onde atingiu o mais alto cargo, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea. Quanto a Guilherme, permaneceu na Marinha, onde desempenhou diversos cargos, embarcado e em terra. Simultaneamente adquiriu formação em direito, tendo-se especializado em direito marítimo. Foi um dos militares da Marinha que integrou o Movimento das Forças Armadas, tendo chefiado a Comissão de Extinção da PIDE/DGS e foi Secretário de Estado da Comunicação Social, num dos primeiros governos provisórios, após o 25 de abril. Faleceu recentemente, em 5 de abril de 2014.

No início da década de 1930 a Marinha foi alvo de um profundo programa de modernização. Provavelmente foi o mais completo plano naval dos últimos dois séculos. Uma das principais razões para o levar a cabo foi o facto de a Marinha ter atingido uma situação de «Zero Naval», de acordo com as palavras do Almirante Pereira da Silva, Ministro da Marinha nos últimos anos da Primeira República e um dos principais ideólogos deste programa. Tendo em conta o estado de obsolescência a que chegara a maior parte dos navios portugueses, a aquisição de novos meios tinha associadas inúmeras inovações tecnológicas para as quais era necessário formar pessoal, no estrangeiro. Em 1931, Eugénio Conceição Silva foi nomeado para frequentar um curso de especialização em Artilharia, em Itália, conjuntamente com outros dois oficiais portugueses. Conceição Silva destacou-se neste curso, pela sua elevada craveira intelectual, tendo obtido uma das melhores notas do mesmo, entre oficiais italianos e inúmeros estrangeiros. Mas Conceição Silva também se fez notar pelo seu desempenho prático, uma vez que o curso tinha uma forte componente prática, com realização de bastantes exercícios de tiro, realizados a bordo de vários navios. Esta forte ligação entre um conhecimento académico e a habilidade para realização de tarefas práticas será uma constante ao longo de toda a vida do Comandante.

Apesar das provas que tinha dado no curso, demonstrando ser um excelente artilheiro, a bordo, quis o destino que ele aplicasse esses seus conhecimentos essencialmente na formação dos futuros oficiais da Marinha. Assim, após regressar de Itália foi nomeado professor da 7ª cadeira da Escola Naval – Artilharia e Técnicas de Tiro. Com a reforma curricular ocorrida em 1937, esta área do conhecimento passou a integrar o 3º grupo de cadeiras – Artilharia e Tiro, que se desdobrava em duas outras: Balística Interna e Balística Externa.

A sua atividade como professor da área de Artilharia prolongou-se por vinte e nove anos. Apenas a interrompeu por necessidades administrativas da carreira de qualquer oficial da Marinha, para frequentar um curso de âmbito militar naval e para cumprir um tirocínio de embarque, durante o qual regressou ao Oriente. Inúmeros testemunhos de antigos alunos seus dão conta de algumas das facetas de Conceição Silva. Por um lado, a sua permanente disponibilidade para estudar um vasto leque de assuntos científicos, nomeadamente matemática, química e física, em especial a ótica e a dinâmica. Usava permanentemente estes conhecimentos nas suas exposições que eram, em geral, simples e claras. [IMdSPA1] 

No âmbito das suas atividades docentes foi responsável pela redação de três manuais de cariz prático: Manual de tiro naval para o oficial não especializadoBalística externa e tiro naval e Guia prático do oficial telemetrista. Além das aulas da área da Artilharia foi igualmente docente de Eletricidade e de Hidrografia, em situações em que o cargo de professor destas matérias não estava provido. Em 1959 pediu para passar à reserva, tendo, contudo, permanecido como professor da Escola Naval. Só que desta feita, passou a ensinar matérias do 1º grupo de cadeiras – Matemática. Nesta fase final da sua vida ministrou as cadeiras de Matemáticas Gerais, Cálculo Infinitesimal e Mecânica Racional.

Ao mesmo tempo que exercia funções docentes na Escola Naval, desempenhou funções em outros organismos da Marinha. Em 1948 foi escolhido para diretor do Laboratório de Explosivos da Marinha, dada a sua competência nesta área. Este laboratório era responsável, entre outros assuntos, pela verificação da qualidade dos explosivos adquiridos pela Marinha, tendo o comandante sido responsável por um trabalho no âmbito da química de explosivos, apreciado pelos seus pares. Por inerência deste cargo assumiu a função de vogal da comissão de explosivos do Ministério da Economia, onde os seus conhecimentos  académicos na área foi reconhecida. Foi ainda responsável pela criação da Oficina de Ótica da Armada, assumindo ele próprio a formação técnica do pessoal que nela prestava serviço assim como também tomou para si o encargo de estabelecer a orgânica de funcionamento da mesma oficina.

Mas a área em que mais se notabilizou Conceição Silva foi a astronomia. No seu tempo, o ingresso na Escola Naval fazia-se após frequência dos Preparatórios Militares, na Faculdade de Ciências de Lisboa (poderiam igualmente ser feitos em Coimbra ou no Porto). No ano em que frequentou a faculdade, para obter esta habilitação de ingresso, inscreveu-se, voluntariamente, numa cadeira de astronomia. Ao mesmo tempo, inscreveu-se como membro da Societé Astronomique de France. Tinha então dezasseis anos. Este gosto pelas estrelas vinha desde a infância. Ele próprio referia diversas vezes esse interesse, que era confirmado pelo testemunho de sua mulher. Conheciam-se desde tenra idade, e num postal que lhe enviou, quando ele tinha nove anos, chamava a atenção para uma determinada estrela brilhante que poderia ser observada no céu.

Obviamente que quando realizou as suas comissões de embarque não poderia fazer observações astronómicas de precisão. Mas assim que passou a exercer funções docentes pôde dedicar-se àquela que era a grande paixão da sua vida. No início da década de 1930, construiu um pequeno observatório na mata do Alfeite, próximo de sua casa. Nas suas primeiras observações usava uma luneta astronómica, que ele próprio construiu. Mais tarde construiu vários telescópios refletores, de 100 mm e de 500 mm de abertura. Possuía uma capacidade excecional para resolver problemas técnicos que identificava. Concebeu e construiu um micrómetro destinado a observar estrelas duplas. Este micrómetro mereceu atenção a nível internacional, tendo sido descrito no Boletim da Societé Astronomique de France, em 1935, e posteriormente este texto foi traduzido para inglês e publicado no Amateur Telescope Making – Advanced. Foi ainda elogiado pelo astrónomo amador americano R. L. Beardsley, que escreveu a Conceição Silva informando-o que tinha publicado na revista Astrolab, de Chicago, uma descrição do micrómetro.

Entretanto, em 1947 começaram as obras para construção do seu novo observatório, que ficaram concluídas dois anos mais tarde. Naquela época, o espaço ocupado pela Marinha, no Alfeite, encontrava-se relativamente isolado. Apesar de se situar no concelho de Almada, não existiam grandes facilidades de comunicação. A ligação com Lisboa só poderia ser feita por via fluvial, pois não existia nenhuma ponte. Muitos dos militares da Marinha viviam dentro da própria base, em bairros construídos para esse efeito. O comandante vivia no bairro dos oficiais, ocupando, portanto, uma casa que era propriedade do Estado. Apesar disso, conseguiu autorização do Ministro da Marinha para transformar profundamente a cobertura dessa casa, de modo que a mesma passasse a dispor de uma cúpula para instalar um telescópio. Este facto é prova evidente de que já era reconhecido o mérito de Conceição Silva como astrónomo. O telescópio foi retirado e encontra-se em exibição na galeria do Planetário Calouste Gulbenkian. Contudo, a casa ainda existe e pode ser vista a cúpula, hoje sem qualquer utilidade prática.

O telescópio que aqui instalou foi totalmente construído por Conceição Silva. Tratava-se de um telescópio refletor de 500 mm de abertura. Naquela época era o maior da Península Ibérica. Pouco tempo depois de ser construído, o telescópio foi conhecido internacionalmente, tendo sido descrito no boletim L’Astronomie, da Associação Astronómica Francesa, de janeiro de 1951, e na revista Scientific American, de setembro de 1952. Possuía dois espelhos refletores, principal e secundário, podendo ser usado na configuração Newton, apenas espelho principal (f/6); ou na configuração Cassegrain, dois espelhos (f/18); neste último caso conseguiam-se ampliações superiores a oitocentas vezes. Conceição Silva demorou quatro anos a construir o berço do telescópio, assim como os dois espelhos Colaborou diversas vezes com a esquadrilha de submarinos, tendo sido o responsável pela primeira revisão ótica de um periscópio realizada em Portugal.

No período de 1950 a 1957, Conceição Silva usou o seu telescópio de 500 mm, assim como outros de menores dimensões, que também construíra. Recolheu inúmeras fotografias do espaço. Nas suas observações, o comandante realizava, sozinho, todas as tarefas: apontava o telescópio, montava a câmara fotográfica, permanecia de pé várias horas, durante a exposição, revelava as chapas fotográficas, ampliava as mesmas e realizava as provas fotográficas. Nalguns casos, as exposições tinham que ser efetuadas em vários dias consecutivos, para atingir a qualidade desejada. Tudo isto fora das horas que dedicava à sua ocupação principal, que era a docência na Escola Naval, complementada com os cargos que desempenhava no âmbito da Artilharia e dos Explosivos. A astronomia era exercida por ele de uma forma completamente amadora, sendo considerado o primeiro astrónomo amador português. 

Embora feitas como amador, as suas observações mereceram reconhecimento, nomeadamente a nível internacional. Nos anos trinta, a União Astronómica Internacional solicitou o envio de todas as informações referentes a estrelas variáveis para o Observatório de Lyon, para que aqui se reunissem todos os dados que poderiam contribuir para o avanço da astronomia neste campo. Conceição Silva correspondeu ao apelo e os seus dados foram incluídos nos anos de 1948, 1949 e 1950 no Boletim da Associação Francesa de Observadores de Estrelas Variáveis.

Em 1952 representou, pela primeira vez, Portugal numa reunião internacional, na qualidade de astrónomo amador. Foi um dos representantes da Secção Portuguesa das Uniões Astronómica, Geodésica e Geofísica, na sua VIII Assembleia Geral. Teve oportunidade de participar em diversas outras reuniões internacionais, como astrónomo. Inclusivamente deslocou-se à União Soviética, numa altura em que Portugal não tinha relações diplomáticas com este país e que era muito difícil a um português deslocar-se até lá. Quando, em 4 de outubro de 1957, a União Soviética lançou o primeiro satélite artificial, Sputnik I, a notícia foi recebida com muito ceticismo em Portugal. Conceição Silva, que mantinha ligações científicas com astrónomos soviéticos, contribuiu para confirmar a veracidade da mesma, junto dos seus camaradas da Escola Naval.

O valor dos seus trabalhos foi reconhecido, com a atribuição do prémio «Dorothea Klumpke Isaac Roberts», pela Societé Astronomique de France. Conceição Silva foi galardoado ex-aequo com o astrónomo J. Texerau, do Observatório de Paris, tendo sido premiados os trabalhos de fotografias estrelares realizados por cada um deles. Em 1959 recebeu novo prémio, pela qualidade das suas fotografias, desta vez em Barcelona, o prémio «Ricardo Guille».

Quando se falou na atividade principal de Conceição Silva, a docência, referiu-se que ele tinha um gosto especial em transmitir os conhecimentos que adquiria, em termos científicos. Igual postura assumiu na divulgação da astronomia. Publicou, entre 1950 e 1953, quinze artigos de divulgação, sobre astronomia, na revista Átomo. Já antes, em 1938, publicara alguns textos sobre fotografia astronómica na revista Objectiva: revista mensal de fotografia e cinema de amador. Foi o autor do livro O sistema solar, da Coleção Cosmos, escreveu o Prefácio e supervisionou a tradução da obra Astronomia, de Karl Stumpf. Escreveu ainda artigos para os Anais do Clube Militar NavalBoletim da Sociedade de Geografia de Lisboa e na Revista Aster, da Agrupacion Astronómica, de Barcelona, assim como algumas entradas para a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura.

Os últimos anos da sua vida trouxeram-lhe um outro desafio a nível da astronomia. A partir de finais da década de cinquenta, a sua saúde já não lhe permitia dedicar-se às observações astronómicas noturnas. Entretanto, durante uma viagem aos Estados Unidos, visitou o Planetário de Nova Iorque. A partir daí defendeu a ideia de que Lisboa deveria possuir um equipamento igual. A Marinha acolheu a ideia e, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, foi possível inaugurar o Planetário Calouste Gulbenkian, em 1965. Este ficou localizado junto ao Museu de Marinha, que recentemente, em 1962, se tinha mudado para a zona de Belém, implicando uma remodelação arquitetónica da área da Praça do Império.

Conceição Silva foi naturalmente escolhido para primeiro diretor do Planetário. Apesar de ter já uma saúde fragilizada, o seu entusiasmo, em relação às questões da astronomia, não diminuiu. Foi ele o responsável pela formação dos conferencistas e pela elaboração dos guiões das primeiras sessões de planetário. Criou uma oficina de ótica onde se fizeram diversos telescópios, tendo sido auxiliado por um dos primeiros conferencistas, Joaquim Garcia.

Faleceu em Lisboa, a 26 de Abril de 1969, tendo sido diretor do Planetário até ao final da sua vida.

António Costa Canas
Escola Naval / CINAV / CH-ULisboa

Obras 

Silva, Eugénio Correia Conceição. Balística externa, telemetria e tiro naval: apontamentos para as lições da 7ª cadeira-Escola Naval 1932-1933. Lisboa: Escola Naval, 1933.

Silva, Eugénio Correia Conceição. «Fotografia astronómica, algumas notas práticas», Objectiva: Revista mensal técnica de fotografia e cinema, nº 14 (julho de 1938), p. 23.

Silva, Eugénio Correia Conceição. «Fotografia astronómica, algumas notas práticas», Objectiva: Revista mensal técnica de fotografia e cinema, nº 15 (agosto de 1938), pp. 44.

Silva, Eugénio Correia Conceição. «Fotografia astronómica, algumas notas práticas», Objectiva: Revista mensal técnica de fotografia e cinema, nº 16 (setembro de 1938), pp 55 e 58.

Silva, Eugénio Correia Conceição. «Observações astronómicas fora da atmosfera», Anais do Clube Militar Naval (outubro a dezembro de 1961), pp. 695-704.

Silva, Eugénio Correia Conceição. «O Planetário Gulbenkian de Lisboa», Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (julho a dezembro de 1965), pp. 165-174.

Silva, Eugénio Correia Conceição. O sistema solar. Lisboa: Cosmos, 1944.

Bibliografia sobre o biografado

Castro, Cyrne de. «O Comandante Eugénio Conceição Silva, astrónomo solitário no seu observatório do Alfeite» Eugénio Correia Conceição Silva. Evocação no seu centenário. Lisboa: Academia de Marinha, 2003, pp. 15-27.

Castro, Cyrne de. «Quem foi o Comandante Eugénio Conceição Silva?» Revista da Armada (dezembro de 2000), pp. 17-21.

Homenagem ao comandante Conceição SilvaAnais Clube Militar Naval (janeiro a março de 1974), pp. 105-115.

d’Oliveira, Rogério S. «Sessão de homenagem à memória do Comandante Conceição Silva (centenário)», Eugénio Correia Conceição Silva. Evocação no seu centenário. Lisboa: Academia de Marinha, 2003, pp. 1-6.

Serra, Manuel Limpo. «Eugénio Conceição Silva, o artilheiro e o professor», Eugénio Correia Conceição Silva. Evocação no seu centenário. Lisboa: Academia de Marinha, 2003, pp. 7-14.

Oliveira, Fernando (Fernão de Oliveira)

Gestosa, ca. 1507 — 1582?

Palavras-chave: Construção naval, Ciência Náutica, Gramática, História.

DOI: https://doi.org/10.58277/TWME8659

Fernando Oliveira foi sacerdote e nasceu por volta 1507, em Gestosa, Couto do Mosteiro, Santa Comba Dão. Durante muito tempo acreditou-se que teria nascido em Aveiro. A dúvida quanto ao local do seu nascimento surgiu porque no primeiro dos processos que lhe foi movido pela Inquisição começou por afirmar ser natural de Aveiro e mais adiante informou que tinha sido batizado na paróquia de Couto do Mosteiro. Contudo, numa das obras de sua autoria, Ars Nautica, começa por referir que é natural de Santa Comba, para mais adiante dar uma explicação mais detalhada. Refere que foi gerado em Aveiro, mas que «soltou os primeiros vagidos em Gestosa», recebendo o batismo em Santa Comba. Naquela época era costume batizar as crianças na paróquia onde tinham nascido.

As referências a Aveiro derivam do facto de a sua família ser originária dali, mas estariam em Gestosa, quando ele nasceu. Também sobre a identificação dos seus progenitores não existem muitas certezas, mas deveria ser filho de Heitor de Oliveira, juiz dos órfãos de Pedrógão e de D. Branca da Costa.

Também a grafia correta do seu nome tem suscitado discussões, pois o mesmo aparece redigido de diferentes modos, na documentação da sua época, nomeadamente nos processos da Inquisição, em que surge indistintamente como Fernando Oliveira e Fernão de Oliveira. A grafia mais aceite é a primeira, pois surge em praticamente todos os textos que escreveu, manuscritos ou impressos, com exceção da sua primeira obra, Gramática da Linguagem Portuguesa.

A sua formação académica foi adquirida junto dos frades dominicanos. Provavelmente iniciou a mesma em Aveiro, no convento de Nossa Senhora da Misericórdia, tendo depois passado para o convento de Évora. Aqui estudou teologia, tendo sido ordenado sacerdote. Adquiriu uma forte cultura humanista, existindo autores que consideram que um dos seus mestres teria sido André de Resende, embora não existam provas que garantam a veracidade desta suposição.

Com vinte e cinco anos desertou do convento de Évora e refugiou-se em Espanha, onde permaneceu cerca de três anos. Aí obteve autorização papal para passar ao clero secular, conforme o próprio referiu perante os inquisidores, embora tenha dito também que teria perdido o documento pontifício. Durante a sua estadia no país vizinho iniciou a redação da sua Gramática da Linguagem Portuguesa, que publicou em Lisboa, em 1536. Esta primeira obra de Oliveira é pioneira no seu género em Portugal. Nos finais da década de 1530, exerceu funções sacerdotais, o que constitui um argumento forte para acreditar que ele realmente recebeu autorização para passar ao clero secular. Por esta altura foi igualmente professor particular de filhos e filhas de algumas personalidades importantes da sociedade portuguesa.

Em 1540 ou 1541 iniciou uma viagem cujo destino seria Roma, segundo o próprio declarou na Inquisição. Não se sabe qual o motivo que o levou a empreender tal viagem e os dados existentes nem permitem concluir se ele terá atingido o destino. O seu primeiro biógrafo, Henrique Lopes de Mendonça avança a hipótese de Oliveira ter sido enviado numa missão de espionagem junto da Cúria Romana e assume que ele esteve realmente naquela cidade.

No entanto, Luís de Albuquerque chamou a atenção para o facto de Oliveira ter dito na Inquisição que partiu para Roma, nunca tendo afirmado que lá esteve. Aquilo que se sabe é que tendo embarcado em Barcelona, com destino a Génova, o navio onde seguia foi capturado por navios franceses. De acordo com Léon Bourdon, que divulgou documentos relacionados com a biografia de Oliveira, o clérigo teria passado a servir nas galés francesas, como piloto. A ser verídica esta ocupação, trata-se da sua primeira ligação à náutica, que ocupará um lugar de destaque na sua obra. Caso tenha ocupado o cargo de piloto surgem algumas questões interessantes: onde e quando adquiriu ele os conhecimentos para desempenhar tal cargo? O piloto era um dos oficiais mais importantes a bordo de qualquer navio e atingia-se este posto graças à experiência adquirida ao longo do tempo. Aparentemente, Fernando Oliveira conseguiu demonstrar possuir habilidade suficiente para que lhe fosse confiada a condução de galés.

Em 1543 estava de novo de regresso a Lisboa, onde permaneceu pouco tempo. Em 1545 embarcou como piloto de uma galé, que integrava uma esquadra francesa enviada do Mediterrâneo para combater os Ingleses no Canal da Mancha. A sua participação nesta frota reforça a possibilidade de anteriormente já ter desempenhado o cargo em navios franceses, existindo inclusivamente fortes indícios de que foi convidado por Saint Blancard, que comandava a galé onde Oliveira embarcou. Entretanto esta galé entrou em combate e os seus tripulantes foram aprisionados e transportados para Inglaterra. Aqui permaneceu alguns meses, tendo conseguido as boas graças de Henrique VIII, que inclusivamente lhe estabeleceu uma tença. Com a morte do rei, Oliveira continuou a contar com a proteção do seu sucessor, Eduardo VI. Quando o padre decidiu regressar a Portugal este soberano fê-lo portador de uma carta credencial para D. João III.

Regressado a Lisboa em 1547, foi-lhe movido um processo pela Inquisição. De mente aberta e espírito insubmisso, Fernando Oliveira não se coibia de expressar livremente as suas ideias. A sua permanência em Inglaterra tinha despertado nele simpatia em relação às opiniões que os Anglicanos tinham em relação à autoridade papal. Algumas das suas afirmações, proferidas em espaços públicos, levaram à instauração do processo pelo Santo Ofício. Em consequência deste, Oliveira foi condenado a prisão, por tempo indeterminado. Entretanto, em 1550, a pena foi comutada sendo transferido para o Mosteiro dos Jerónimos, onde ficaria em clausura, retomando o hábito dominicano. No ano seguinte, graças a um despacho do cardeal D. Henrique, inquisidor-mor, o frade foi libertado. Tinha obrigação de se ocupar de «alguns exercícios virtuosos» e ficava impedido de sair do reino sem licença.

Mas Fernando Oliveira permaneceu pouco tempo no reino. Logo em 1552 partiu integrado em mais uma expedição marítima. Desta feita viajou como capelão da caravela em que embarcou, ou eventualmente da pequena frota. A missão destes navios era levar de volta Mulei Buharon, soberano destronado do pequeno reino de Velez, em Marrocos, que pedira ajuda a D. João III para recuperar o seu reino. Os navios cumpriram a sua missão, desembarcando o rei no seu território, mas permanecem vários dias fundados no local e acabaram por ser capturados por uma esquadra de galés de Argel. Os Portugueses que sobreviveram ao combate ficaram cativos. Foram escolhidos dois dos prisioneiros, sendo Oliveira um deles, para regressarem a Portugal, solicitando a D. João III que pagasse o resgate exigido para a libertação. 

Após regressar a Portugal, Fernando Oliveira surgiu como revisor da Imprensa da Universidade de Coimbra e simultaneamente professor de Retórica ou Humanidades. Ao mesmo tempo deveria ter concluído a redação do segundo livro que publicou em Coimbra, em 1555, A Arte da Guerra do Mar. Como o título indica, trata-se de uma obra dedicada às questões bélicas, no contexto naval. O autor preocupou-se com assuntos ligados à tática naval, mas também abordou temas como a guerra justa. Demonstrou grande conhecimento das opiniões dos clássicos, gregos e romanos, mas também sobre textos católicos, que se debruçavam sobre as questões que lhe interessavam. Dissertou igualmente sobre artilharia dos navios, sobre os diferentes tipos de navios e o modo de os construir. Trata-se do mais antigo texto português conhecido, onde se abordam questões de construção naval, assunto que ele retomaria, de modo mais desenvolvido noutros textos que deixou manuscritos.

A sua forma frontal de expor as suas opiniões acabou por prejudicá-lo mais uma vez. Neste último livro apresentou uma exposição da forma como se passaram as coisas na missão em que os navios portugueses realizaram em apoio do soberano de Velez. A sua descrição é bastante crítica sobre a forma como eram recrutados os marinheiros, entre homens do campo que nunca tinham visto o mar; e os soldados, que foram arregimentados entre vagabundos das ruas de Lisboa. Criticou igualmente a postura daqueles que lideravam os navios, assim como foi bastante incisivo em comentários que fez à postura de muitos elementos da nobreza. Em outubro do ano de 1555 voltou aos calabouços da Inquisição, onde permaneceu durante cerca dois anos.

Pouco mais se sabe sobre a vida de Fernando Oliveira a partir desta sua passagem pela prisão. Em 1565, D. Sebastião concedeu uma tença de 20 000 réis a um licenciado e clérigo de missa chamado Fernão de Oliveira. Este religioso teria lecionado «casos de consciência» na escola conventual de Santiago, em Palmela. Não se consegue ter a certeza que seja o mesmo Fernando Oliveira a quem esta biografia é dedicada, mas existe uma grande probabilidade de o ser.

Por volta de 1567, Fernando Oliveira foi convidado para integrar uma viagem marítima de iniciativa francesa, pois conhece-se uma carta do promotor da iniciativa, o comerciante italiano Francesco d’Albagno, que refere que a competência de Oliveira na área náutica seria do conhecimento do próprio monarca francês. Mais ou menos pela mesma altura recebeu convite semelhante para passar ao serviço de Espanha. Aparentemente terá aceitado ambos os convites mas foi protelando a partida, sendo muito provável que nunca o tenha feito, embora não se tenha a certeza absoluta, por falta de documentação sobre os seus últimos anos de vida. Apesar de se saber pouco sobre ele a partir da década de 1560, conhecem-se três obras manuscritas, de sua autoria, que terá concluído nesses anos: Ars NauticaHistória de Portugal e Livro da Fábrica das Naus

Ars Nautica encontra-se nos Reservados da Biblioteca da Universidade de Leiden, sendo um texto manuscrito, redigido em latim e que permanece inédito até aos nossos dias. Nele, Fernando Oliveira retoma diversos assuntos já abordados em A Arte da Guerra do Mar, desenvolvendo mais detalhadamente as questões relacionadas com a construção naval e abordando com grande pormenor diversos aspetos da arte de navegar. O facto de o texto estar em latim é sinal de que Oliveira pretendia atingir certamente um público culto fora de Portugal, Não terá alcançado este objetivo, pois esta é entre as suas obras aquela que foi menos conhecida. Curiosamente, o texto foi desconhecido dos meios académicos portugueses até à década de 1960.

Uma caraterística constante de toda a vida de Fernando Oliveira é a censura em relação a factos ou situações com que não concordava. Na Ars Nautica essa crítica também está presente, nomeadamente contra aqueles que escrevem sobre arte de navegar sem nunca terem navegado. Contente Domingues defendeu que o alvo de Oliveira era o cosmógrafo-mor, Pedro Nunes, e muitos dos comentários que faz podem aplicar-se diretamente a assuntos que Nunes abordou.

A obra não está datada, mas Luís de Matos admitiu que deverá ter sido concluída por volta de 1570. Esta data é aceite pela generalidade dos investigadores. Mas a questão não é consensual. Pierre Valière, que estudou o manuscrito, considera que o texto deverá ter sido escrito após 1542 e nunca depois de 1563. Baseia a sua teoria no facto de junto à Ars Nauticase encontrar uma descrição da viagem de Fernão de Magalhães, escrita igualmente por Oliveira, com base num relato oral que recolheu. O historiador francês considera, sem justificar porquê, que ambos os manuscritos foram redigidos simultaneamente. A data inferior que escolheu surge porque no relato da viagem de Magalhães aparece uma referência ao Japão, que os Portugueses teriam contactado naquele ano. Quanto a 1563 foi a data da publicação da década ii da Ásia, de João de Barros. De acordo com Valière, só se percebe que Oliveira não faça nenhuma referência a esta obra se a mesma ainda não tivesse sido publicada, dada a grande proximidade entre ambos os escritores, tendo Oliveira sido professor dos filhos de Barros.

Contente Domingues analisou detalhadamente a Ars Nautica, observando minuciosamente o texto em termos internos, nomeadamente as constantes correções que foi introduzindo no texto, ao longo do tempo, e comparou inclusivamente as datações das marcas de água dos diversos tipos de papel utilizados nas colagens feitas no manuscrito. Notou ainda referências que Oliveira faz em A Arte da Guerra do Mar, a um texto sobre náutica que estaria a redigir. Com base nos dados que apurou, o historiador concorda com a datação de Luís de Matos, realçando apenas que se deverá considerar que é de circa 1570, não fixando exatamente este ano. Refere ainda que a Ars Nautica deverá ser situada, em termos de redação, entre A Arte da Guerra do Mar e o Livro da Fábrica das Naus.

É estranha a falta de referências académicas em Portugal, até 1960, à Ars Nautica, pois o texto sobre a viagem Magalhães foi publicado pela primeira vez em Coimbra, em 1937. Em 1976 mereceu uma tradução francesa, pelo historiador que tem vindo a ser referido. Em 1989 foi incluído no primeiro volume: As Grandes Viagens Marítimas, da «Biblioteca da Expansão», da Alfa.

Entretanto, pouco depois de 1580 surge a História de Portugal. O manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Paris, juntamente com outros textos escritos pela mão de Oliveira: Livro da Antiguidade do Reino de Portugal, uma tradução parcial do De Re Rústica de Columela e uma cópia da gramática de Nebrija (parte desta não é letra de Oliveira). Esta última foi a obra que serviu de inspiração a Oliveira para a sua Gramática, publicada em 1536. Columela foi um militar e escritor romano, dos primeiros anos da nossa era, nascido no sul da Península Ibérica. Escreveu aquele que é considerado o mais completo tratado sobre agricultura da época romana, e que Oliveira traduziu.

Quanto ao Livro da Antiguidade do Reino de Portugal trata-se de uma «primeira versão» da História de Portugal, mas que se manteve junto com o texto definitivo. A redação desta última ocorreu certamente após as Cortes de Tomar, de 1581, que confirmaram Filipe II como rei de Portugal. Oliveira usou a história para explicar as diferenças ancestrais entre Portugueses e Espanhóis e assim rebater os argumentos usados para justificar a ascensão de Filipe ao trono luso. A forma como o livro está escrito permite ainda avançar com a hipótese de que na altura, Oliveira estaria a viver em Portugal. É interessante notar que quando Oliveira redigiu esta obra contava já com uma idade avançada, facto mais relevante se for tido em conta que se trata de um texto bastante grande e que denota uma investigação profunda, realizada por um septuagenário. 

Alguns dos dados aceites pela historiografia, sobre a vida de Fernando Oliveira resultam de hipóteses que se colocam, em função de informações que surgem nos seus textos, e que não é possível confirmar com outras fontes. Nalguns casos, a argumentação a favor de algumas dessas hipóteses é consistente, noutros casos é mais frágil, mas aceita-se como provável, à falta de mais dados. Assim, é muito provável que ainda fosse vivo em 1581. Como se apresenta neste livro como capelão dos Reis de Portugal, pode assumir-se que tenha mantido a atividade de sacerdote. Um passo da História de Portugal levanta a possibilidade de ser vivo ainda em 1585. Nesta obra defendeu o Milagre de Ourique, fundamental para a sua argumentação, embora anteriormente o tivesse negado, em A Arte da Guerra do Mar. Mas dirigiu igualmente uma crítica a um autor que ignorara esse milagre, numa obra recente. Provavelmente estava a referir-se a Duarte Nunes de Leão, que no seu De Vera Regum Portugaliae Genealogia Liber, publicado em 1585, não menciona aquele mito da história pátria. 

Também por volta de 1580 escreveu o Livro da Fábrica das Naus. O manuscrito original encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa e o texto foi editado pela primeira vez em 1898, por Henrique Lopes de Mendonça, que acompanhou a edição de um estudo biográfico detalhado. Em 1988 o códice foi submetido a um processo de restauro e foi possível ter acesso às diferentes variantes do texto, pois existiam diversas colagens de papel substituindo partes anteriores de texto. 

Livro da Fábrica das Naus é o mais antigo texto português dedicado em exclusivo à descrição das técnicas de construção naval, embora o autor já tivesse abordado o assunto em A Arte da Guerra do Mar e na Ars Nautica. Em todos estes textos, Oliveira cita abundantemente autores clássicos e alguns contemporâneos, que escreveram sobre os temas que aborda. Mas simultaneamente usa a sua experiência, própria ou adquirida junto de quem exerce atividades práticas, para justificar muitas das suas afirmações. Mas não se julgue que as suas relações com os práticos da construção naval eram isentas de antagonismo. O seu objetivo ao escrever o Livro da Fábrica das Naus, era elaborar uma obra na qual a construção naval aparecesse teorizada, ou seja, pretendia perceber as diferentes regras empíricas, conhecidas apenas dos mestres construtores, e expô-las de uma forma teórica, para que as mesmas fossem percebidas por qualquer pessoa. Esta sua intenção encontrou muita resistência por parte dos mestres dos estaleiros.

Henrique Lopes de Mendonça, primeiro biógrafo de Oliveira, comparou-o com João de Barros (filólogo), Fernão Mendes Pinto (aventureiro), Damião de Góis (perseguido pela Inquisição) e com D. João de Castro (navegador). Luís de Albuquerque acrescentou Rui de Pina (historiador) a esta comparação e classificou Oliveira como «um português genial, aventureiro e insubmisso». E na realidade este homem da Igreja foi isto tudo. Detentor de uma elevada cultura em termos clássicos foi um verdadeiro homem do Renascimento. Mas a esta cultura junta o conhecimento prático, em muitas áreas. Nunca se inibe de expressar as suas opiniões, quando considera que está correto e esta sua forma de estar causou-lhe muitos contratempos ao longo da vida.

Não se sabe onde, nem quando, morreu Fernando Oliveira. É quase certo que foi depois de 1581, e que nessa altura estaria a viver em Portugal. Existe alguma possibilidade de ter sido depois de 1585. Mas estas datas deduzem-se da leitura de uma das suas últimas obras, porque os documentos referentes aos últimos anos da sua vida são praticamente inexistentes.

António Costa Canas
Escola Naval / CINAV / CH-ULisboa

Obras

Oliveira, Fernando. Ars Náutica. Leiden, Biblioteca da Universidade de Leiden – Reservados Cod. VOSS. LAT. F. 41.

Oliveira, Fernando. Arte da guerra do mar novamente escrita per Fernando Oliueyra, & dirigida ao muyto magnifico senhor, o senhor dom Nuno da Cunha capitão ao galees do muyto poderoso rey de Portugal dom lohão o terceyro. Coimbra: Iohão Aluerez Emprimidor del Rey, 1555.

Oliveira, Fernão de [Fernando]. Grammatica da lingoagem portuguesa. Lisboa, em casa de Germão Galharde, 1536.

Oliveira, Fernando. Hestorea de Portugal. Paris, Biblioteca Nacional, Fond Portugais, n,° 12. Editado em Franco, José Eduardo, O Mito de Portugal. A Primeira História de Portugal e a sua Função Política. Lisboa, Fundação Maria Manuela e Vasco de Albuquerque d’Orey/Roma Editora, 2000, pp. 349-494.

Oliveira, Fernando. Liuro da fabrica das naos. Lisboa, Biblioteca Nacional – Reservados, Cod. 3702. Editado em Henrique Lopes de Mendonça, O Padre Fernando Oliveira e a Sua Obra Náutica. Memória, comprehendendo um estudo biographico sobre o afamado grammatico e nautographo, e a primeira reproducção typographica do seu tratado inédito Livro da Fabrica das Naus. Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1898, pp. 149-221.

Oliveira, Fernando. “Viagem de fernão de magalhães, escripta por hu homem que foy na companhia”, In Marcus de Jong, Um roteiro inédito da Circunnavegação de Fernão de Magalhães. Coimbra: Faculdade de Letras-Publicações do Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, 1937.

Bibliografia sobre o biografado

Albuquerque, Luís de. “Fernando Oliveira. Um português genial aventureiro e insubmisso”, In Navegadores Viajantes e Aventureiros Portugueses. Sécs. xv e xvi, vol. ii. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, pp. 128-142.

Bourdon, Léon. “Épisodes inconnues de Ia vie de Fernando Oliveira”, Revista Portuguesa de História, t. v. Coimbra, 1951, pp. 439-453.

Domingues, Francisco Contente. «Fernando Oliveira crítico de Pedro Nunes», Oceanos, n.° 49 (2002), pp. 86-94. 

Domingues, Francisco Contente. Os navios do mar oceano. Teoria e empíria na arquitectura naval dos séculos XVI e XVII. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004.

Morais, Carlos [coord.]. Fernando Oliveira, um humanista genial. V centenário do seu nascimento. Aveiro, Universidade de Aveiro – Centro de Línguas e Culturas, 2009.

Ciera, Francisco António

Lisboa, 15 junho 1763— Lisboa, 6 abril 1814

Palavras-chave: carta geral do reino, geodesia, telegrafia visual, triangulação.

DOI: https://doi.org/10.58277/NQEJ5591

Francisco António Ciera nasceu em Lisboa, em 15 de junho de 1763. Seu pai, Miguel António Ciera, era um engenheiro do Piemonte, que viera para Portugal para integrar a delegação científica portuguesa que participou na delimitação de fronteiras da América do Sul. Estas foram acordadas entre Espanha e Portugal, através do Tratado de Madrid de 1750-1751. Alguns autores referem que Francisco era italiano, pelo facto de ter herdado o apelido do seu pai. Após ter terminado os trabalhos no Brasil, Miguel Ciera foi convidado para dirigir os estudos no Colégio dos Nobres, fundado pelo Marquês de Pombal em 1761. Devido a esta proximidade ao Ministro de D. José, os padrinhos de batismo de Francisco Ciera foram a condessa de Oeiras, mulher do marquês de Pombal, e Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão deste, que na altura desempenhava funções de Ministro e Secretário de Estado da Marinha.

Francisco Ciera começou, muito jovem, a acompanhar o pai nas observações astronómicas que este fazia. Com dezoito anos concluiu a sua formação em matemática, na Universidade de Coimbra. Quando Miguel Ciera faleceu, o filho foi o seu sucessor na cadeira de Astronomia e Navegação que ele ministrava na Academia Real de Marinha. Além da docência de matérias ligadas à astronomia continuou a fazer inúmeras observações astronómicas. Foi responsável, em conjunto com Custódio Gomes de Vilas Boas e com Garção Stockler, pela publicação das Efemérides Náuticas, a partir de 1788. Esta publicação, que continha tabelas com diversos valores astronómicos era imprescindível para os praticantes da navegação, especialmente para a determinação da longitude, que envolvia uma série de cálculos bastante complexos. Esses cálculos eram feitos previamente em terra firme, por matemáticos treinados. Naquela altura, as Efemérides Astronómicas eram elaboradas com base em publicações estrangeiras, nomeadamente no Nautical Almanach, publicado em Inglaterra desde 1767. Ainda no campo da astronomia foi um dos responsáveis pela edição portuguesa do famoso Atlas Celeste de Flamsteed.

Francisco Ciera foi um dos membros fundadores da Sociedade Real Marítim, criada por D. Rodrigo de Sousa Coutinho para proceder ao levantamento de cartas hidrográficas e topográficas do território e dos mares frequentados pelos Portugueses. Esta sociedade, que integrava muitos elementos da elite intelectual da época, promoveu a publicação de diversos trabalhos de carácter científico redigidos pelos seus membros. Entre esses contam-se vários textos da autoria de Francisco António Ciera: Exposição das observações e seus resultados sobre a determinação dos principais portos, e cabos da costa de PortugalApontamentos para as observações das marésDeterminação da marcha do Timekepeer (nº 66) d’ArnoldInformação sobre a notícia do Baixo visto pelo capitão Woley. O primeiro daqueles trabalhos foi premiado pela Sociedade Real Marítima, estando Ciera entre os primeiros a receber tão alta distinção. 

Francisco António Ciera foi escolhido pelo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. Luís Pinto de Sousa Coutinho, para levar a cabo os trabalhos necessários para a elaboração da Carta Geral do Reino. Para realizar as operações de triangulação, necessárias para o levantamento geodésico do reino, teve como adjuntos Pedro Folque e Carlos Frederico Caula, ambos oficiais do Exército. Além das tarefas necessárias à publicação da dita carta, Ciera queria também realizar algo com interesse para a ciência a nível mundial. Aproveitando a rede de triangulação que iria estabelecer, como base para a geodesia nacional, tencionava efetuar cálculos que pudessem contribuir para um melhor conhecimento da forma da Terra.

Estavam também entre os seus objetivos realizar os trabalhos de campo e os cálculos necessários para a medição de um grau de meridiano. Para isso deveria medir um arco de aproximadamente sete graus, entre o Cabo Ortegal, na Galiza, e o Cabo de São Vicente. Tencionava ainda fazer a ligação das triangulações de Espanha e de Portugal com as de França e de Inglaterra, contribuindo deste modo para uma melhor descrição geométrica da Europa. Os primeiros passos desta tarefa tinham sido dados recentemente, por diversos cientistas que tinham conseguido a ligação geodésica entre os Observatórios de Paris e de Greenwich.

Os trabalhos de campo, para reconhecimento dos pontos a escolher para a rede de triangulação iniciaram-se em outubro de 1790. Deles nos deixou o próprio Ciera um relato intitulado Viagem Geográfica & Astronómica pelo Reino de Portugal para a Construção da Carta Topográfica e Determinação do Grau do Meridiano. Este texto foi por ele apresentado numa reunião da Academia Real das Ciências. Nele são descritos com algum detalhe a sequência das observações, os valores conseguidos e os cuidados a ter na sua obtenção, assim como as dificuldades sentidas, numa época em que as vias de comunicação eram praticamente inexistentes. As dificuldades eram agravadas pelo facto de que, para proceder a uma boa triangulação, as observações deveriam ser feitas em locais bastante elevados, onde as condições de acessibilidade eram bastante complicadas. Os trabalhos de reconhecimento estenderam-se até à Galiza, onde Ciera se dirigiu no final de 1791, acompanhado por oficiais espanhóis. Os reconhecimentos levados a cabo permitiram a Ciera publicar a Carta dos pontos da série de triângulos para a medida do grau do meridiano entre os paralelos 37º e 45º 15’ de latitude N.

Definidos os pontos que constituíam a rede geodésica, iniciou, em 1793, os trabalhos de triangulação. Mediu uma primeira base, Batel-Montijo. Um dos problemas com que se deparou foi a inexistência de uma unidade padrão para medida de comprimento. Definiu ele próprio uma unidade que ficou conhecida como braça de Ciera. Precisava, igualmente, de um instrumento de medida, para determinar com rigor o comprimento da base. Recorreu a um dos seus mestres da Universidade de Coimbra, Monteiro Rocha. Este último concebeu umas réguas de precisão, para medir as bases da rede de triangulação. Com essas réguas, Ciera mediu a base de Batel-Montijo e mais tarde, em 1796, a de Buarcos-Monte Redondo. Esta última, maior que a primeira, ficou como base de operações, enquanto a anterior ficou como base de verificação.

Simultaneamente, começou, em 1793, a determinar os ângulos entre os diversos vértices da rede. Para tal usou um círculo repetidor Adams, encomendado em Londres. Estes trabalhos decorreram durante cerca de dez anos, não tendo sido possível medir com rigor todos os ângulos previstos, pois os mesmos implicavam observações de grande precisão, entre pontos bastante afastados entre si. Em 1803, os trabalhos foram interrompidos, por ordem do governo, devido à guerra que grassava na Europa e que se refletia em Portugal. Os trabalhos estiveram interrompidos até à década de 1830. Com o fim da Guerra Civil, o governo liberal decidiu retomar os trabalhos iniciados por Ciera. Para tal, encarregou Pedro Folque, que ainda era vivo na época, tendo este contado com a colaboração de seu filho, Filipe Folque, que acabou por ser o principal obreiro da concretização do levantamento geodésico do reino.

A interrupção dos trabalhos geodésicos está também relacionada com a atribuição de uma outra tarefa a Ciera, a implementação de um sistema de telegrafia visual, para comunicação com os navios a navegar nos portos, e nas suas imediações, para comunicação entre tropas em terra firme e ainda para assegurar as comunicações entre os diferentes palácios onde a família real costumava estar: Ajuda, Mafra, Queluz e Salvaterra. Existem documentos que mostram que em 1803 já se dedicava a estas tarefas, continuando a receber uma gratificação que lhe fora atribuída para realizar os trabalhos geodésicos. Ciera conhecia bem vários dos sistemas de telegrafia visual, em uso na Europa. No entanto, sugeriu ele próprio dois sistemas diferentes, um de ponteiro e outro de persianas. Qualquer deles permitia a transmissão de um número reduzido de sinais individuais, geralmente identificados por um algarismo. Ciera propôs publicou um vocabulário de sinais, no qual apresentava cerca de dez mil sinais numéricos diferentes, e respetivo significado, para uso com o telégrafo de ponteiros. Em 1810 foi criado o Corpo Telegráfico, sendo Ciera o seu primeiro diretor.

Ciera foi membro da Academia Real das Ciências de Lisboa. Na homenagem que lhe foi prestada naquela academia, quando faleceu, foi realçado o facto de ter consagrado grande parte da sua vida à utilidade do Estado. No discurso de homenagem foram lembrados os seus trabalhos de geodesia, o desenvolvimento do telégrafo e as observações astronómicas que efetuou e cujos resultados a Academia publicou.

O seu nome ficou gravado num dos ex-libris da geodesia e da topografia, um marco geodésico,.no ponto mais elevado de Portugal continental, no cimo da Serra da Estrela. Aqui se encontra a seguinte inscrição:

O principe regente n. S. Mandou fazer esta pyramide de pa o levantam.to da carta geral do reino de baixo da dereção do dr fra.co ant.o ciera 1802.

António Costa Canas
Escola Naval/ CINAV/ CH-ULisboa

Obras 

Ciera, Francisco António, Atlas celeste, arranjado por Flamsteed; publicado por J. Fortin ; correto, e aumentado por Lalande, e Mechain; trasladado em linguagem de Ordem de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente N.S. para instrução da Mocidade, Primeira edição portuguesa, revista, e correta pelo Doutor Francisco António Ciera, e pelo Coronel Custodio Gomes Villas-Boas. Lisboa: Impressão Régia, 1804.

Ciera, Francisco António, Carta dos pontos da série de triângulos para a medida do grau do meridiano entre os paralelos de 37º e 43º 45′ de latitude N : por ora escolhidos na primeira visita geral do terreno feita nos meses de Outubro de 1790, Abril, Maio, Setembro e Outubro de 1791, escala: c. 1:2 000 000, impressa pela Sociedade Real Marítima, 1803.

Ciera, Francisco António, Carta dos principais triângulos das operações geodésicas de Portugal, escala: c. 1:1 800 000, impressa pela Sociedade Real Marítima, 1803.

Ciera, Francisco António, Regimento de signaes para os annuncios das circunstancias mais notáveis da navegação dos navios que se avistão do Cabo da Roca e dos que entrarão ou sahem do porto de Lisboa, Manuscrito / feito por ordem de S.A.R. o Príncipe Regente Nosso Senhor pelo Doutor Francisco António Ciera, lente proprietário da cadeira de navegação na Academia Real da Marinha, 1803. Biblioteca Central da Marinha, RDf4-16.

[Ciera, Francisco António], Tábuas telegráficas, Lisboa: Impressão Régia, 1810.

Ciera, Francisco António, Viagem Geográfica & Astronómica pelo Reino de Portugal para a Construção da Carta Topográfica e Determinação do Grau do Meridiano, Manuscrito / Arquivo Histórico Militar, 4ª Divisão, 1ª Secção, Caixa 16, nº 21.

Bibliografia sobre o biografado

Dias, Maria Helena. ”As explorações geográficas dos finais de Setecentos e a grande aventura da Carta Geral do Reino de Portugal”. Revista da Faculdade de Letras – Geografia, I série, vol. XIX, Porto: 2003, pp. 383-396.

Luna, Isabel de, Sousa; Leal,  Ana Catarina; Sá, , Rui.  “Telegrafia Visual na Guerra Peninsular. 1807-1814”.  Boletim Cultural, 2008. Mafra: Câmara Municipal de Mafra, 2009, pp. 67-141.

Mendes, H. Gabriel. “Francisco António Ciera, renovador da Cartografia portuguesa»”. Geographica. Lisboa: [s.n.], 3, 1965, p. 11-25.

Moreira, Luís Miguel Alves de Bessa. Cartografia, Geografia e Poder: o Processo de construção da imagem cartográfica de Portugal, na segunda metade do século XVIII. Dissertação de doutoramento: Universidade do Minho, 2013).

Lavanha, João Baptista

Lisboa (?), ca. 1555 — Madrid, 31 março 1624

Palavras-chave: Construção naval, Cosmógrafo-mor, Engenheiro-mor, Ciência Náutica.

DOI: https://doi.org/10.58277/SLYU8626

Os dados disponíveis sobre os primeiros anos da vida de João Baptista Lavanha são escassos. Deve ter nascido em Lisboa, por volta de 1555. Oriundo de uma família da nobreza, era filho de Luís Lavanha, escudeiro da corte, e de Jerónima Dácia. Na sua família existiam origens judaicas e raízes em Génova. Também pouco se sabe sobre a sua formação. Vários autores referem que D. Sebastião o teria enviado para estudar em Roma, no entanto, a origem desta informação é pouco consistente. Igualmente são pouco sólidas as referências à possibilidade de ter sido aluno de Pedro Nunes.

A sua carreira de matemático terá começado no reinado de D. Sebastião, provavelmente como professor, na corte. É o próprio Lavanha que refere, no seu testamento, que esteve ao serviço de D. Sebastião e dos Filipes. Quando Filipe II se tornou rei de Portugal, Lavanha deveria gozar já de alguma notoriedade, pois o monarca não hesitou em nomeá-lo para lente de matemática da recém-criada Academia de Matemáticas de Madrid. A Academia foi fundada em finais de 1582 e Lavanha foi o seu primeiro professor de matemática.

A primeira estadia de Lavanha em Madrid começou no início de 1583. Em outubro desse mesmo ano passou a ministrar uma aula de matemática. Lavanha gozava de alguns privilégios em relação aos outros professores. As aulas eram dadas em vernáculo, pelo que era necessário traduzir vários textos clássicos para apoio das mesmas. Lavanha estava dispensado dessa tarefa, o que constituía uma exceção no contexto da Academia. Auferia o segundo vencimento mais elevado entre os professores da mesma, vencendo o dobro daquilo que era recebido por um professor catedrático da universidade. Só Juan de Herrera, o fundador da Academia, ganhava mais que Lavanha. Entre os seus alunos teria algumas figuras de relevo da cultura espanhola. Sabe-se que foi professor de Lope de Vega. Existem alguns autores que referem que teria sido também professor de Cervantes, mas existem muitas dúvidas neste caso, por falta de documentação que o confirme.

Quanto aos conteúdos das suas aulas, Lavanha ensinava essencialmente assuntos relacionados com náutica. As matérias dessas aulas são conhecidas através dos apontamentos manuscritos, que começam com as palavras: Tratado del Arte de Navegar, redigidos por um aluno italiano, Camillo Madea. Nota-se que a grande maioria dos assuntos expostos coincidem com ideias divulgadas por Pedro Nunes nas obras que publicou.

Ainda durante a sua estadia em Madrid foi nomeado engenheiro do reino de Portugal, o que lhe acrescentava duzentos cruzados ao seu vencimento. A escolha dele para este cargo ocorreu em 1586. Apesar de na altura não viver no reino de Portugal, a sua competência dizia respeito apenas a este.

Entretanto, em 1591 regressou a Lisboa, onde permaneceu até 1599, ou 1600, existindo elementos contraditórios sobre o ano em que realmente regressou a Madrid. Lavanha veio tomar conta do cargo de cosmógrafo-mor. Após a morte de Pedro Nunes, em 1578, o cargo foi ocupado por Tomás de Orta. Este já era bastante idoso quando assumiu a função, pelo que a sua atividade foi bastante reduzida. Lavanha começou por ser seu adjunto, em 1591, tendo assumido a titularidade do cargo em 10 de julho de 1596. A sua primeira tarefa foi preparar a reforma do Regimento do Cosmógrafo-mor. O primeiro regimento datava de 1559, quando o cargo era ocupado por Pedro Nunes. Embora se desconheça o texto daquele regimento, consegue-se deduzir muito do seu conteúdo a partir do regimento de 1592, redigido segundo orientações de Lavanha.

Uma explicação para a vinda de Lavanha para Portugal pode ser o facto de o monarca desejar que o cargo de cosmógrafo-mor fosse ocupado por alguém da sua confiança. Outra possibilidade aponta para problemas que teve na corte, pelo facto de ser cristão-novo. O próprio Lavanha informa que veio para Portugal por ordem de Filipe II, podendo tal ter sucedido porque o rei queria afastá-lo do ambiente hostil em que vivia. Quando o rei morreu, Lavanha regressou a Madrid. Durante a sua estadia em Portugal casou com D. Leonarda de Mesquita, com quem teve vários filhos. 

Como cosmógrafo-mor foi responsável pelo primeiro “manual de navegação”, na forma impressa, com conteúdos adequados à prática dos pilotos. O Regimento Náutico, que conheceu duas edições, em 1595 e 1606, continha as regras práticas de navegação, que circulavam manuscritas, entre os pilotos, nos chamados “Livros de Marinharia”. Lavanha refere, nos proémios da obra, que o seu texto não se destina a matemáticos, sendo dedicado aos práticos do mar e portanto os seus conteúdos são adequados aos conhecimentos destes, simplificando diversos procedimentos, para os tornar acessíveis aos pilotos.

Durante a sua estadia em Lisboa foi responsável pelo exame de diversos pilotos e mestres de navios, assim como pela certificação de cartas e instrumentos náuticos. Esta era uma das principais incumbências do cosmógrafo-mor, responsável por garantir que os principais oficiais de mar eram competentes nas suas funções. Dirigiu trabalhos de levantamento hidrográfico da barra do Tejo, para controlar se a mesma estava a assorear. Por volta de 1600 voltou para Madrid ficando em terras espanholas praticamente o resto da sua vida, regressando apenas uma vez a Portugal. Apesar disso manteve sempre a titularidade do cargo de cosmógrafo-mor. No entanto, dada a sua ausência prolongada, em 1608 foi nomeado Manuel de Figueiredo como cosmógrafo-mor substituto. Pela morte deste em 1622, foi escolhido Valentim de Sá, para o mesmo cargo.

Por volta de 1600 redigiu o Livro Primeiro de Arquitetura Naval. O texto encontra-se na Real Academia de la Historia de Madrid. É o segundo texto escrito em português sobre construção naval, o primeiro foi o Livro da Fábrica das Naus, de Fernando Oliveira. A data exata da redação do manuscrito de Lavanha não se conhece. No entanto, em 1597 Lavanha escreveu o relato de um naufrágio: Naufrágio da nau “S. Alberto”, que veio a ser incluído na História Trágico Marítima. Mais ou menos na mesma altura redigiu ainda um parecer sobre o mesmo naufrágio. Nestes dois textos aborda diversas questões relacionadas com construção naval. Diversas evidências apontam para que o Livro Primeiro de Arquitetura Naval tenha sido escrito mais ou menos na mesma altura, uma vez que existe uma ligação entre os três textos. 

No início do século XVII, Lavanha foi enviado à Flandres, ao serviço do monarca, para recolher elementos de cariz histórico. Nesta primeira década de Seiscentos terá levado a cabo tarefas bastante diversificadas. Em 1606 iniciou os trabalhos tendentes a assegurar a navegabilidade do rio Douro, do seu afluente Pisuerga, e do Esgueva, afluente deste último e que nele desagua em Valhadolid. Se o projeto se tivesse concretizado, ficava garantida a navegação desde esta cidade castelhana até ao mar. Durante a realização deste projeto, Lavanha viveu em Valhadolid, existindo diversos documentos seus assinados neste local. 

Apesar de Lavanha viver fora do reino de Portugal, a sua ligação a este era bastante forte. No mesmo ano de 1606 passou a estar ao serviço do Duque de Aveiro, mantendo esta relação por vários anos. Também desta primeira década de 1600 são dois pareceres, adiante explicados, onde assume claramente uma postura a favor dos interesses de Portugal, em oposição aos de Castela. Tal facto não diminuiu a consideração que o monarca tinha por ele. Por volta de 1607 recebeu o hábito de Cristo, a que correspondia uma tença de 20 000 réis. Numa carta real datada de 10 de Abril de 1607 é mencionada a necessidade de uma dispensa para lhe atribuir esta mercê, uma vez que Lavanha era descendente de “nação hebraica”.

O primeiro dos pareceres acima mencionados prende-se com a validade de um processo proposto por Luís da Fonseca Coutinho para determinação da longitude no mar a partir do valor da declinação magnética. No início do século XVI tinha sido desenvolvida uma hipótese que defendia a existência de uma correlação entre longitude e declinação magnética. Conhecendo esta última podia determinar-se aquela. A mais antiga explicação desta teoria aparece no “Tratado da Agulha de Marear” de João de Lisboa. Apesar de D. João de Castro ter demonstrado, na sua viagem de 1538 para a Índia, que este método estava errado, o mesmo continuou a ter vários defensores. Foram apresentadas inúmeras propostas para encontrar a longitude pela “agulha fixa”.

Luís da Fonseca Coutinho apresentou, por volta de 1605, na corte de Madrid, uma solução para o problema da longitude, que se baseava no pressuposto acima referido. Foi nomeada uma comissão para avaliar esta proposta, sendo Lavanha um dos seus membros. O cosmógrafo-mor foi um acérrimo defensor da validade da mesma. Diversos autores consideram que tal aconteceu porque o proponente era português. Foi realizada uma viagem de Acapulco a Manila, para testar o processo, não dando, obviamente, os resultados esperados. Com o passar do tempo, Lavanha deixou de defender esta teoria.

A outra questão onde Lavanha assume uma atitude de defesa dos interesses de Portugal, está relacionada com a localização das ilhas Molucas. O Tratado de Tordesilhas dividiu o mundo em duas esferas de influência, uma portuguesa e outra para Castela e Aragão. O tratado definia apenas um meridiano que passava 370 léguas a Oeste de Cabo Verde. No entanto, importava saber qual era o limite no “outro lado” do mundo, ou seja, onde passava o “antimeridiano” de Tordesilhas. O arquipélago das Molucas, no Pacífico, situa-se nessa zona. Sendo as ilhas ricas em especiarias, era importante definir se as mesmas pertenciam a Portugal ou a Castela/Aragão. O objetivo da viagem de Fernão de Magalhães era demonstrar que as mesmas pertenciam a Castela, mas foi inconclusiva a esse respeito. A questão foi resolvida pelo Tratado de Saragoça, de 1529, ficando Portugal com o direito às ilhas, mediante o pagamento de um determinado valor.

Em 1606 a questão reacendeu-se, apesar de ambos os reinos terem o mesmo monarca. Uma esquadra luso-castelhana expulsou os holandeses da ilha de Ternate, surgindo a dúvida sobre quem deveria ocupar as mesmas, se os portugueses ou os castelhanos? Foi então pedido um parecer a Lavanha sobre a localização das ilhas. Entretanto, nesse mesmo ano de 1606, Andrés García de Cespedes publicara a sua Hidrografia, segunda parte do seu Regimiento de navegación, onde defendia que as Molucas estavam no hemisfério de Castela. O parecer de Lavanha procurou rebater a opinião de Céspedes. Para tal indicou as distâncias percorridas até chegar ao arquipélago, baseando-se em dados fornecidos por pilotos e usando inclusivamente alguma informação do próprio Céspedes.

No início do século XVII surgem dois conceitos importantes para a náutica, que geralmente são atribuídos a Lavanha: as tabelas de amplitudes e os troncos particulares de léguas. Seguidamente serão explicados ambas as ideias e os eventuais contributos de Lavanha.

O conhecimento da declinação magnética em cada local era uma das preocupações dos pilotos, pelo menos a partir do início do século XVI. Por esse motivo foram sugeridas diferentes propostas para a sua determinação, nomeadamente pela observação da direção da estrela Polar, ou então da bissetriz do ângulo formado pelas direções do Sol no nascimento e ocaso, o que implicava duas observações consecutivas do Sol, uma em cada um daqueles momentos.

No entanto, a declinação magnética pode ser conhecida fazendo apenas uma observação do Sol, no nascimento ou no ocaso. Este astro nasce numa direção próxima de Leste e põe-se aproximadamente a Oeste. Chama-se amplitude (ortiva, no nascimento; ou occídua, no ocaso) ao ângulo entre o nascimento, ou ocaso do Sol, e a direção Leste ou Oeste. O valor da amplitude varia em função da latitude do observador e da declinação do Sol. Pedro Nunes explicou esta relação e ensinou a calcular o valor da amplitude.

Nunes não apresentou tabelas com valores da amplitude, mas no início do século XVII passaram a ser comuns estas tábuas em textos de navegação, destinados a pilotos. Não se pode confirmar que as primeiras tabelas tenham sido calculadas por Lavanha. No entanto, num regimento para uma viagem realizada em 1608, surge a indicação de que deveriam ser usadas tábuas por ele calculadas. O referido regimento contém uma série de instruções para que o licenciado Gaspar Jorge do Couto realizasse diversas experiências numa viagem para o oriente. Algumas dessas experiências destinavam-se a testar a proposta de Luís da Fonseca Coutinho, portanto era fundamental o conhecimento da declinação magnética.

No mesmo regimento, dado ao referido licenciado, surge a indicação que deveria usar os troncos particulares de léguas que Lavanha lhe dera. A partir desta referência, alguns autores atribuíram a Lavanha a invenção dos troncos. Não existe nenhuma evidência de que tenha sido ele o primeiro a propô-los. Os troncos já aparecem explicados num texto de García de Céspedes, datado de 1606. O que importa reter é que praticamente na mesma altura, Lavanha conhecia esta técnica inovadora e propôs a sua utilização.

O que eram os troncos particulares de léguas? As cartas apresentam sempre distorções, resultantes da planificação de uma superfície esférica. Nesta superfície, os meridianos convergem todos nos polos e esta convergência não era considerada nas cartas da época dos descobrimentos. Estas possuíam sempre uma escala graduada, conhecida por tronco (ou petipé) das léguas, que servia para marcar as distâncias percorridas, em qualquer direção. No entanto, devido à convergência dos meridianos, a distância entre quaisquer dois destes meridianos vai diminuindo conforme a latitude aumenta. Pedro Nunes identificou estes problemas e sugeriu a forma de os ultrapassar. Em 1569, Mercator apresentou o primeiro mapa na projeção que recebeu o seu nome e que considerava a convergência dos meridianos. Contudo, o processo de introdução desta projeção na náutica foi lento, pois a mesma implicava uma mudança significativa da prática dos pilotos. Estes preferiam usar alternativas que permitiam minimizar os erros na marcação de distâncias, sem necessitarem de alterar o modo como conduziam os navios. Os troncos particulares de léguas consistiam num conjunto de escalas, destinadas a marcar a distância navegada ao longo dos paralelos, variando o comprimento das escalas em função da latitude. 

Em 1610 iniciou os trabalhos de campo para a elaboração do Mapa de Aragão, tendo terminado os mesmos no ano seguinte. O mapa corresponde a um desejo antigo das elites daquele reino. O manuscrito do mapa foi entregue em 5 de setembro de 1615, sendo aprovado em abril de 1616. Lavanha iniciou logo a gravação do mapa em sua casa. Dadas as inúmeras ocupações de Lavanha, o processo demorou bastante tempo, tendo motivado protestos por parte dos deputados de Aragão. No entanto, foi uma obra exemplar, tendo conhecido onze edições até 1777. Durante a execução dos trabalhos de campo, Lavanha recolheu dados para elaboração de um Itinerario del Reino de Aragón. O original manuscrito, redigido em português, perdeu-se mas existe uma cópia também manuscrita do mesmo. Em 1895 foi publicado com o texto em castelhano.

Mais ou menos na mesma altura em que terminou a versão manuscrita do Mapa da Aragão, em 1615, assumiu a finalização da Década Quarta de João de Barros. Nesta obra incluiu cartas de Java, Guzerate e Bengala. As mesmas foram elaboradas com base em dados obtidos por via indireta, pois não se tem notícia que Lavanha alguma vez tenha saído da Europa. 

Além da Academia de Matemáticas, Lavanha também deu aulas particulares na corte, nomeadamente aos príncipes reais e a outros notáveis da nobreza. Alguns dos seus textos manuscritos foram redigidos para apoio das referidas lições.

Além dos estudos no âmbito da matemática, cosmografia, náutica, cartografia e engenharia, Lavanha também se dedicou a questões nos campos da história e da genealogia. Esta faceta destacou-se especialmente nos anos finais da sua vida. Em 1618 foi nomeado cronista-mor do reino de Portugal, e a partir daí os seus textos centram-se nestas temáticas, embora já anteriormente tivesse feito investigações nessas áreas, normalmente por solicitação daqueles que patrocinavam os seus trabalhos. Foi na qualidade de cronista-mor que, em 1619, regressou a Portugal, acompanhando Filipe III (segundo de Portugal) na viagem que este fez a este reino, tendo publicado, em 1622, uma descrição dessa viagem. 

Lavanha morreu em Madrid, no derradeiro dia de março de 1624.

António Costa Canas

Obras

Lavanha, João Baptista. Descripcion del universo. Madrid, Biblioteca Nacional de Madrid, Códice 09251.

—. Juan Bautista Lavaña, Itinerario del Reino de Aragon. Ed. por Faustino Sancho y Gil. Zaragoza: Diputaciôn Provincial de Zaragoza, 1895.

—. Regimento náutico. Lisboa: Em casa de Simão Lopes, 1595.

—. Regimento que deve guardar o L.do Gaspar Jorge do Couto na viagem que ora vay fazer a India por mandado de Sua Mag.de. Lisboa, Biblioteca da Ajuda, Códice 51-VII-11, fls. 84-86.

—. Regimento das agulhas fixas de Luis da fonseca Coutinho. Lisboa, Biblioteca da Ajuda, Códice 51-VII-11, fls. 63-63vs.

—. Regimento do que ha de fazer o Piloto que for a India na Nao Hollandesa. Lisboa, Biblioteca da Ajuda, Códice 51-VII-11, fls. 91-91vs.

—. Regimento do Instrumento pa saber por elle a altura a qualquer ora do dia, que aja sol. Lisboa, Biblioteca da Ajuda, Códice 51-VII-11, fls. 63vs-64.

—. Regimento que parece se deve guardar no descobrimento e descripção da costa do cabo negro té o de boa esperança. Lisboa, Biblioteca da Ajuda, Códice 51-VII-11, fls. 160-161.

—. [Resposta de João Baptista Lavanha ao papel que deu Gaspar Manuel sobre a agulha fixa, datada de 15 de Fevereiro de 1608]. Madrid, Real Academia de la Historia, Colecção Salazar y Castro, Mss. N63, fls. 29-32.

—. Tratado del arte de navegar. Madrid, Biblioteca do Palácio Nacional, Códice 1910, fls. 20-45.

Bibliografia sobre o biografado

Canas, António Costa. “A obra náutica de João Baptista Lavanha (c. 1550-1624)”, Dissertação de doutoramento, Universidade de Lisboa, 2012.

Domingues, Francisco Contente. “João Baptista Lavanha e o ensino da náutica na Península Ibérica”.In As novidades do mundo. Conhecimento e representação na Época Moderna. Maria da Graça Mateus Ventura e Luís Jorge Semedo de Matos [org.] Lisboa: Edições Colibri, 2003, pp. 115–143.

Domingues, Francisco Contente. Os navios do mar oceano. Teoria e empíria na arquitectura naval dos séculos XVI e XVII. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004.

Esteves, Carina Raquel Antunes. “O Livro Primeiro de Architectura Naval de João Baptista Lavanha e a arquitectura naval ibérica no final do século XVI, princípios do XVII: o perfil do arquitecto naval”, Dissertação de mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2011.Mota, Avelino Teixeira da, “O cartógrafo João Baptista Lavanha e a sua obra”. In Portugaliae Monumenta Cartographica. Vol. IV. Lisboa: Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 1960, pp. 63–68.