Faleiro, Rui (Ruy Falero, Rui Falero, Rodrigo Faleyro)

n. Covilhã?  — 1544                                                       

Palavras-chave: Expansão marítima, navegação, cosmografia, Sevilha. 

DOI: https://doi.org/10.58277/LHYY8202

Rui Faleiro foi um cosmógrafo português do século XVI que, como o seu irmão Francisco Faleiro, trabalhou para a Coroa espanhola desde 1517, ou 1518, até ficar doente, facto que aconteceria pouco tempo depois. Rui partiu para Espanha com o grupo de portugueses, liderado por Fernão de Magalhães, que apresentou ao rei espanhol Carlos I (também conhecido como Carlos V do Sacro Imperio Romano Germânico) o projeto de circum-navegação do globo que acabaria por se materializar entre 1519 e 1522. Os irmãos Faleiro, e especialmente Rui, ocuparam um papel fulcral na preparação científica desta viagem. 

Rui Faleiro teve uma considerável reputação como perito em temas técnicos relacionados com a cosmografia e a navegação, assim como com a construção de instrumentos náuticos, tais como astrolábios e quadrantes. Escreveu ainda alguns documentos sobre O Regimento da Altura de Leste-Oeste para a expedição de Magalhães. Embora existam poucos dados sobre a sua vida, sabemos que pertenceu à Ordem de Santiago, que foi casado com a portuguesa Eva Alonso e que sofreu, ao pouco de chegar a Sevilha, duma aguda doença mental. Segundo as crónicas da altura, e outra documentação de arquivo, Rui tornou-se mentalmente insano pois “tinha perturbadas as suas faculdades mentais” e andava “fora do seu juízo natural” pouco tempo antes da partida da viagem, motivo pelo qual acabou por ficar em Sevilha com o seu irmão, que passaria a tomar conta dele. Argensola escreveu que, uma vez perdido seu o juízo, Rui ficou na casa dos loucos de Sevilha. No seu lugar embarcou o piloto Andrés de San Martín.

A doença de Rui propiciou um amargo confronto entre a sua mulher, Eva Alonso, e o seu irmão Francisco. Os dois mantiveram um litígio que demorou vários anos no qual ambos lutaram para cuidarem do doente, assim como para disporem da sua pensão anual, que atingia os 50.000 maravedís (antiga moeda espanhola) pelos serviços prestados à Casa de la Contratación, e outros direitos económicos derivados, por exemplo, da Ordem de Santiago. Se desconhece o facto pelo qual o cartógrafo da Casa e compatriota dos Faleiro, Diogo Ribeiro, testemunhou neste conflito em favor de Eva Alonso. A discórdia esteve aberta grande parte da década dos anos vinte do século XVI. 

Os diversos documentos que hoje se podem consultar sobre a primeira volta ao mundo capitaneada por Magalhães colocam Rui Faleiro como um dos principais capatazes técnicos da preparação da viagem. Esta ideia fica confirmada quando lemos, nos papéis relativos às despesas que a Coroa gastou em cartas náuticas e em outros instrumentos náuticos, que Rui ordenou a Nuño García de Toreno a construção de sete cartas de marear para a viagem. García de Toreno foi uns dos primeiros cartógrafos da Casa de la Contratación de Sevilha e, sem dúvida, o principal fabricante de cartas para a expedição de 1519. Além deste dado, vários cronistas espanhóis da altura como Bartolomé de las Casas, Antonio de Herrera ou Bartolomé Leonardo de Argensola se referiram à autoridade científica de Rui nas suas obras quando escreveram sobre o material científico que Magalhães levava consigo para persuadir a Carlos V dos efeitos positivos da sua viagem. Segundo as palavras de Argensola no seu livro Conquista de las islas Malucas (1609), Magalhães tentou convencer o rei espanhol apoiando-se “nos escritos e autoridade de Ruy Faleiro português, astrólogo judiciário”. 

No que respeita aos “escritos,” Argensola talvez se referisse aos trabalhos de Faleiro sobre o regimento da altura de leste-oeste. Além de encarregar, e ele próprio construir, instrumentos para a viagem, Rui trabalhou também na composição de um regimento onde propunha diferentes procedimentos para a determinação da longitude, um dos problemas que, juntamente com o problema da declinação magnética, mais preocupavam a expedição e ao próprio Faleiro. Nos documentos pertencentes a Rui Faleiro, conservados no Archivo General de Indias, e que o historiador Avelino Teixeira da Mota estudou, o cosmógrafo português ofereceu três métodos diferentes para o cálculo da longitude, isto é, através da declinação da agulha, por meio da latitude da Lua, e pelas conjunções e oposições da Lua com o Sol e com outros astros.

A documentação existente revela ainda um outro problema pessoal de Rui Faleiro, desta vez com a justiça portuguesa. Numa viagem ao seu país para visitar os seus pais Rui foi preso por ordem do rei de Portugal. O facto de ter abandonado o seu país para prestar serviço a outra nação sobre assuntos tão politicamente sensíveis como expedições marítimas relacionadas com a expansão era considerado, segundo o regime monárquico da altura, alta traição. Rui dirigiu pessoalmente um pedido, numa carta em latim datada de 1520, ao Cardeal de Tortosa para que o rei de Espanha intercedesse por si. Finalmente, foi posto em liberdade, voltando depois a Sevilha, onde terá falecido em meados dos anos quarenta.   

Antonio Sánchez
Universidad Autónoma de Madrid

Arquivos

Sevilha, Archivo General de Indias

Indiferente, 737, N.15.; Indiferente, 415, L.1, f. 18v-20r; Indiferente, 421, L.12, f. 110r-110v; Indiferente, 421, L.11, f. 166v; Indiferente, 421, L.12, f. 156r-156v; Indiferente, 421, L.12, f. 18v-20r; Indiferente, 419, L.7, f. 797v-798r; Indiferente, 420, L.8, f. 127v-128r; Indiferente, 421, L.12, f. 311r; Indiferente, 1963, L.7, f. 191r-191v; Indiferente, 421, L.11, f. 296r-296v; Indiferente, 421, L.12, f. 132r-132v; Indiferente, 421, L.12, f. 70v (2); Indiferente, 1961, L.2, f. 7-8; Indiferente, 1952, L.1, f. 48v-49; Indiferente, 421, L.13, f. 279v-280r; Indiferente, 419, L.7, f. 741r-742r; Indiferente, 419, L.7, f. 779r-779v; Indiferente, 419, L.7, f. 709v; Indiferente, 420, L.9, f. 73r (1); Indiferente, 420, L.8, f. 38r-38v; Indiferente, 419, L.7, f. 710v; Indiferente, 420, L.8, f. 101v (2); Indiferente, 420, L.9, f. 73r (2).

Justicia, 1161, N.2; Justicia, 704, N.2.

Patronato, 34, R.3; Patronato, 34, R.12; Patronato, 34, R.22; Patronato, 251, R.11;Patronato, 34; Patronato, 276, N.3, R.69; Patronato, 34, R.19; Patronato, 34, R.8;Patronato, 34, R.7; Patronato, 34, R.1.

Contratación, 5784, L.1, F.29V; Contratación, 5090, L.4; Contratación, 5784, L.1, F.29.

Panamá, 233, L.1, f. 203r-203v; Panamá, 233, L.1, f. 249r.

Obras

Faleiro, Rui. O Regimento da Altura de Leste-Oeste de Rui Faleiro: Subsídios para o Estudo Náutico e Geográfico da Viagem de Fernão de Magahlães, d.- por Avelino Teixeira da Mota. Lisboa: Edições Culturais de Marinha, 1986.

Fernández de Navarrete, Martín. Colección de los viajes y descubrimientos que hicieron por mar los españoles desde fines del siglo XV, Tomo IV: 179–180. Madrid: Imprenta Real, 1825–37.

Bibliografia sobre o biografado

Argensola, Bartolomé Leonardo de. Conquista de las islas Molucas. Madrid: Alonso Martin, 1609. 

Laguarda Trias, Rolando A. “Las longitudes geográficas de la membranza de Magallanes y del primer viaje de circunnavegación.” In A viagem de Fernão de Magalhães e a questão das Molucas, ed. Avelino Teixeira da Mota, 135–178. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975.

Teixeira da Mota, Avelino. “O Regimento da altura de Leste-Oeste de Rui Faleiro.” Boletim Geral do Ultramar 28 (1953): 163–171. 

Teixeira da Mota, Avelino. “Contribuição dos irmãos Rui e Francisco Faleiro no campo da náutica em Espanha.” In A viagem de Fernão de Magalhães e a questão das Molucas, ed. Avelino Teixeira da Mota, 315–341. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975.

Toribio Medina, José. El descubrimiento del Océano Pacifico. Hernando de Magallanes y sus compañeros. Santiago de Chile: Imprenta Elzeviriana, 1920.

Reinel, Pedro

m. ca. 1542                                                                      

Palavras-chave: Cartografia, cartas de marear, escala de latitudes, declinação magnética, Sevilha. 

DOI: https://doi.org/10.58277/OJEU2913

Pedro Reinel foi um cartógrafo português cujos trabalhos foram desenvolvidos entre o último quartel do século XV e a primeira metade do século XVI. Com exceção de um conjunto muito reduzido de documentos, o seu nome vai aparecer sempre ligado às suas funções profissionais como perito em cartografia. Não são muitos os dados biográficos que se conhecem dele e é muito complicado estabelecer com exatidão a sua data de nascimento e morte. No entanto, ficaram vários trabalhos cartográficos da sua autoria (geralmente cartas náuticas) da maior relevância para a história da cartografia portuguesa e europeia no contexto da expansão ultramarina. Destes trabalhos, duas cartas foram assinadas por ele. As outras, que iremos mencionar ao longo desta biografia, foram-lhe atribuídas pelos especialistas. 

Embora um documento de 1519 diga que Pedro Reinel assim como o seu filho Jorge Reinel passaram uma curta temporada em Sevilha envolvidos em tarefas cartográficas no contexto da preparação da viagem de Fernão de Magalhães (1519–1522), a verdade é que ambos trabalharam para a Coroa portuguesa grande parte da sua vida. De fato, uma carta de mercê com a data de 10 de Fevereiro de 1528 revela que D. João III concedeu a Pedro Reinel um salário anual de 15.000 reais pelos serviços prestados aos reis D. João II e D. Manuel I como mestre de cartas e agulhas de marear. Sabe-se também que em 1524 Pedro Reinel esteve envolvido nas negociações da Junta de Badajoz-Elvas, um encontro diplomático celebrado na fronteira luso-espanhola entre os representantes dos reis de Espanha e Portugal para tentar resolver a questão das Molucas. Segundo informa uma carta de Junho do mesmo ano enviada ao rei pelos delegados portugueses na dita reunião, Diogo Lopes de Sequeira e António de Azevedo Coutinho, os delegados espanhóis tentaram, sem muito sucesso, persuadir Pedro e Jorge Reinel para trabalharem ao serviço de Carlos V. Um outro documento de 1542 revela que Pedro Reinel ainda estava vivo nesta data: encontrava-se então casado com Isabel Fernandez, morava em Lisboa e fazia cartas de marear. 

Pedro Reinel é o autor de uma das poucas cartas náuticas portuguesas que chegaram até hoje do século XV e uma das duas cartas assinadas (a outra é a carta de Jorge de Aguiar de 1492) mais antigas que se conhecem. Trata-se de uma carta em pergaminho do Atlântico oriental construída entre 1485 e 1492 e conservada nos Archives Départementales de la Gironde, em Bordéus (França). Esta carta, onde se pode ler “Pedro Reinel me fez,” deu início a uma série de cartas produzidas pelos Reinel (pai e filho) que chegaram até os anos quarenta do século XVI. Um dos aspetos mais chamativos desta carta, que também seria usado por Jorge de Aguiar, é a representação da linha de costa atlântica de Africa. Aparentemente, a carta representa o Mediterrâneo ocidental até à Sicília e o Atlântico oriental desde as Ilhas Britânicas até ao Golfo da Guiné com todos os arquipélagos europeus e africanos – e as ilhas imaginarias Mayda e Brasill. No entanto, no interior do continente africano pode-se ver o resto da linha de costa desde o Golfo da Guiné até o Rio Congo, última paragem da expedição de Diogo Cão. Este aspeto tem dado lugar a várias interpretações que não iremos discutir aqui. 

Alguns anos mais tarde o nome de Pedro Reinel vai aparecer numa outra carta em pergaminho do Atlântico (chamada Kunstmann I) feita por volta de 1504 e conservada na Bayerisch Staatsbibliotek de Munique (Alemanha). Esta é a segunda das duas cartas assinadas por Pedro Reinel. Nesta carta Reinel tentou corrigir os efeitos da variação da agulha na costa da península do Labrador (ao leste do Canadá) com uma escala de latitudes oblíqua de 44º a 57º e com uma inclinação de 22,5º. Trata-se da carta náutica mais antiga que se conhece com uma escala de latitudes visível. E de fato não tem apenas uma, mas duas o que faz com que seja considerada uma das chamadas cartas de dupla graduação. A escala principal está localizada no centro do Atlântico em direção norte-sul e é aplicável a toda a costa ocidental de África representada na carta. A outra escala, em posição oblíqua, está situada no estreito e baía de Hudson e aplicava-se só àquela região. Depois de Reinel ter usado este recurso técnico, muitos outros cartógrafos tentaram resolver as consequências da declinação magnética através deste procedimento.

Em diante, todas as cartas relacionadas com Pedro Reinel são só atribuições, algumas delas meramente conjeturais e envolvidas em processos complexos de atribuição de autoria. Como acontece com vários trabalhos cartográficos deste período, estas atribuições são ainda hoje questões em aberto. A primeira destas cartas é uma carta do Oceano Índico de c.1517, hoje desaparecida. Seguem-se um conjunto de cartas que constituem o chamado Atlas Miller (também atribuído a Lopo Homem), datado de 1519 e guardado na Bibliothèque nationale de France; uma outra carta do Índico construída por volta de 1520 e pertencente ao British Museum, em Londres; uma carta de c. 1522 em projeção polar representando o hemisfério sul e preservada no Topkapi Sarayi Müzesi, em Istambul (Turquia); e a carta do Atlântico de c.1535, hoje no National Maritime Museum de Greenwich (Reino Unido).

Além destes trabalhos, é sabido que em 1519 Pedro Reinel esteve em Sevilha envolvido na construção de um planisfério (o planisfério anónimo de Munique, também conhecido como Kunstmann IV), que segundo o historiador Armando Cortesão foi feito por Jorge Reinel por volta de 1519 (ver a biografia de Jorge Reinel). Assim o diz uma carta com data de 18 de Julho de 1519 enviada ao rei D. Manuel pelo seu feitor em Sevilha, Sebastião Álvares. A missiva queria informar ao rei dos planos da viagem de Magalhães e, referindo-se às Ilhas Molucas, diz que as viu representadas numa carta construída por Jorge Reinel, a qual não estava acabada quando o seu pai (Pedro) foi a Sevilha à procura do filho para regressarem juntos a Portugal. Segundo Álvares foi Pedro Reinel quem acabou a carta e representou nela as Molucas. Álvares escreve também que este era o modelo cartográfico usado por outro cartógrafo português que trabalhava na Casa de la Contratación de Sevilha, Diogo Ribeiro. O que se pode verificar a partir desta carta é que Pedro Reinel foi a Sevilha em busca do seu filho (por razões pouco claras) e acabou por fazer parte nos trabalhos cartográficos da preparação da circunavegação de Magalhães. A carta ou planisfério à qual se refere o documento, supostamente o Kunstmann IV, desapareceu no fim da Segunda Guerra Mundial. Hoje só se pode ter acesso a um fac-símile construído em 1836 por Otto Progel preservado na Bibliothèque nationale de France. Segundo o contexto em que foi feito, o aspeto mais destacado desta carta é que as cobiçadas ilhas das especiarias (as Ilhas Molucas) são representadas a este do meridiano de Tordesilhas, isto é, dentro da área de influência espanhola. 

Antonio Sánchez
Universidad Autónoma de Madrid

Arquivos

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Carta de Sebastião Álvares ao rei D. Manuel I, 18 de Julho de 1519. Corpo Cronológico, P. 1.ª, maço 13, doc. 20. 

Carta de Diogo Lopes de Sequeira e António de Azevedo Coutinho ao rei D. João III, 9 de Junho de 1524. Gaveta 18, maço 8, doc. 13.

Carta de mercê do rei D. João III a Pedro Reinel, 10 de Fevereiro de 1528. Chancelaria de D. João III, Doações, ofícios e mercês 1521/1557, Liv. 14, f. 67. 

Documento com data de 5 de Junho de 1542. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa 1536/1821, Denunciações 1537/1736, livro 1 1537/1543, f. 165.

Obras

Carta do Atlântico oriental de Pedro Reinel, ca. 1492. Archives Départementales de la Gironde, Burdeos (2 Fi 1582 bis). Manuscrito em pergaminho, 711 x 948 mm.

Carta atlântica de Pedro Reinel, também chamada Kunstmann I ca. 1504. Bayerisch Staatsbibliotek, Munich (Cod. Icon. 132). Manuscrito iluminado sobre pergaminho, 60 x 73,5 cm.

Bibliografia sobre o biografado

Cortesão, Armando. Cartografia e cartógrafos portugueses dos séculos XV e XVI, Vol. I: 249–305. Lisboa: Seara Nova, 1935.

Cortesão, Armando e Avelino Teixeira da Mota. Portugaliae Monumenta Cartographica, Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987 [1960]. 

Marques, Alfredo Pinheiro. Portugaliae Monumenta Cartographica, Vol. I.: 66–72 Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987.

Marques, Alfredo Pinheiro. “Reinel, Pedro e Jorge.” In Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, ed. Luís de Albuquerque, Vol. II: 940–941. Lisboa: Caminho, 1994.

Viterbo, Sousa. Trabalhos náuticos dos Portuguezes nos séculos XVI e XVII, Parte I. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1898.

Reinel, Jorge

m. ca. 1572

Palavras-chave: Cartografia, planisfério, Lisboa, Sevilha, Armazéns.

DOI: https://doi.org/10.58277/GGGA8612

Jorge Reinel foi um cartógrafo português do século XVI que trabalhou nos Armazéns da Guiné e Índia de Lisboa, a principal instituição portuguesa na produção de cartas náuticas daquela época. Tal como acontece com o seu pai, Pedro Reinel, não são muitos os dados sobre a sua vida. Os documentos conhecidos não permitem determinar com precisão quando é que Jorge Reinel nasceu e morreu, mas indicam que viveu grande parte do século XVI. Sabemos, no entanto, que trabalhou ao serviço da Coroa portuguesa como cartógrafo e examinador da ciência e arte de navegar, e também, temporariamente, para a Coroa espanhola em circunstâncias ainda pouco esclarecidas. Sabe-se igualmente que esteve casado com Beatriz Lopes e que, em 1572, no fim da sua vida, estava doente e vivia na pobreza.

Segundo uma carta régia de 6 de Junho de 1532, parece que Jorge Reinel tinha tido, anos antes, problemas pessoais, em Lisboa, com um clérigo chamado Pero Anes. É consensual na historiografia portuguesa considerar este episódio como a causa para a sua deslocação a Sevilha, em 1519, com o grupo de portugueses envolvidos na preparação científico-técnica da viagem de Fernão Magalhães. A participação de Jorge nestas tarefas teria a ver com a construção de uma carta náutica hoje perdida, que alguns historiadores identificam com o planisfério anónimo de Munique, conhecido por Kunstmann IV (que hoje conhecemos só a partir de um fac-símile construído em 1836 por Otto Progel conservado na Bibliothèque nationale de France). Segundo Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota, esta carta foi utilizada na preparação da viagem de Magalhães. Duas das suas características mais relevantes são o fato de apresentar pela primeira vez o Equador graduado e de representar as ilhas Molucas no hemisfério espanhol. 

A vinculação do trabalho desenvolvido por Jorge em Sevilha e este planisfério, feito por volta de 1519, surge a partir de uma missiva de Sebastião Álvares, também assinada em 1519. Neste documento, Álvares, feitor português em Sevilha, conta a D. Manuel ter visto as Ilhas Molucas representadas numa carta de Jorge Reinel terminada pelo pai, quando este foi àquela cidade à procura do filho. É sabido que os dois Reinel, pai e filho, acabaram por voltar a Portugal e, segundo o documento de 1532 já mencionado, Jorge seria finalmente perdoado dos seus conflitos com a justiça portuguesa. De fato, quatro anos antes, em 1528, D. João III concedeu a Jorge Reinel (e também ao seu pai) uma carta de mercê com um salário anual de 10.000 reais pelos seus serviços como mestre de cartas de marear. 

Para além da referência ao trabalho cartográfico dos Reinel em Sevilha, a carta de Álvares é também relevante porque afirma que aquele mapa serviu de modelo para um dos principais cartógrafos da Casa de la Contratación dos anos vinte, o também português Diogo Ribeiro. Isto quer dizer que a carta iniciada pelo filho Reinel e acabada pelo pai foi utilizada na Casa como base para as cartas que ali se faziam, nomeadamente o chamado Padrón Real e as suas cópias. O Padrón Real era o modelo cartográfico da Casa a partir do qual eram construídas todas as cartas utlizadas na Carrera de Indiasespanhola. A afirmação de Álvares reforça a hipótese de que a carta dos Reinel seja o planisfério de Munique, uma vez que os trabalhos cartográficos de Ribeiro que sobreviveram são todos planisférios ou pedaços de planisférios, com características técnicas semelhantes. 

Qualquer que fosse o trabalho desenvolvido pelos Reinel em Espanha, parece que a sua passagem pelo país vizinho não deixou indiferentes os delegados espanhóis nas negociações pela pertença e exploração das Ihas Molucas. Uma carta assinada em 9 de Junho de 1524 pelos representantes portugueses na Junta de Badajoz-Elvas, Diogo Lopes de Sequeira e António de Azevedo Coutinho, dizia a D. João III que Jorge Reinel e o seu pai foram convidados a trabalhar ao serviço da Coroa espanhola. Tal convite não parece, porém ter sido aceite, segundo as cartas de mercê dadas em 1528.

Alguns documentos testemunham igualmente as funções de Jorge Reinel como examinador e o apoio ao Cosmógrafo-Mor Pedro Nunes no exame aos futuros cartógrafos da Coroa. Do seu trabalho como examinador, em questões relacionadas com a arte de navegar, sabemos graças a dois autos de juramento, assinados pelo cartógrafo João Freire na qualidade de escrivão, existentes no Arquivo Municipal de Lisboa com as datas de 1551 e 1554 respetivamente, onde o seu nome aparece junto com o de outro cartógrafo, Lopo Homem. Por outro lado, Jorge Reinel foi nomeado para assistir aos exames que o Cosmógrafo-Mor fazia àqueles que desejavam ser cartógrafos. Segundo o Regimento do Cosmógrafo-Mor (1592), estes exames eram feitos pelo Cosmógrafo-Mor na presença de um mestre em cartas de marear. Estes cartógrafos eram escolhidos entre os quais exerciam há mais tempo o cargo, que tinham maior experiência e habilidades e, também, que tinham melhor reputação. Como já foi dado a conhecer pelo historiador Sousa Viterbo, Jorge Reinel esteve presente em pelo menos três exames, o de António Martins em 1563 e os de Bartolomeu Lasso e Luís Teixeira em 1564, sendo sempre Pedro Nunes o Cosmógrafo-Mor responsável.

Apesar de a maioria dos documentos acima mencionados fazerem referência a Jorge Reinel como mestre de fazer cartas de marear, não se conhece nenhuma carta náutica assinada por ele. No entanto, são várias as cartas que se lhe atribuem. A mais antiga é uma representação do Oceano Índico, em pergaminho e datada de 1510, que esta conservada na Herzog August Bibliothek, em Wolfenbüttel (Alemanha). Há ainda que mencionar o já referido planisfério de Munique e as cartas do Atlas Miller (1519), na Bibliothèque nationale de France. Em data muito posterior, c. 1540, foi construída a última carta atribuída a Jorge Reinel. Trata-se de uma carta em pergaminho que representa o Atlântico, Europa, África ocidental e Brasil. No canto superior esquerdo pode-se ler Reinel em letras maiúsculas. Esta carta encontra-se hoje na Biblioteca Barone Ricasoli-Firidolfi, em Florença (Itália). 

Antonio Sánchez
Universidad Autónoma de Madrid

Arquivos

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Carta de Sebastião Álvares ao rei D. Manuel I, 18 de Julho de 1519. Corpo Cronológico, P. 1.ª, maço 13, doc. 20. 

Carta de Diogo Lopes de Sequeira e António de Azevedo Coutinho ao rei D. João III, 9 de Junho de 1524. Gaveta 18, maço 8, doc. 13.

Carta de mercê do rei D. João III a Jorge Reinel, 10 de Fevereiro de 1528. Chancelaria de D. João III, Doações, ofícios e mercês 1521/1557, Liv. 14, fol. 67. 

Carta régia de 6 de Junho de 1532. Chancelaria de D. João III, Doações, ofícios e mercês 1521/1557, Liv. 18, f. 48v. 

Carta de mestre de cartas de marear a António Martins, 1563. Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Doações, ofícios e mercês, Liv. 13, f. 158v. 

Carta de mestre de cartas de marear a Bartolomeu Lasso, 17 de Maio de 1564. Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Doações, ofícios e mercês, Liv. 15, f. 69. 

Carta de mestre de cartas de marear a Luís Teixeira, 18 de Outubro de 1564. Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Doações, ofícios e mercês, Liv. 13, f. 261.

Carta régia, 16 de Julho de 1572. Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Perdões e legitimações, Liv. 44, f. 196v.

Lisboa, Arquivo Municipal–Arquivo Histórico 

Chancelaria da Cidade, Livro 1º da vereação, f. 103.

Chancelaria da Cidade, Livro 2º da vereação, f. 33v. 

Bibliografia sobre o biografado

Cortesão, Armando. Cartografia e cartógrafos portugueses dos séculos XV e XVI, Vol. I: 249–305. Lisboa: Seara Nova, 1935.

Cortesão, Armando e Avelino Teixeira da Mota. Portugaliae Monumenta Cartographica, Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987 [1960].

Denucé, Jean. Les origines de la cartographie portugaise et les cartes des Reinel. Gand: Librairie Scientifique E. Van Goethem, 1908. 

Marques, Alfredo Pinheiro. “Reinel, Pedro e Jorge.” In Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, ed. Luís de Albuquerque, Vol. II: 940–941. Lisboa: Caminho, 1994.

Viterbo, Sousa. Trabalhos náuticos dos Portuguezes nos séculos XVI e XVII, Parte I. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1898.