Stockler, Francisco de Borja Garção

Lisboa, 25 setembro 1759 —Tavira, 6 Março 1829

Palavras chave: matemático, historiador, académico, reformador.

DOI: https://doi.org/10.58277/TXLO1188

Garção Stockler é o mais importante matemático português de fins do século XVIII e início do século XIX, e um dos mais distintos homens de cultura do seu tempo. Para além de matemático, foi historiador, militar, político, homem de letras, reformador e académico. 

Começou a sua carreira militar muito cedo, ingressando no Regimento de Infantaria nº 11, onde assentou praça a 2 de Julho de 1775. Foi sucessivamente promovido até alcançar o posto de Brigadeiro efectivo de Infantaria em 1807. 

Entrou para a Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra aos 25 anos. 

Em 1787 foi admitido como sócio da Academia Real das Sciencias de Lisboa, vindo a ser nomeado seu Secretário em 1799. Em 1789 foi docente na Academia Real de Marinha, local onde se mantém em 1801 quando participa da desastrosa “Guerra das Laranjas”, como braço-direito do Duque de Lafões. Isto levou à sua marginalização na Academia Real da Marinha.

 A atividade científica de Stockler centrou-se na matemática. Rejeitou as noções de infinitos de diversas ordens e colocou-se decididamente do lado da perspectiva newtoniana do Cálculo, reconhecendo contudo as fraquezas existentes no método das fluxões. Ao contrário da maioria dos matemáticos continentais seus contemporâneos, que optaram por seguir a perspectiva leibniziana, Stockler considerou a noção de limite como o conceito fundamental para dar rigor ao Cálculo. Essa foi a sua intenção quando em 1794 publicou o seu primeiro livro, o Compendio da Theorica dos Limites. É explícita a sua admiração por José Anastácio da Cunha (1744-1787), o melhor matemático português do século XVIII, e a influência deste em Stockler pode ser vista não só na economia do seu estilo mas igualmente na procura constante do rigor, embora esta não seja sempre bem sucedida.

Em 1797, no volume I das Memórias da Academia publicou a sua Memoria sobre os Verdadeiros Principios do Methodo das Fluxões, a propósito da qual travou mais tarde uma polémica com os editores da revista de Edinburgo Monthly Review. Em 1799 saiu o Volume II das Memórias da Academia, que inclui mais 3 artigos matemáticos seus. Em 1805 publicou o Volume I das suas obras, que não inclui artigos matemáticos. De referir neste volume o Elogio de João le Rond D’Alembert, e uma longa Memoria sobre a Originalidade dos Descobrimentos Marítimos dos Portugueses no Século Decimoquinto.   

Em 1796 foi encarregado de elaborar um plano para a Instrução pública em Portugal, texto que é submetido anonimamente à Academia em 1799 com o título Plano e Regimento de Estudos. Esse plano dividia a Instrução Pública em quatro graus, e colocava a Academia das Ciências como a única instituição capaz de dirigir e inspecionar os Estudos Públicos, incluindo a educação de adultos, a elaboração de livros e a publicação de jornal literário. O Plano admitia o princípio da obrigatoriedade escolar para todos. O texto de Stockler acaba por ser recusado pela Academia, sendo a base essencial das críticas feitas por António Ribeiro dos Santos (1745-1818). Argumentou-se que o plano era impraticável pois então não havia meios para o realizar, com encargos financeiros excessivos e implicando alterações demasiado radicais das escolas nas suas estruturas internas e nos seus planos de estudos. 

Em 1807, a sua atitude favorável aos franceses, durante a primeira invasão, foi muito polémica, tendo sido passado compulsivamente à reserva e demitido de todas as suas funções em 1809. Igualmente a partir de então a Academia passou a ter uma relação conflitual com Stockler, que terminaria em 1824, com a sua demissão de sócio. 

A Academia começou por recusar a publicação de uma sua resposta ao livro de José Acúrsio das Neves Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino (Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 5 vols, 1810-1811) no qual era acusado de colaboracionista. Estando a Corte no Rio de Janeiro desde 1808, aí se deslocou para argumentar a favor da sua reabilitação. Conseguiu que fosse anulada a sua passagem compulsiva à reserva, tendo sido então promovido em marechal de campo efectivo. Simultaneamente publicou no Rio de Janeiro em 1813 uma sua resposta a José Acúrsio das Neves, Cartas ao autor da “História geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da restauração deste Reino” (Rio de Janeiro: Imprensa Régia).

Em 1815 entrou para a Junta da Direção da recém-fundada Academia Real Militar do Rio de Janeiro, cargo onde se manteve até 1820. Em 1816 foi encarregado de escrever um Plano para a Instrução Pública no Brasil (com a exceção das chamadas Ciências Eclesiásticas), a exemplo do pedido análogo que já se lhe tinha feito para o Portugal Europeu. Este plano foi submetido com o título Projecto sobre o estabelecimento e organisação da Instrucção Pública no Brazil  (incluído no tomo II das suas Obras) mas nunca chegou a ser discutido com vista a uma possível aprovação.

Em 1818 foi promovido a Tenente General, e começou a escrita da sua última obra matemática, o Methodo Inverso dos Limites. No ano seguinte foi promovido a Tenente-General efectivo.

Em 1819 publicou em França o seu Ensaio Histórico sobre as Origens e Progressos das Mathematicas em Portugal, a primeira história da matemática num só país publicada no Ocidente (1819), antecedendo em cerca de 20 anos a obra de Guglielmo Libri (1803-1869) sobre a história da Matemática italiana (Histoire des Sciences Mathématiques en Italie, 4 vols, Paris Jules Renouard et Cie, 1838-1841).  Stockler faz a primeira análise global da história da matemática portuguesa, dos seus primórdios à fundação da Academia das Ciências (1779), análise essa que foi aceite e repetida sem questionamento pelos historiadores da matemática portuguesa até aos princípios do século XX. Stockler considera que o trabalho em história da matemática é essencialmente um trabalho de historiador num domínio específico do conhecimento, os seus métodos são essencialmente os que são utilizados em história. Nunca faz uma análise da evolução e prática dos conceitos matemáticos. A sua principal influência foi o historiador francês Jean Etienne Montucla (1725-1799) e a sua monumental Histoire des Mathématiques, com a primeira edição em 1758 (Paris: Charles-Antoine Jombert), e a segunda, grandemente aumentada e parcialmente publicada após a morte de Montucla, entre 1799 e 1802 (Paris: Henri Agasse). 

Em 1819 propõs à Academia a publicação das suas Poesias Lyricas, mas esta só autorizava a publicação com cortes (por, dizia, ter afirmações contrárias a ortodoxia católica), o que Stockler recusou, publicando o seu livro em 1821 em Londres.

Regressou a Portugal em 1820, e submeteu o seu Methodo Inverso dos Limites para publicação pela Academia. O parecer que esta deu foi negativo. Stockler enviou então o seu texto para a Royal Society of London, que o tinha aceite como sócio estrangeiro em Abril de 1819. Em 1823, saiu no Quarterly Journal of Science (15, (1), 1823: 357-360) um resumo da obra e uma crítica, colocando reservas a alguns procedimentos técnicos nela utilizados. O livro acabou por ser impresso independentemente por Stockler em 1824. Esta última recusa da Academia levou -o a deixar de ser seu sócio.

Por duas vezes, em 1820 e 1823, foi Governador e Capitão general das Ilhas dos Açores no complexo contexto das lutas entre liberais e absolutistas.

Em 1826 saiu o Tomo II das suas obras, que, tal como o primeiro, não contém artigos matemáticos. 

Luís Saraiva

Obras

Compendio da Theorica dos Limites, ou Introducção ao Methodo das Fluxões (Lisboa: Academia R. das Ciências de Lisboa, 1794).

“Memoria sobre os verdadeiros principios do Methodo das Fluxões”, Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo I (1797): 200-217.

“Demonstração do Theorema de Newton sobre a relação, que tem os coefficientes de qualquer equação algébrica com as sommas das potencias das suas raizes, e applicação do mesmo Theorema ao desenvolvimento em serie dos productos compostos de infinitos factores”, in Memorias de Mathematica e Phisica da Academia Real as Sciencias de Lisboa, tomo II (1799): 1-46.

 “Memoria Sobre as Equações de condição das Funcções Fluxionaes”, Memorias de Mathematica e Phisica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo II (1799): 196-295.

“Memoria Sobre algumas propriedades dos Coefficientes dos termos do Binómio Newtoniano”, Memorias de Mathematica e Phisica da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo II (1799): 480-511.

Lettre a M. Le Redacteur du Monthly Review ou Réponse aux Objections qu’on a faites dans ce journal à la methode des limites de fluxions hypothétiques, (Lisbonne: de l’Imprimerie de l’Académie Royale des Sciences, 1800).

Obras, tomo I (Lisboa: Academia das Sciencias, 1805); tomo II (Lisboa: Typ. Silviana, 1826).

Ensaio sobre a Origem e Progressos das Mathematicas em Portugal, (Paris: Officina de P. N. Rougeron, 1819).

Poesias Lyricas (Londres: T. C. Hansard, 1921)

Methodo Inverso dos Limites, ou Desenvolvimento Geral das Funções Algorithmicas  (Lisboa:, Typographia de Thaddeo Ferreira, 1824).

Bibliografia sobre o biografado

Honório, Cecília, A Natureza e o Homem nos Caminhos do Saber e do Poder: Francisco de Borja Garção Stockler (1759-1829),Manuais Universitários (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2012).

Saraiva, L M R, On the first History of Portuguese Mathematics, Historia Mathematica, vol. 20, 4 (1993): 415-427.

Idem, Um matemático português no Brasil: Francisco de Borja Garção Stockler e o Methodo Inverso dos Limites, ou desenvolvimento geral das funções algorítmicas (1819-1824), Episteme, 11 (2000): 119-135.

 Idem, Garção Stockler and the Foundation of the Calculus at the End of the 18th Century, Revista Brasileira de História da Matemática, vol.1, nº 2 (2001): 75-100.

Silva, Inocêncio Francisco da, Diccionario Bibliographico Portuguez, volume II, (Lisboa: Imprensa Nacional, 1859): 354~358, e volume IX (Lisboa: Imprensa Nacional, 1870): 271-273 e 448-449

Gomes, Bernardino Barros

Lisboa, 30 setembro 1839 — Lisboa 5 outubro 1910

Palavras-chave: ordenamento florestal, geografia, cartografia, Administração-Geral das Matas.

DOI: https://doi.org/10.58277/YFRA4028

Bernardino Barros Gomes foi um engenheiro silvicultor que introduziu em Portugal os métodos científicos do ordenamento florestal. Para sustentar o fomento deste ordenamento, lançou-se em estudos sobre flora, relevo, clima e agricultura, com trabalhos de campo e levantamentos cartográficos até chegar à uma visão integradora do país que esteve na base da construção da geografia científica em Portugal. 

Bernardino Barros Gomes nasceu e cresceu no seio de uma família com longa tradição ligada à Medicina e à Ciência: bisneto do médico José Manuel Gomes (1733–?), neto de Bernardino António Gomes (1768–1823), médico e botânico que isolou o antipirético cinchonina na casca da quina, e filho de Bernardino António Gomes (1806–1877) e Maria Leocádia Fernanda Tavares de Barros. O pai foi lente de Medicina e médico do Paço, colaborando em vários jornais científicos. O ambiente familiar foi propício ao estudo assíduo e à curiosidade científica, sobretudo no domínio das ciências naturais. Em 1843, nasceu o seu irmão Henrique, que fez carreira como economista e na política. Barros Gomes frequentou um colégio de Lisboa, continuando os seus estudos em Coimbra após a morte da sua mãe em 1853. Nesta cidade, então a única no país com universidade, matriculou-se nas Faculdades de Matemática e de Filosofia. Na primeira, obteve o bacharelato em 1859. Na segunda, ficou particularmente atraído pelo ensino da química e das ciências naturais, acabando a licenciatura em 1860. O jovem Barros Gomes apaixonou-se pela botânica, que o levou a passar férias e tempos livres estudando e classificando as plantas com Carlos Maria Gomes Machado (1828–1901), que recolhia espécies para os herbários da Universidade. Em 1860, partiu para a Universidade de Leipzig, onde se inscreveu num curso de aperfeiçoamento em química. Encontrou em Leipzig um estudante polaco, J. Rivoli, com quem travou uma longa amizade e partilhou uma expedição científica na serra da Estrela. Em 1861, matriculou-se num curso para alunos estrangeiros na Real Academia Florestal e Agrícola da Saxônia, em Tharandt, fundada em 1811 pelo pioneiro da ciência florestal alemã, Heinrich Cotta. Em 1862, a Real Academia conferiu-lhe o diploma final de especialização, com ótimos resultados e a confirmação do seu futuro desempenho profissional. Também foi em Tharand que o jovem estudante conheceu Elisa de Wilcke, com quem se casou em 1866. A ligação com a escola de Tharandt e seus professores permaneceu forte e Barros Gomes continuou a visitá-la na procura dos últimos progressos da ciência florestal. Divulgou em Portugal as inovações técnicas relevantes de Max Robert Pressler, inventor de uma sonda e das tabelas florestais para cálculo dos volumes dos arvoredos. O botânico Heinrich Moritz Willkomm, que talvez fosse o seu professor, estudou as coleções de plantas de Barros Gomes ao escrever Prodromus Florae hispanicae. Nunca deixou de aproveitar viagens no estrangeiro para tratar de assuntos científicos, privando, entre outros, com Frederich Welwitsch acerca do regresso dos herbários de Angola a Lisboa e outros botânicos em Londres. Encontrou-se com colegas espanhóis na Escuela de Ingenieros de Montes de Villaviciosa; por outro lado, outros nunca faltaram em recensear algumas das suas obras na Revista de Montes.Regressado da Academia de Tharandt em 1863, Barros Gomes iniciou logo a atividade profissional na Repartição de Agricultura do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (MOPCI), que integrava a Administração-Geral das Matas. Foi encarregue de estudar os pinhais de Vale de Zebro e da Machada, perto do Barreiro, na ausência completa de informação prévia. Em 1864, apresentou um notável relatório, com estudo do meio natural e medições do arvoredo. Foi o primeiro trabalho sobre ordenamento florestal realizado no país, tendo o próprio autor procedido ao levantamento topográfico. Entretanto, em 1863, tinha publicado os seus primeiros artigos no Arquivo Rural, onde desenvolveu a prática do ordenamento florestal na Alemanha. Finalizado outro estudo sobre os efeitos da resinagem na produção lenhosa dos pinhais de Leiria, o reconhecimento da sua competência valeu-lhe ser nomeado, ainda em 1864, engenheiro do corpo civil na mesma Repartição da Agricultura do MOPCI. Em 1865, fez parte de uma comissão de estudo sobre Cabo Verde, produzindo um relatório sobre a arborização desta província portuguesa. A consagração destas atividades não se fez esperar: com apenas 25 anos, foi nomeado sócio correspondente da Academia Real das Ciências. A par das atividades e relatórios profissionais, Barros Gomes escreveu numerosos artigos até ao fim da sua carreira sobre assuntos diversificados da botânica, floresta e agricultura. Alguns foram a base para estudos de maior relevo, outros resultaram de conferências proferidas em diferentes locais. Prosseguiu os trabalhos em prol do ordenamento florestal nos pinhais de Vale de Zebro e da Machada e Leiria, até que, desiludido pelos rumos da política florestal, pediu a demissão em 1868. Foi-lhe concedida uma licença renovada até 1872. Durante estes anos, continuou os seus estudos, trabalhos de campo e divulgação técnica.Em 1872, após uma reforma da orgânica dos serviços florestais, voltou ao serviço, iniciando-se então o período mais fecundo da obra de Barros Gomes como engenheiro florestal e cientista. Foi sucessivamente nomeado diretor das Divisões Florestais Norte (1872), Sul (1874) e Centro (1879). As suas deslocações profissionais no país e os respetivos trabalhos de campo deram-lhe um conhecimento ímpar do ambiente natural e da vegetação. Elaborou trabalhos de síntese onde reuniu as suas observações e outras informações disponíveis de carácter orográfico, climático, botânico e florestal, acompanhadas por uma cartografia inovadora. Com o colega silvicultor Pedro Roberto da Cunha e Silva, preparou uma carta orográfica e regional de Portugal (1875), tendo por base a carta geográfica dirigida por Filipe Folque (1865), que representou o relevo com a nova técnica das curvas de nível. Elaborou também uma série de nove mapas com a distribuição das principais espécies florestais que permitiram a preparação da carta xilográfica ou dos arvoredos; esta série na escala 1:1 000 000 foi publicada no último Relatório da Administração Geral das Matas de 1879–1880. As duas cartas do relevo e dos arvoredos (escala 1:2 300 000) foram premiadas na Exposição de Filadélfia de 1876, para a qual Barros Gomes preparou todo o material, e integraram o primeiro trabalho do núcleo da obra científica de Barros Gomes, as Condições Florestaes de Portugal. Nesta obra, o cientista debruçou-se particularmente sobre a base naturalista — relevo, exposição, clima, geologia — e desenvolveu o comentário sobre a divisão regional do país, para apresentar a repartição das espécies florestais, utilizando fontes bibliográficas atualizadas em todas os domínios de conhecimento. Na “Notice sur les arbres forestiers du Portugal”, escrita em francês para a Exposição de Paris (1878), Barros Gomes apresentou uma reflexão sobre os processos de desarborização/florestação, procurando uma explicação ligada às mutações socioeconómicas que o país estava a atravessar. Finalmente, em 1878, publicou as Cartas Elementares de Portugal para uso das escolas. No prolongamento da preocupação da época, a última obra de fôlego de Barros Gomes foi concebida no intuito de contribuir à melhoria do ensino pela difusão dos conhecimentos. O autor reuniu cinco mapas, dois dos quais já estavam publicados (cartas dos concelhos, do relevo e regional, dos arvoredos, agronómica e da povoação concelhia) larga e devidamente comentados. Barros Gomes desenvolveu uma análise inovadora e integradora das “condições physicas e sociaes” do país e da divisão regional com base natural que já tinha esboçado nas Condições Florestaes. A influência direta das Cartas Elementares prolongou-se até meados do século XX nas propostas de divisão regional dos geógrafos Aristides de Amorim Girão, Hermann Lautensach e Orlando Ribeiro. Na sua correspondência, o próprio cientista reconheceu durante a elaboração desta última obra que, pondo os seus conhecimentos ao serviço da sociedade, cumpria uma forma mais plena de apostolado cristão. Desde meados dos anos 1870, Barros Gomes vivia mais intensamente a sua fé e trabalhava na Conferência Vicentina de Lisboa. No ano seguinte à publicação das Cartas Elementares, mudou o rumo da sua vida com o súbito falecimento da mulher, dois meses antes de tomar posse como diretor da Divisão Florestal do Centro. Consagrou-se ao Pinhal de Leiria, com uma nova planta e um plano decenal de ordenamento, colaborando também com João Inácio Ferreira Lapa e Jaime Batalha Reis num estudo sobre a resinagem. Em 1882, pediu a exoneração do cargo. Assegurou o futuro das três filhas e ingressou em 1883 na Congregação da Missão (Padres Lazaristas), tendo sido ordenado presbítero em 1888. Desde 1903,  o padre Barros Gomes passou a ensinar Ciências Naturais e Físico-Químicas no colégio de Arroios da Congregação, quando foi assassinado no dia 5 de outubro de 1910 nesta casa, durante os distúrbios que acompanharam a instauração da República.

Nicole Devy-Vareta
CEGOT, Universidade do Porto

Arquivos

Lisboa, Arquivo da Biblioteca do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas

Lisboa, Arquivo da Congregação da Missão, Padres Vicentinos.

Obras

Gomes, Bernardino Barros. “Estudos florestaes.” Archivo Rural 5(17, 19, 20, 21, 22) (1863):  462–465, 513–516, 541–545, 570–577, 599–605; 6 (2) (1863): 35–41.

Gomes, Bernardino Barros. Cultura das plantas que dão a quina, com cinco estampas lithografadas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1864.

Gomes, Bernardino Barros. Relatorio florestal sobre as matas da Machada e Valle de Zebro. Lisboa: Imprensa Nacional, 1865. 

Gomes, Bernardino Barros. Novas taboas florestaes de Pressler reduzidas ao systema metrico e accommodadas ao uso portuguez. Lisboa: Lallemant Frères, 1875. 

Gomes, Bernardino Barros. Condições florestaes de Portugal, illustradas com as cartas orographica, xylographica e regional, os perfis transversaes e as curvas meteorologicas mais caracteristicas. Lisboa: Lallemant Frères, 1876. 

Gomes, Bernardino Barros. Exposição de Philadelphia. Administração Geral das Matas do Reino. Portugal. Lisboa: Lallemant Frères, 1876.

Gomes, Bernardino Barros. “Étude sur les espèces de chênes forestiers du Portugal.” Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes 5 (20) (1876): 235–241.

Gomes, Bernardino Barros. “Notice sur les arbres forestiers du Portugal.” Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes 6 (22) (1877): 110–129.

Gomes, Bernardino Barros. Cartas elementares de Portugal para uso das escolas approvadas para as escolas primarias pela Junta Consultiva de Instrucção Publica, e duas d’ellas duas vezes premiadas na exposição de Philadelphia de 1876. Lisboa: Lallemant Frères, 1878. 

Gomes, Bernardino Barros. “Observações florestaes de uma jornada pela Beira feita em Agosto de 1876.” Boletim da Sociedade Broteriana 27 (1917): 198–211.

Bibliografia

Almeida, Antonio Mendes de. “Elogio historico do silvicultor Bernardino Barros Gomes.” Revista Agronómica 15 (1920): 1–21.

Devy-Vareta, Nicole e João Carlos Garcia. “Bernardino Barros Gomes e a silvicultura no desenvolvimento da geografia portuguesa oitocentista.” Revista da Faculdade de Letras 12(5) (1989): 139–148.

Devy-Vareta, Nicole, José Resina Rodrigues e João Carlos Garcia. “Introdução”. In Cartas elementares de Portugal para uso das escolas, III-XVI. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1990.

Guimarães, P. Bráulio. Padre Barros Gomes, vítima da República. Lisboa: Alêtheia Editores, 2006

Ribeiro, Orlando. “Barros Gomes, geógrafo.” Revista da Faculdade de Letras de Lisboa 2(1) (1934): 104–112.

Luisier, Afonso (Alphonse Luisier)

Fregnoley, Valais, Suíça, 6 fevereiro 1872 — Caldas da Saúde, Santo Tirso, 4 novembro 1957

Palavras-chave: Brotéria, Botânica, Briologia, Companhia de Jesus.

DOI: https://doi.org/10.58277/ZPTI3206

Nascido na Suíça, a 6 de fevereiro de 1872, Afonso Luisier, S.J. ingressou na Companhia de Jesus no Noviciado do Barro, em Torres Vedras, a 2 de outubro de 1891. A decisão de fazer o noviciado em Portugal prendia-se com o seu desejo de vir a ser missionário na Zambésia, missão que estava sob a alçada dos jesuítas portugueses. Depois de ter completado o noviciado e de ter estudado um ano de retórica, foi professor em Lons-le-Saunier (França) e em Guimarães entre 1894 e 1897. Estudou filosofia e ciências naturais em Lyon (1898), no Noviciado do Barro (1899), no Colégio de São Francisco, em Setúbal (1900), e na Escola Apostólica de Guimarães (1901), e cursou teologia em Innsbruck, Áustria, entre 1902 e 1906, onde foi ordenado sacerdote a 26 de julho de 1906. De regresso à Província Portuguesa da Companhia de Jesus, a que pertencia oficialmente desde o seu ingresso no noviciado, foi destacado para o Colégio de Campolide, em Lisboa, onde foi professor de química, física e história natural até 1910. 

Entre 1902 e 1932, Luisier foi um dos mais profícuos autores da Brotéria, a revista de ciências naturais dedicada à identificação e descrição de novas espécies de animais e plantas, fundada pelos jesuítas portugueses no Colégio de São Fiel, em Louriçal do Campo, Castelo Branco, em 1902. A maioria dos seus trabalhos versava sobre a identificação e descrição de novas espécies de briófitas na Península Ibérica, nas ilhas da Madeira e Açores e no Brasil. Dedicou grande parte da sua carreira a estudar a flora briológica da Madeira, tendo começado por publicar, entre 1917 e 1922, uma série de artigos na Brotéria-Botânica intitulada Les Mousses de Madère. Depois de ter estado doze vezes na Madeira, iniciou uma nova série de artigos intitulada Les Mousses de l’Archipel de Madère et en général des Îles Atlantiques, publicada entre 1927 e 1945. Ao longo da sua carreira, descobriu e descreveu dezoito novas espécies e treze novas variedades de musgos, tendo constituído uma importante colecção de briófitas que, actualmente, se encontra no Instituto Nun’Alvres em Santo Tirso. De acordo com a origem geográfica dos espécimes, esta colecção de musgos divide-se em três secções distintas: Bryotheca Europaea, Bryotheca Atlantica e Bryotheca Exótica. Apesar de ter publicado a maioria dos seus trabalhos na Brotéria, Luisier publicou também alguns artigos no Boletim da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, nos Anais Científicos da Academia Politécnica do Porto, no Boletim da Sociedade Broteriana, na Revista Agronómica e em actas de congressos organizados pela Asociación Española para el Progreso de las Ciencias ou pela sua congénere portuguesa.

No início da sua carreira científica, Luisier correspondeu-se com alguns dos mais conceituados botânicos portugueses da sua geração, como Gonçalo Sampaio (1865–1937), Júlio Henriques (1838–1928) e Joaquim de Mariz (1847–1916). A colaboração com estes botânicos terá começado, pelo menos, em 1902, ano de fundação da Brotéria. Nesse ano, publicou no Boletim da Sociedade Broteriana um catálogo da flora de Setúbal e da Serra da Arrábida, no qual constavam cerca de mil espécies diferentes e para o qual contara com a colaboração destes três botânicos. Tal como no século XIX, o estabelecimento destas redes de correspondência revelou-se fundamental para a circulação de espécimes, herbários, livros e instrumentos e, sobretudo, para a identificação e descrição de novas espécies de animais e plantas. Um exemplo que ilustra bem a importância das redes de correspondência onde se inseria Luisier, para a classificação de novas espécies de plantas, é o da descoberta e descrição do cardo Centaurea luisieri. Colhida por Luisier em 1915, perto de Salamanca, a hipotética nova espécie de cardo viajou de Salamanca para o Porto, onde foi estudada por Gonçalo Sampaio, e daí para Coimbra, para ser analisada por Júlio Henriques, que confirmou a descoberta, após comparação com as suas congéneres presentes nos herbários da Universidade de Coimbra. De regresso ao Porto, o novo cardo foi então descrito nas páginas da Brotéria por Gonçalo Sampaio que o baptizou de Centaurea luisieri, em homenagem ao seu descobridor. 

Com a implantação da República, em 1910, os jesuítas foram expulsos de Portugal, os seus colégios foram encerrados e os seus livros, colecções e instrumentos científicos foram, na sua grande maioria, inutilizados ou expropriados pelo Governo Provisório. Luisier foi um dos três jesuítas estrangeiros que conseguiu reaver parte das suas colecções no exílio. Por intervenção directa do cônsul suíço, recuperou parte das suas colecções de briófitas em abril de 1913. Passou os dois primeiros anos de exílio em Gemeert (Holanda) e Alsemberg (Bélgica), onde continuou os seus estudos de identificação, classificação e descrição de novas espécies de briófitas. Entre 1912 e 1932 esteve exilado em Espanha, primeiro em Salamanca (1912–1915), onde foi superior da escola apostólica, depois em Pontevedra (1916–1918), onde estava instalada a casa de escritores dos jesuítas portugueses e, finalmente, no Colégio de La Guardia (1918–1932), na província de Pontevedra, onde permaneceu até à dissolução da Companhia de Jesus em Espanha. Ao longo do seu exílio em Espanha estudou a flora briológica de Salamanca, tendo publicado em 1924 a obra Musci Salmanticenses, que viria a ser premiada pela Real Academia de Ciencias Exactas, Físicas y Naturales de Madrid. No Instituto Nun’Alvres, onde se instalou entre 1932 e 1957, desenvolveu uma importante actividade pedagógica, sobretudo no ensino das ciências naturais. No ano de fundação deste colégio dos jesuítas em Portugal estabeleceu uma estação meteorológica que, à semelhança do observatório que os jesuítas tinham fundado no Colégio de São Fiel em 1902, pertencia também à rede nacional de postos meteorológicos.

Após a morte de Joaquim da Silva Tavares, S.J. (1866–1931), em setembro de 1931, Luisier assumiu a direção da revista Brotéria. Dadas as dificuldades financeiras em editar uma revista inteiramente dedicada à investigação científica, decidiu então restruturar a revista e unificar as séries científicas Botânica e Zoologia, que então se publicavam alternadamente, numa única série intitulada Ciências Naturais. Entre 1932 e 1957, Luisier continuou a publicar os resultados dos seus trabalhos de classificação sistemática sobre os musgos da Madeira, Açores, Portugal Continental e Brasil. Neste período, publicou ainda alguns trabalhos sobre os artrópodes da Madeira e de Portugal. No caso dos artrópodes da Madeira, o seu trabalho era uma resenha das espécies publicadas por Olav Lundblad, professor na Universidade de Estocolmo que tinha estudado a fauna entomológica da ilha portuguesa. Ao publicar esta resenha, Luisier pretendia suprimir a dificuldade que os botânicos portugueses tinham no acesso à revista Arkiv für Zoologie, da Academia das Ciências da Suécia, onde Lundblad tinha publicado o seu trabalho. Tal como Silva Tavares, Luisier acabaria por publicar na Brotéria, uma biografia de Félix de Avelar Brotero (1744–1828), a quem a revista era dedicada. Esta biografia, mais actualizada e extensa do que as que tinham sido publicadas anteriormente na revista dos jesuítas portugueses, continha também uma lista das principais obras do naturalista, onde se destacavam seis trabalhos inéditos.

Enquanto diretor da Brotéria, Luisier continuou a promover a publicação de trabalhos de autores que já colaboravam com a revista desde os anos anteriores, como os jesuítas Cândido Azevedo Mendes (1874–1943), Camilo Torrend (1875–1961), Longino Navás (1858–1938), Jaime Pujiula (1869–1958) e Johann Rick (1869–1946), pioneiro dos estudos micológicos no Brasil. Neste período estabeleceu ainda novas colaborações com reputados botânicos portugueses como Ruy Telles Palhinha (1871–1957), Carlos das Neves Tavares (1914–1972), António Rodrigo Pinto da Silva (1912–1992), Flávio Resende (1907–1967), Arnaldo Rozeira (1912–1984), Manuel Cabral Resende Pinto (1911–1990) e ainda o geólogo Carlos Teixeira (1910–1982). À semelhança do seu antecessor, Luisier estava particularmente interessado em estabelecer colaborações científicas que continuassem a prestigiar a Brotéria: Ciências Naturais, no contexto dos periódicos científicos portugueses e estrangeiros. Durante o período em que foi dirigida por Luisier, a Brotéria: Ciências Naturais esteve particularmente associada a três organismos públicos: o Instituto Botânico de Lisboa, a Estação Agronómica Nacional e o Instituto Botânico Dr. Gonçalo Sampaio. De entre estas novas colaborações institucionais, a mais relevante, pelo menos do ponto de vista da afirmação e consolidação disciplinar, terá sido a que foi estabelecida com a Estação Agronómica Nacional. Ao publicar alguns dos primeiros artigos de citogenética e de genética de melhoramento de plantas do grupo dirigido por António Sousa da Câmara (1901–1971), Luisier colocava a Brotéria na vanguarda dos periódicos científicos portugueses, e associava a revista a uma das principais linhas de investigação em botânica durante o Estado Novo.

Doutor honoris causa pela Faculdade de Ciências do Porto em 1942, e sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa desde 1933, Luisier foi ainda sócio da Sociedade Broteriana e sócio fundador da Sociedade de Ciências Naturais, da Société Valaisienne de Sciences Naturelles e da Sullevant’s Moss Society. A 6 de fevereiro de 1957, por ocasião do seu 85.º aniversário, foi agraciado com a Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, numa cerimónia presidida por Baltazar Rebelo de Sousa (1921–2002), então Subsecretário de Estado da Educação Nacional. Entre os vários discursos proferidos nesse dia salientaram-se os de Américo Pires de Lima (1886–1966), representante da Faculdade de Ciências do Porto, de António Sousa da Câmara, director da Estação Agronómica Nacional, de Abílio Fernandes (1906–1994), da Sociedade Broteriana, e de Francisco Caldeira Cabral (1908–1992), professor do Instituto Superior de Agronomia, que falava em nome dos antigos alunos. Além de professores das três universidades portuguesas estiveram também presentes nesta homenagem o arcebispo de Braga e o vice-cônsul suíço. 

A 4 de novembro de 1957, seis meses depois de celebrar o seu 85.º aniversário, Afonso Luisier acabaria por morrer nas Caldas da Saúde (Santo Tirso), onde se encontrava desde o seu regresso a Portugal.

Francisco Malta Romeiras

Obras

Luisier, Afonso. “Apontamentos sobre a flora da região de Setubal.” Boletim da Sociedade Broteriana 19 (1902): 172–274.

Luisier, Afonso. “Le Genre Triquetrella en Europe.” Brotéria: Botânica 11 (1913): 135–138.

Luisier, Afonso. “Sur la distribuition géographique de Triquetrella arapilensis Luis.” Brotéria: Botânica 13 (1915): 150–151.

Luisier, Afonso. “Les Mousses de Madère.” Brotéria: Botânica 15 (1917): 81–98; 16 (1918): 29–71; 17 (1919): 17–142; 18 (1920): 5–22; 78–120; 20 (1922): 76–106.

Luisier, Afonso. “Musci Salmanticenses. Descriptio et distributio specierum hactenus in Província geographica Salmanticensi cognitarum. Brevi addito conspectu Muscorum totius Peninsulae Ibericae.” Memorias de la Real Academia de Ciencias Exactas Físicas y Naturales de Madrid 3 (1924): 1–280.

Luisier, Afonso. “Les Mousses de l’Archipel de Madère et en général des Îles Atlantiques.” Brotéria: Botânica 23 (1927): 5–53; 129–145 24 (1930): 18–47; 66–96; 119–40; 25 (1931): 5–20; 123–39; Brotéria: Ciências Naturais 1 (1932): 164–82; 7 (1938): 78–95; 110–31; 11 (1942): 29–41; 14 (1945): 78–94; 112–27; 156–76.

Luisier, Afonso. “Recherches bryologiques récentes à Madère,” Brotéria: Ciências Naturais 5 (1936): 140–44; 6 (1937): 88–95; 8 (1939): 40–52; 12 (1943): 135–44; 16 (1947): 86–91; 22 (1953): 178–91; 25 (1956): 170–82.

Luisier, Afonso. “Mousses des Açores.” Brotéria: Ciências Naturais 7 (1938): 96–98.

Luisier, Afonso. “Hepáticas dos Açores.” Brotéria: Ciências Naturais 7 (1938): 187–189.

Luisier, Afonso. “Artrópodes da Madeira, segundo as investigações do Dr. O. Lundblad.” Brotéria: Ciências Naturais 8 (1939): 18–39; 82–95; 101–12; 9 (1940): 184–88; 10 (1941): 61–69; 133–42; 179–84; 11 (1942): 84–93; 137–44; 177–87; 12 (1943): 29–36; 128–34.

Luisier, Afonso. “Contribuições para a flora briológica do Brasil.” Brotéria: Ciências Naturais 10 (1941): 114–132.

Bibliografia sobre o biografado

Carvalho, José Vaz de. “Afonso Luisier”, Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús, vol. 3: 2440–2441. Madrid e Roma: Universidade Pontificia Comillas, Institutum Historicum Societatis Iesu, 2001.

Neves, Maria Luísa. “Recordando o Padre Luisier—Nos 40 anos do seu falecimento.” Brotéria Genética,18 (1997): 99–101.

Archer, Luís. “Centenário do nascimento do P. Alphonse Luisier, S.J.” Brotéria: Ciências Naturais 41 (1972): 1.

Lima, Américo Pires de. “Rev. Pe. Dr. Alphonse Luisier.” Separata do Boletim da Sociedade Broteriana 32 (1958).

Carcalhaes, José. “Padre Alphonse Luisier.” Brotéria: Ciências Naturais 54 (1958): 3–16.Carvalhaes, José. “Reverendo Padre Alphonse Luisier, S.J.: Homenagem ao cientista e ao mestre.” Boletim Cultural de Santo Tirso 5 (1957): 223–249.

Reis, António Batalha

Lisboa, 7 dezembro 1838 – 13 novembro 1917)

Palavras-chave: divulgação, vitivinicultura, filoxera, RACAP

António Batalha Reis nasceu a 7 de dezembro de 1838 em Lisboa. Irmão do meio de Adelina e Jaime, António nasceu no seio de uma família burguesa liberal. Filho de Maria Romana Batalha e de António Nunes dos Reis, velho amigo de Almeida Garrett e afamado vitivinicultor do Turcifal (Torres Novas), António entrou aos onze anos para o colégio do doutor Cicouro (padre da Ordem de Avis e lente de Coimbra até 1834) por onde passaram muitos alunos que vieram a ocupar elevada posição social. De lá saiu em 1855 para fazer os preparatórios em Coimbra ingressando, em 1856, no curso de Filosofia da Universidade. Em 1859, regressou a Lisboa para se matricular diretamente no 2º ano do Instituto Geral de Agricultura. Terminou os estudos em 1861 com especialização em enologia e iniciou a sua vida profissional como amanuense da Repartição Taquigráfica da Câmara dos Deputados (o seu pai também tinha sido taquígrafo nas Cortes). Em 1865 foi equiparado a 2º oficial e em 1882 foi colocado no lugar de 2º oficial da Direção Geral das Repartições da mesma Câmara.

Já casado com Amélia Leopoldina de Mendonça e Silva, António publica o seu primeiro livro, Enxofre e vinho, em 1871. Este livro resultou da necessidade de fazer acompanhar os três modelos de sulfurador de sua invenção, o ‘theinoxyphero,’ de um manual explicativo. Publicitado na imprensa da especialidade, o sulfurador chegou a ser anunciado em Espanha. O livro e o invento foram acompanhados de palestras e demonstrações pelos principais centros produtores do país. Profícuo divulgador da enologia e das boas práticas vitivinícolas ao longo de toda a sua vida, António fez parte de uma geração de agrónomos discípula de João Inácio Ferreira Lapa, Professor do Instituto Geral de Agricultura apostado em divulgar a ciência agronómica por todos os produtores do país.

A sua vida profissional e de divulgador esteve também intimamente associada à Real Associação Central da Agricultura de Portugal (RACAP), associação fundada em 1860 por um grupo de latifundiários, capitalistas e agricultores, alguns deles com intervenção política, e apadrinhada pela família real. O peso político desta associação variou ao longo de oitocentos o que também se refletiu no seu número de sócios que nunca chegou ao milhar no seu máximo ficando-se em média pelas três centenas. Entre alguns dos seus sócios, encontram-se muitos engenheiros agrónomos e lentes do Instituto Agrícola de Lisboa, que viam nesta associação uma forma de pugnar pelo desenvolvimento da ciência agronómica em Portugal. É assim que em 1872, por iniciativa da RACAP, da qual seu pai fora secretário da primeira Assembleia Geral, e espelhando a importância do sector vitivinícola na balança comercial do país, António foi à exposição Internacional de Lyon como delegado de Portugal para se inteirar da maquinaria mais moderna e estudar a vitivinicultura da região. Daqui resultou, em 1873, a publicação de A vinha e o vinho. No ano seguinte, António integra a primeira comissão (cuja delegação era presidida pelo seu irmão mais novo, Jaime) designada pelo governo para o estudo da recém-chegada filoxera ao Douro. Esta praga, causada por um inseto, a filoxera, foi acidentalmente importada da América do Norte para a Europa, escondida nas raízes da vinha americana, e teve efeitos devastadores em todos os países europeus produtores de vinho. O impacto da doença era já bem visível em 1872 como se pode ler no relatório da delegação, A nova moléstia das vinhas no Douro, publicado em 1873. Em 1874, António foi nomeado comissário técnico à Exposição Vinícola de Londres, acompanhando o químico António Augusto de Aguiar. Em 1875, organizou a exposição de conhaques e vinhos especiais para exportação para o Brasil. Na qualidade de membro da Comissão Central de Estudos da Filoxera, rumou a França em 1876 a fim de estudar a praga e representar Portugal no Congresso Vitícola de Paris. No relatório publicado em 1877, fez várias recomendações quanto à forma de eliminar a praga e evitar o seu alastramento, e aconselhou a utilização de castas de videira americana resistentes como porta-enxertos como única forma de salvar as castas nacionais e a economia do país. Esta solução, que acabou por ser a adotada no Douro, não foi implementada de imediato, tendo sido alvo de controvérsia entre os agrónomos. Por um lado, por se acreditar que o porta-enxertos tirava personalidade aos vinhos, e por outro, por se julgar, numa primeira aproximação, que a utilização de inseticidas bastaria (e seria economicamente viável) para debelar a praga. Em 1882, António foi ainda incumbido de secretariar a comissão de combate à filoxera no Sul do país.

Entre 1879 e 1883, António esteve diretamente envolvido na redação e administração da Gazeta dos Lavradores, órgão da RACAP neste período, onde ele e Jaime, e por vezes o pai e um tio, publicaram artigos. Mais tarde, fundou e/ou dirigiu também o Arquivo Rural e A Cartilha Rural cuja única aspiração seria ’educar os operários agrícolas.’ Colaborou ainda com outras revistas agrícolas e com a imprensa diária, onde publicou largas dezenas de artigos. Publicou no Jornal Oficial de Agricultura, no Agricultor do Norte, no Aurora do Lima, no Jornal de Horticultura do Norte, em A vinha Portuguesa, no Portugal Agrícola, no Portugal vinícola, no Boletim da Real Associação Central de Agricultura de Portugal, na Gazeta dos Lavradores (a fundada em 1903) e em O Século Agrícola. Foi ainda correspondente em Portugal do Moniteur Vinicole. Em 1882, inaugura no Comercio do Porto uma série de artigos sobre a regeneração da vinha. A partir de 1892 manteve regularmente a crónica ‘Revista agrícola’ no Comércio do Porto a que se juntará mais tarde João Coelho da Motta Prego. Manteve também colaboração com diários lisboetas de grande tiragem como O Século, o Diário de Notícias, a Pátria e o Novidades e diários regionais como o Diário do Comércio do Funchal. Toda esta atividade editorial reflete também a preocupação das elites portuguesas, maioritariamente latifundiárias, com a modernização da agricultura, sector que dominava a economia do país e que se via ameaçado por outros mercados exportadores.

Ainda em 1880, António representou Portugal no Congresso Internacional de Saragoça e foi secretário do Congresso Vitícola realizado no Porto. Em 1881 foi nomeado sócio de mérito da RACAP. Bastante desfalcada de sócios, a RACAP passava por uma crise que António, em 1881, tentou revitalizar através da redação dos seus Fastos. Por essa altura, ficou também incumbido de proceder à classificação geral dos vinhos de Portugal e D. Luís encarregou-o pessoalmente do estabelecimento dos viveiros de cepas americanas nas propriedades da casa de Bragança e da casa Real, viveiros criados com o intuito de distribuir gratuitamente cepas aos viticultores. Na qualidade de Procurador-Geral à Junta Geral do Distrito de Lisboa, António impulsionou em 1882 aquela que foi a III exposição agrícola em Lisboa, e que se realizou na Tapada da Ajuda em 1884 (em 1883, por iniciativa da Junta, a RACAP foi chamada a organizar o evento e Jaime nomeado para o dirigir). António acompanhou este certame como membro da comissão executiva. Dois anos depois, em 1886, é nomeado agrónomo ao serviço do Ministério das Obras Públicas. 

Após dois anos de inatividade profissional resultantes de uma queda em 1885 que o deixou cego do olho direito, António foi nomeado diretor da recém-criada Escola Prática de Viticultura e Enologia de Torres Vedras. Em 1890, deixou a escola e o ensino e partiu em comissão de serviço para a França e a Itália para estudar os híbridos americanos e as Escolas Agrícolas. De regresso, proferiu uma série de conferências em Lisboa, Porto e Viseu sobre a filoxera e sobre a utilização de leveduras selecionadas na vinificação. Um conflito em 1891 com o então diretor geral da agricultura, Elvino de Brito, levou-o a abandonar o serviço oficial até 1894. Neste período, escreveu três livros o primeiro dos quais recebeu crítica positiva na imprensa especializada francesa: Memoria sobre vides americanas e suas híbridas, Mildiú e Vinho de Pasto. Este último, prefaciado por Emídio Navarro, foi a base da tese apresentada por António ao Congresso Vinícola de Lisboa, organizado pela RACAP em 1895. Um ano depois, e a pedido do dono de uma pedreira publicou O gesso onde dava instruções sobre a sua utilização como adubo. Durante 1896 dirigiu ainda os trabalhos de vinificação do Sindicato Agrícola de Guimarães e, em 1897, passou a diretor técnico da Adega Social de Viana do Alentejo.

Entre 1902 e 1913, António foi diretor das missões enotécnicas e lecionou nas Escolas Móveis Maria Cristina em Rio Tinto, Vila Nova de Famalicão, Mirandela, Guimarães, Torres Vedras, Lagoa e Régua. Produziu manuais para estas escolas e foi articulista da revista das escolas, O Lavrador. De 1904 a 1906 dirigiu a adega social de Carcavelos; em 1905 foi à ilha da Madeira estudar as causas da decadência do seu comércio e em 1906 fez conferências no Porto e na Figueira da Foz. Extintas as missões enotécnicas em 1913, retirou-se para o seu gabinete de trabalho.

Recebeu medalhas de ouro na exposição internacional de Lyon em 1872 e na de Paris de 1887. Em 1890, integrou a Comissão Internacional de Agricultura a convite do ministro da agricultura francês. Foi sócio honorário da Sociedade dos Agricultores de França, dos Agricultores de Itália e de Espanha, cavaleiro de Cristo e de Carlos III de Espanha.

Faleceu em novembro de 1917 de uma angina no quarto de sua casa na Avenida da Liberdade, 117, acompanhado de seu filho, Alberto Batalha Reis, também ele enólogo, e familiares. Pouco antes mandara abrir uma garrafa de Porto de 1793 para que bebessem à sua saúde.

Isabel Zilhão

Pimentel, Júlio Máximo de Oliveira

2º Visconde de Vila Maior

Torre de Moncorvo, 5 de Outubro de 1809 – Coimbra, 20 de Outubro de 1884. 

Palavras-chave: química, vitivinicultura, Escola Politécnica, Universidade de Coimbra

Enquanto professor de química na Escola Politécnica e no Instituto Industrial, director do Instituto Agrícola, reitor da Universidade de Coimbra, deputado e par do reino, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, membro do Conselho Geral do Comércio e Indústria e do Conselho de Saúde, comissário da representação portuguesa em quatro exposições internacionais, divulgador científico com ligações estreitas ao mundo da indústria e especialista na vinha e nos vinhos, Júlio Máximo de Oliveira Pimentel foi um dos mais completos homens de ciência em Portugal no século XIX. Para além das diferentes actividades políticas e profissionais, pertenceu a inúmeras sociedades científicas portuguesas e estrangeiras e foi agraciado com várias condecorações, nacionais e internacionais, entre as quais o título de Visconde de Vila Maior.

Filho de Luís Cláudio de Oliveira Pimentel e de D. Angélica Teresa de Sousa Cardoso Pimentel Machado, ambos descendentes de importantes proprietários de Trás-os-Montes, Oliveira Pimentel foi o quarto entre seis irmãos. Apesar do estatuto periférico desta fidalguia de província, os Pimentel eram relativamente influentes, tanto ao nível local como nacional. Em 1820, ano da Revolução Liberal, muito bem acolhida no seio da sua família, saiu pela primeira vez de Moncorvo para frequentar, como aluno interno, o Colégio da Real Irmandade da Lapa, no Porto, uma instituição recém-criada com o objectivo de garantir o ensino preparatório aos filhos das elites do norte, que pretendiam obter formação superior. No verão de 1826, com quinze anos, coincidindo com outro momento histórico na vida política nacional – a outorga da Carta Constitucional por D. Pedro IV –, fez os exames de acesso à Universidade de Coimbra. A escolha de um currículo de Ciências (Matemática e Filosofia) foi responsabilidade do seu protector e patrício Tomé Rodrigues Sobral, professor jubilado de química.

O seu percurso universitário ficou indissociavelmente unido aos progressos da guerra civil entre absolutistas e liberais. Logo em Outubro de 1826, Oliveira Pimentel juntou-se ao Batalhão Académico, passando o inverno em campanha, mas, no início de 1828, quando dentro da academia o combate ideológico se transformou em combate armado, abandonou definitivamente Coimbra. Mais a norte, em consequência da derrota dos liberais, os seus pai e tio foram presos. Oliveira Pimentel seguiu-os até Lisboa (Forte de S. Julião) e daí até ao Porto (Cadeia da Relação). Com a entrada do exército liberal no Porto, em Junho de 1832, voluntariou-se para lutar no Corpo Académico, defendendo a Serra do Pilar. Em Outubro desse ano foi baleado numa perna, durante uma investida contra as tropas miguelistas. Ficou mais de seis meses em convalescença e sofreu sequelas deste ferimento até ao final da vida. Em Fevereiro de 1933, em pleno Cerco do Porto, com apenas 23 anos, recebeu o seu primeiro título, Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada, e foi integrado como alferes no exército.

Com o fim da guerra civil, em 1834, e depois de sete anos de ausência, regressou à Universidade, agora como militar. O seu currículo até 18 de Julho de 1837, dia em que concluiu a formatura em Matemática, revela um percurso académico distinto com prémios em cada um dos anos lectivos. 

A 13 de Outubro de 1837, com 28 anos, Oliveira Pimentel mudou-se para Lisboa. Beneficiando das medidas tomadas no início de 1837 pelo governo setembrista, que havia fundado em Lisboa a Escola Politécnica e a Escola do Exército, materializando a vontade de reformar o ensino superior em Portugal e de criar uma capital científica com instituições semelhantes às das demais capitais europeias, juntou-se aos quadros da Politécnica. Apesar de acreditar no futuro promissor dos engenheiros civis e ter deixado expresso nas suas Memórias o desejo de, tal como tantos jovens da sua geração, ir para Paris estudar na escola de Ponts et Chaussées, e por isso se ter matriculado no 1º ano da nova Escola do Exército, acabou por se candidatar ao lugar de proprietário da cadeira de química, por convite do seu antigo professor de cálculo, Guilherme Dias Pegado e do próprio Visconde de Sá da Bandeira. As redes de sociabilidade que uniam a elite liberal da primeira metade do século XIX, para além de lhe garantirem oportunidades profissionais, influenciaram de forma decisiva a sua vida pessoal. Foi o seu colega na Politécnica, João Ferreira Campos, que o apresentou à enteada, Sofia de Roure Auffdinier, com quem acabou por casar a 18 de Julho de 1839 e de quem teve dois filhos, Júlia e Emílio.

Entre 1837 e 1844, ocupou-se em exclusivo da regência da sua cadeira. Apesar de frequentar a sociedade, em visitas regulares ao São Carlos e às galerias do Parlamento, dedicou-se a aprender a disciplina que se havia habilitado a ensinar. A entrada de Oliveira Pimentel na Politécnica coincidiu com o início do processo de especialização, institucionalização e profissionalização da química em Portugal, sobretudo com a emergência da prática laboratorial na investigação e no ensino, pelo que as limitações da sua formação universitária exclusivamente teórica condicionaram o trabalho enquanto professor. O confronto quotidiano com a perícia de alguns subordinados, como a do preparador Francisco Mendes Leal era prova dessas limitações. Para colmatar tal debilidade, reclamou, logo em 1837, autorização para realizar uma viagem de estudo aos laboratórios da capital científica europeia, Paris.

Em Setembro de 1844, perto de cumprir 35 anos, partiu finalmente para Paris com uma bolsa do governo, correspondente a um acréscimo de 30% ao seu ordenado como militar e professor da Politécnica. Nas suas Memórias quis deixar claro que esta bolsa era insignificante e desadequada para o nível de vida parisiense. Na verdade, Júlio Máximo de Oliveira Pimentel foi, durante toda vida, um profissional da ciência no sentido estrito do termo. Por depender quase em exclusivo do seu salário, as escolhas de carreira ficaram subordinadas às suas necessidades económicas. Considerando ainda que, à época, para custear equipamentos, instrumentos e materiais necessários à prática da química moderna, quase todas as instituições em Paris exigiam dos estagiários o pagamento de uma propina, o leque de possibilidades ao dispor do seu orçamento era reduzido. Depois de um périplo por vários laboratórios, acabou por estagiar no de Eugene Melchior Peligot, no Conservatoire des Arts et Métiers, um dos poucos onde poderia estudar sem pagar.

Se em meados dos anos de 1840 a utilidade da química para a indústria e agricultura, mas também para a administração do bem-estar e da saúde pública e para o apoio à justiça era incontestada, Oliveira Pimentel, enquanto servidor do estado, esforçou-se por reunir conhecimentos sobre as várias dimensões da sua disciplina. Assim, percorreu semanalmente diferentes bairros parisienses para ouvir, nas mais prestigiadas instituições e dos mais famosos cientistas, cursos gerais de química e cursos especializados, como os de química aplicada à tinturaria ou toxicologia. Consciente da importância dos desenvolvimentos na área da química orgânica, frequentou também aulas de alemão para poder praticar no laboratório de Justus von Liebig na Universidade de Giessen, plano que abandonou por falta de tempo. Nos primeiros meses, o excesso de trabalho repercutiu-se na sua vida familiar, o que levou a mulher e a filha, que o haviam acompanhado até Paris, a regressar a Lisboa na Primavera de 1845. Esta relação de permanente distância foi constante ao longo do seu casamento.

Paris não era apenas o principal centro para os membros da elite técnico-científica portuguesa, como Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, Joaquim Tomás Lobo d’Ávila, Francisco Maria de Sousa Brandão, José Anselmo Gromicho Couceiro ou Albino Francisco de Figueiredo e Almeida, mas também o palco privilegiado da política e dos negócios nacionais. A Paris, tanto acorriam os exilados do cabralismo, como José Estêvão e Manuel José Mendes Leite, ex-colegas de Coimbra e frequentadores da sua casa no Quais des Grands Agustins, como os capitalistas com os quais o governo português havia negociado importantes contratos monopolistas de produtos como o sabão, a pólvora, o tabaco ou mesmo as obras públicas. Na noite parisiense, estes grupos cruzavam-se sem grande atrito. Foi exactamente à saída da ópera que, em 1845, Oliveira Pimentel travou conhecimento com José Maria Eugénio de Almeida, um dos sócios mais importantes dessas companhias monopolistas. Eugénio de Almeida procurava técnicos e equipamentos para várias operações industriais e Oliveira Pimentel pareceu-lhe a pessoa ideal para assumir a direcção das suas fábricas de sabão e refinação de açúcar. Pela sua mão, entrou no mundo da indústria, com um salário anual que mais do que duplicava os seus rendimentos em Lisboa. Nesse verão percorreu, como administrador, várias regiões de França, Alemanha, Bélgica, Suíça e Inglaterra, visitando dezenas de fábricas.

Nesta primeira viagem pela Europa, Oliveira Pimentel combinou a vertente profissional com a turística. Encarando o lazer de forma informada, o que se comprova pela dezena de guias que se encontravam na sua biblioteca, subiu o vale do Reno num barco a vapor, à época o tour da tecnologia romântica por excelência. Este foi um dos seus passeios de eleição, que repetiu uma vez em cada década, em 1855, 1862 e 1878. Para este transmontano conhecedor das dificuldades de navegação no Douro, o Reno foi a grande referência para pensar o país vinhateiro. 

De regresso a Portugal, em Fevereiro de 1846, com 36 anos, retomou com renovado entusiasmo o ensino da química na Politécnica, editando um manual ilustrado em três volumes. A par do ensino, não descurou a investigação no laboratório, ocupando-se de temas de cariz utilitário. Sendo, desde 1834, um frequentador assíduo das termas das Caldas da Rainha, e reconhecendo a importância económica destas práticas terapêuticas e de recreação, escreveu, em 1849, um artigo sobre estas águas minerais que lhe abriu as portas da Academia de Ciências de Lisboa, como sócio correspondente. Foi, contudo, através da ligação à indústria, enquanto director, consultor ou inspector de várias fábricas, que Oliveira Pimentel reuniu o material para publicar muitas dezenas de artigos científicos e de divulgação em revistas e jornais, sobre matérias tão diversas como vidros e cristais, porcelanas, ácido sulfúrico, papel, soda ou alumínio. Ao mesmo tempo que ganhava reconhecimento social e crédito entre pares, afirmava a importância da química. 

1851 marcou, de acordo com Júlio Máximo Oliveira Pimentel, o ano em que o país entrou no verdadeiro caminho do progresso. Desde o seu regresso de Paris tinha-se propositadamente afastado das conspirações entre facções liberais, não deixando, no entanto, a partir de finais da década de 1840, de defender o lugar da ciência e tecnologia na administração e no parlamento em tertúlias como as do Grémio Literário. Com a Regeneração abriram-se, finalmente, as portas do governo e do aparelho de estado aos cientistas e técnicos portugueses. Logo em 1852, Oliveira Pimentel foi eleito deputado, entrando, também, para o mais importante órgão das políticas públicas de fomento, o recém-formado Ministério das Obras Públicas, onde assumiu o cargo de vogal no Conselho Geral do Comércio e Indústria. Na década de 1850, o seu roteiro urbano era vasto: para além das peregrinações pela cintura industrial lisboeta – do Poço do Bispo a Alverca do Ribatejo, de Santo Amaro à Margueira, de Alenquer à Póvoa de Santa Iria – das visitas a São Bento e das jornadas de trabalho no Terreiro do Paço, a ida ao coração industrial do bairro da Boavista, tornou-se parte da rotina quotidiana. Aí a sua actividade lectiva incluía aulas diurnas no laboratório da Escola Politécnica, que ocupava, provisoriamente, as instalações da Casa da Moeda, e nocturnas no recém-criado Instituto Industrial, dedicado à formação de operários.

Este currículo fez de Júlio Máximo de Oliveira Pimentel um candidato perfeito para representar o novo executivo da Regeneração na sua primeira grande prova internacional: a exposição universal de Paris de 1855. Oliveira Pimentel voltaria a cumprir essa função em 1862, 1867 e 1878. Em 1855, à comissão de peritos escolhidos pelo governo, foi pedido que, por um lado, assegurasse uma apresentação condigna dos progressos do país e que, por outro, cumprisse o rigoroso caderno de encargos para a recolha de informação necessária ao desenvolvimento das indústrias portuguesas. A missão de estado de Oliveira Pimentel, que se prolongou por mais de seis meses, incluiu reuniões de trabalho nos júris internacionais, muitas viagens pelas fábricas e escolas da Europa Central, inúmeros jantares, recepções e bailes. O relatório da sua comissão, com mais de 360 páginas e versando sobre os progressos da química, falava para o poder político, para os industriais, mas também para um público mais vasto, revelando os seus dotes de divulgador. 

No verão de 1857, durante a epidemia de febre amarela em Lisboa, Oliveira Pimentel afirmou a sua perícia no mundo da saúde pública. Os contactos que estabeleceu no Conselho de Saúde abriram-lhe novas perspectivas profissionais e políticas, sendo nomeado director do Instituto Agrícola e eleito Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, no biénio 1858-1860. No cumprimento deste último cargo e no rescaldo da febre amarela fez avançar as obras do sistema de abastecimento de águas e esgotos, do aterro da Boavista e, sobretudo, do novo matadouro. Durante o seu mandato, e por ocasião do casamento do Rei D. Pedro V, foi agraciado com o título de Visconde de Vila Maior. Aceitou a oferta, na condição da honra ser atribuída ao seu pai. Por morte deste, revalidou o título, pagando os direitos de mercê em Julho de 1861. 

A sua notoriedade pública aumentou significativamente aquando da polémica que rodeou a morte precoce de D. Pedro V, por febre tifóide, a 11 de Novembro de 1861. Ao lado das autoridades judiciárias, ficou encarregado de analisar as vísceras reais. Pela sua mão, a ciência química, mais do que a medicina, pôs termo às suspeitas de envenenamento e aos sobressaltos populares.

O facto de ser um dos mais reputados cientistas portugueses não impediu que, em 1863, com o fim das várias ocupações industriais com que sempre havia complementado o seu salário, deixasse de conseguir sustentar financeiramente a sua vida em Lisboa. Com o plano de se retirar com a família para a província, abandonou todos os cargos na capital. Aos 54 anos, o Visconde de Vila Maior preparou-se para viver da sua reforma e dos rendimentos das quintas em Moncorvo, para as quais contraiu um avultado empréstimo. Por razões profissionais e económicas, moveu influências para garantir uma comissão agrícola junto do Ministério das Obras Públicas. Inaugurou, então, uma nova linha de investigação que o ocupou quase até ao final da vida, primeiro na comissão de estudo da ampelografia do país vinhateiro do Douro e, depois, na comissão de estudo dos processos de vinificação nos distritos ao norte do Douro, publicando vários trabalhos de sistematização do conhecimento sobre a vinha e o vinho. Quando assumiu o cargo de membro do júri na exposição internacional de Paris de 1867 já era um conceituado perito em vinhos e, durante o mesmo certame, em 1878, obteve a medalha de ouro da Sociedade de Agricultores de França. No entanto, a prova real da importância internacional do seu trabalho foi, talvez, o reconhecimento conquistado pela tradução para inglês do “Tratado de vinificação para vinhos genuínos”, distribuído a preço módico pelo San Francisco Merchant, em 1884, no pico da revolução vitivinícola californiana. 

Para escrever estes manuais, o Visconde de Vila Maior viajou, entre meados de 1863 e finais de 1869, por todo o norte português. Perto de cumprir 60 anos, em 1868, e depois da revolução que Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes operou no Ministério das Obras Públicas, cancelando todas as comissões, mobilizou os seus contactos pessoais com o Bispo de Viseu e Ministro do Reino, António Alves Martins (1808-1882), seu contemporâneo de Coimbra, autopropondo-se para uma comissão de três anos como Reitor da Universidade de Coimbra. Vários factores concorreriam para o falhanço desta iniciativa: para além de ser o primeiro reitor sem formação em leis e com uma carreira e reputação construída numa instituição rival, enquanto parlamentar nos anos de 1850 havia afrontado directamente a academia ao defender o fim do ensino científico em Coimbra. O acolhimento gélido por parte do corpo académico, em Setembro de 1869, não deixaria antever o reitorado mais longo de toda a monarquia constitucional.

O trabalho que desenvolveu na Universidade foi discreto, limitando-se à regência dos assuntos internos, à organização das celebrações do centenário da Reforma Pombalina, ao acolhimento das visitas reais e à representação da instituição nos fóruns nacionais e internacionais. Ao longo desses anos continuou a estudar temas ligados à vinha, publicando trabalhos novos e reeditando outros. Em 1879, destacou-se enquanto presidente da terceira comissão anti-filoxérica, mas seria sobretudo na escola ampelográfica que criou no Jardim Botânico, juntamente com Júlio Henriques (1838-1928), que desenvolveu as principais investigações na luta contra este parasita. 

Nos inícios da década de 1880, o Visconde de Vila Maior começou a recolher as suas Memórias. Apesar de declarar que o escrito era dirigido aos seus descendentes, este texto, editado apenas em 2014, é uma fonte única para compreender como trabalhou a sua imagem pública e construiu uma reputação enquanto cientista. Num mesmo registo memorialístico publicou, em 1884, a biografia do seu tio, o General Claudino Pimentel. 

Entretanto, pressões da corporação universitária começaram a minar o seu reitorado. Recusando demitir-se, acabou por conseguir afastar-se temporariamente dos negócios da Universidade, em Julho de 1883, liderando uma comissão para preparar os elementos para a reforma do ensino superior e, entre Junho e Julho de 1884, fez a sua última grande viagem pela Europa, visitando várias universidades em Espanha, Itália e França. Poucos dias após cumprir 75 anos, morreu em Coimbra a 20 de Outubro de 1884.

Marta Macedo

Oom, Frederico Augusto

Lisboa, 4 dezembro 1830 – Lisboa, 25 julho 1890

Palavras Chave: Observatório Astronómico de Lisboa, astronomia estelar, hora legal.

DOI: https://doi.org/10.58277/TZBP3617

A vida e a carreira científica de Frederico Augusto Oom estão intimamente ligadas à fundação e organização do Observatório Astronómico de Lisboa (OAL).

Nascido no seio de uma família com raízes na Escandinávia, Oom seguiu um típico percurso militar de oficial da marinha de guerra. Em 9 de Dezembro de 1842 assentou praça como aspirante a guarda-marinha. Dois anos depois matriculou-se na Escola Politécnica, onde completou o curso preparatório de Marinha em 1848. No ano seguinte, completou o curso da Escola Naval, sendo promovido a guarda-marinha em 23 de Outubro de 1849. Esteve embarcado nos anos seguintes, visitando o Brasil, Macau, e territórios portugueses em África. Em 14 de Novembro de 1851, foi promovido a 2º tenente graduado, passando a efetivo a 6 de Setembro de 1852. Em 1853, regressou à Escola Politécnica, concluindo o curso geral em 1856. O geodeta e coordenador do levantamento cartográfico de Portugal, Filipe Folque (1800-1870),  que fora seu professor de Astronomia e Geodesia na Escola Politécnica, escolheu-o para uma missão de estudo ao Observatório Central da Rússia em Pulkovo, nos arredores de São Petersburgo, onde passaria vários anos a estudar os instrumentos e métodos aí utilizados, de modo a preparar-se para liderar o OAL. 

A fundação do OAL foi patrocinada por D. Pedro V e apoiada por Friedrich Georg Wilhelm Struve (1793-1864), diretor do Observatório de Pulkovo, que acreditava poder-se estabelecer em Lisboa um observatório capaz de liderar a área da astronomia estelar juntamente com Pulkovo.  Lisboa proporcionava

condições geográficas e climáticas especialmente favoráveis quer para o estudo das paralaxes estelares e das nebulosas, dois temas centrais da astronomia estelar de então. Algumas estrelas cuja paralaxe anual (e por conseguinte, cuja distância) era considerada mensurável com os instrumentos e técnicas da época, tais como 1830 Groombridge e Alpha Lyrae, passavam nas proximidades do zénite lisboeta, pelo que os efeitos da refração atmosférica seriam mínimos. Além disso, o clima ameno de Portugal, o número considerável de noites de céu limpo por ano, e a escuridão durante as noites estivais, especialmente em comparação com as “noites brancas” de S. Petersburgo,  faziam da capital lisboeta um local apetecível para estudar as nebulosas, cuja natureza era ainda desconhecida.  

Wilhelm Struve inteirou-se dessas vantagens na sequência de um debate travado entre 1847 e 1850 com o astrónomo de Paris Hervé Faye (1814-1902), em torno da paralaxe da estrela 1830 do catálogo Groombridge, ou Estrela de Argelander. Depois de algumas primeiras diligências, de resto infrutíferas, no início da década de 1850, a fundação de um novo observatório na capital portuguesa começou a tomar forma na sequência das viagens de D. Pedro V pela Europa, realizadas entre 1854 e 1855. Uma visita ao Observatório de Bruxelas, então dirigido pelo célebre astrónomo, meteorologista e estatístico Alphonse Quetelet (1795–1874), parece ter sido decisiva para convencer D. Pedro V que a respeitabilidade de Portugal entre as demais nações europeias passava também pela existência de um bom observatório astronómico em Lisboa.  Na altura, o único observatório existente na capital portuguesa era o Observatório da Marinha, cujos equipamentos e instalações eram bastante precários.   

Wilhelm Struve tornou-se o principal conselheiro do projeto do novo observatório, para o qual  o seu filho,  Otto W. Struve (1819-1905), também contribuiu. O Observatório de Pulkovo serviu de modelo, mas foram também consultados outros astrónomos estrangeiros, assim como vários fabricantes de instrumentos astronómicos. Em Janeiro de 1857, D. Pedro V concedeu 30 contos de réis da sua dotação pessoal para apoiar a fundação do Real Observatório Astronómico de Lisboa. Os trabalhos de construção tiveram início em Março de 1861, mas a morte do monarca nesse mesmo ano fez com que os trabalhos só fossem retomados em força em 1864. O observatório ficaria concluído apenas no final da década de 1870. 

Oom deixou Lisboa rumo a S. Petersburgo em 24 de Agosto de 1858. O seu estágio no Observatório de Pulkovo durou cinco anos. Durante este período, Oom visitou vários observatórios, entre os quais os de Greenwich, Altona, Hamburgo, Bona, Berlim e Lípsia, tendo passado também pelas oficinas da firma de instrumentos astronómicos e geodésicos A. & G. Repsold em Hamburgo.  Em 1860 deslocou-se a Espanha no âmbito de uma expedição anglo-russa para observar o eclipse solar de 18 de Julho daquele ano, tendo ficado incumbido de desenhar a coroa solar. É provável que tenha também visitado os observatórios de Paris e Helsínquia, bem como a oficina da firma Merz em Munique, uma vez que estes estabelecimentos são mencionados nas instruções que presidiram à sua missão. As atividades realizadas durante a missão de Oom não só lhe permitiram adquirir o conhecimento necessário para liderar o OAL, como também permitiram criar uma rede de apoio e legitimação para o projeto português no seio da comunidade astronómica internacional. No regresso a Lisboa, Oom passou por Heidelberga, onde participou na reunião fundacional da Astronomische Gesellschaft, realizada em 28 de Agosto de 1863. 

Quando chegou a Lisboa, as obras do OAL estavam praticamente suspensas, pelo que se viu na simples condição de oficial de Marinha em comissão de serviço. Regressou então à Escola Politécnica, de modo a tornar-se engenheiro hidrógrafo, o que se concretizou em 1865. Entretanto, Folque, que liderava a construção do OAL, encarregara Oom de formar os assistentes do Observatório da Marinha, e de coordenar a edificação do OAL na sua vertente científica, o que incluía supervisionar as obras das salas de observações e a instalação dos instrumentos científicos. Oom efetuou uma nova visita a Hamburgo em 1866, com o objectivo de inspecionar a construção de alguns instrumentos encomendados à firma A. & G. Repsold. Durante este período, Oom dividiu-se entre os trabalhos no OAL e as funções de engenheiro hidrógrafo. Em 1867,  integrou uma comissão responsável pela colocação de bóias no Tejo.  

Entre 1867 e 1869 Oom foi coadjuvado nos trabalhos de instalação do OAL por Henrique de Barros Gomes (1843-1898) que, a curto prazo, trocaria a ciência pela carreira política. Em 1869, Oom foi oficialmente nomeado chefe da Secção Astronómica da Direção Geral dos Trabalhos Geodésicos do Reino, título atribuído provisoriamente ao OAL. Nesse mesmo ano, ingressou no OAL César Augusto de Campos Rodrigues (1836-1919), também oficial de marinha e engenheiro hidrógrafo. Campos seria o colaborador mais próximo de Oom no OAL e o membro do seu corpo científico a alcançar o maior prestígio dentro e fora do país.   

Em 1870, Oom determinou a latitude do OAL através de observações da estrela Alpha Lyrae. Ainda nesse ano, foi nomeado para integrar uma comissão encarregada de organizar uma expedição a Tavira com a finalidade de observar o eclipse solar de 22 de Dezembro, que incluía também João de Brito Capelo (1831-1901), do Observatório Meteorológico Infante D. Luiz, e vários professores da Universidade de Coimbra. A observação do eclipse foi impossibilitada por condições atmosféricas adversas. Oom não terá escondido a sua intenção em afirmar o OAL como o observatório nacional de Portugal, ao qual deveria ser confiada a coordenação deste tipo de iniciativas, gerando assim

algum incómodo junto de outros elementos da expedição. Esta fora inicialmente proposta por António José Teixeira (1830-1900), professor de astronomia e matemática na Universidade de Coimbra. 

Vários acontecimentos ao longo da década de 1870 sugerem uma rivalidade latente entre o observatório da capital e a Universidade. Um desses episódios ocorreu em 1873, quando Oom iniciou, juntamente com Campos Rodrigues e João Capelo, preparativos para uma expedição a Macau destinada à observação do trânsito de Vénus de 9 de Dezembro de 1874. A expedição foi organizada à revelia de Coimbra e acabou por ser abortada no parlamento. Por esta altura, encontravam-se já em discussão alguns projetos para a Lei Orgânica do Real Observatório Astronómico de Lisboa. Em 1873, Filipe Folque, a Junta Consultiva para a Instrução Publica e a Academia das Ciências de Lisboa apresentaram propostas muito semelhantes, segundo as quais o OAL teria por objectivo principal contribuir para o avanço da astronomia estelar, nomeadamente através da medição de paralaxes estelares e do estudo das nebulosas, ficando a sua administração centrada na figura do diretor, cargo para o qual Oom estava naturalmente destinado.  Era ainda proposto que todos os astrónomos do OAL se dedicassem exclusivamente ao serviço do Observatório. 

Em 1875, o governo regenerador de Fontes Pereira de Melo emitiu uma nova proposta, de teor semelhante, que foi alvo de uma cerrada oposição por parte da Comissão Parlamentar para a Instrução Publica, liderada por António José Teixeira. A Comissão apresentou uma proposta alternativa, na qual o observatório teria um carácter generalista, sendo o seu programa científico escolhido de acordo com as circunstâncias. Os poderes do diretor ficavam limitados à execução das deliberações de um conselho que incluía todos os astrónomos e calculadores do observatório. Nesta nova proposta ficava também facilitado o acesso dos professores dos estabelecimentos nacionais de ensino superior às vagas do quadro científico do Observatório. 

Oom atacou duramente a proposta da Comissão, batendo-se pelo projeto de astronomia estelar originalmente delineado pelos Struves, que fora adoptado, apenas com pequenas diferenças de detalhe, em todas as propostas precedentes. Oom apresentou os seus argumentos num relatório intitulado Considerações acerca da organização do Real Observatório Astronómico de Lisboa, originalmente dirigido ao diretor dos trabalhos geodésicos, mas que o astrónomo publicou e distribuiu  por várias personalidades e  instituições. A posição de Oom sairia vitoriosa nos meandros parlamentares. Teve o apoio do reitor da Universidade de Coimbra e Par do Reino, Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, Visconde de Villa-Maior (1809-1884), que procurou assim contrariar a velha ideia da rivalidade entre a Universidade  e os estabelecimentos científicos e de ensino superior da capital. Em 6 de Maio de 1878, era finalmente aprovada a Lei Orgânica do Real Observatório Astronómico de Lisboa, que o consagrava como instituição científica autónoma, sob a égide direta do Ministério do Reino, dedicada maioritariamente ao avanço da astronomia estelar (ou sideral, na terminologia da época), nomeadamente através do estudo das paralaxes estelares, das nebulosas e das estrelas duplas. Na hierarquia das funções do OAL, seguiam-se: as observações ocasionais de objetos e fenómenos do sistema solar;

o apoio à cartografia, hidrografia e geodesia; e finalmente, a determinação e transmissão da hora oficial. 

Contudo, a visão defendida de forma militante por Oom e consagrada na Lei Orgânica depressa se revelou difícil de concretizar. Não havia pessoal qualificado suficiente que desejasse ingressar no OAL, e alguns de entre os poucos que o fizeram, não se adaptaram ao estilo de trabalho e à disciplina laboral, baseada no princípio de dedicação exclusiva, que Oom quis importar de Pulkovo. O corpo científico do OAL, que tinha cinco vagas para astrónomos, resumia-se a Oom (diretor), Campos Rodrigues (subdiretor), e José Augusto Alves do Rio (1845-1905), também oficial de marinha e engenheiro hidrógrafo que, em 1887, trocaria a carreira de astrónomo pela gestão de uma herança. A admissão de astrónomos-alunos, pela qual Oom também se batera, foi quase inexistente, pois exigia elevadas qualificações para dois anos de um estágio mal remunerado, em dedicação exclusiva, e sem garantias de admissão definitiva findo o período de estágio. Outros problemas de recursos humanos vieram agravar este quadro delicado, tendo até mesmo sido difícil conseguir preencher eficazmente a vaga de secretário do Observatório. Por conseguinte, Oom e Campos Rodrigues viram-se

amiúde assoberbados com tarefas de administração e escrituração. 

Esta frágil situação interna prolongar-se-ia por décadas, constituindo um sério entrave à concretização do projeto fundacional do Observatório. Além disso, ao longo da segunda metade do século XIX técnicas como a espectroscopia, a fotometria e a fotografia, que estão na base da astrofísica, foram adquirindo uma importância crescente, e foi com elas que astronomia estelar verdadeiramente tomou fôlego. Concebido e equipado de acordo com a velha tradição da astronomia posicional, sem nunca ter disso substancialmente modernizado, o OAL acabou por ser moldado essencialmente como uma instituição de serviço público, à semelhança de observatórios como o de Greenwich e o Observatório Naval dos Estados Unidos.  A transmissão da hora oficial  (a partir de 1912 denominada Hora Legal) acabou por se tornar a função principal do OAL, sendo mantida até hoje. 

As observações regulares para a determinação da hora oficial tiveram início em 1878. Eram efectuadas com dois instrumentos de passagens portáteis  construídos pela firma A. & G. Repsold de acordo com indicações de Oom, que concebeu um sistema para efetuar a inversão do instrumento durante a observação, eliminando assim um dos erros sistemáticos da observação (o erro de colimação). As observações eram efectuadas todas as noites em que o estado do tempo o permitia, incidindo numa série de estrelas previamente selecionadas para o efeito. Ao fim da manhã do dia seguinte, depois de reduzidos os dados das observações, procedia-se à verificação e acerto dos relógios do observatório (as denominadas “pêndulas”). A partir de 1885, a hora oficial determinada pelos astrónomos do OAL passou a ser transmitida telegraficamente para uma estação horária no Arsenal da Marinha, onde um “balão horário” (mais propriamente, uma esfera metálica oca) era içado ao topo de um mastro e largado à 1:00 da tarde local, em sincronia com o sinal enviado do OAL. Assim se dava a hora oficial à navegação e à cidade. Os erros da queda do balão, que raramente iam além de escassos décimos de segundo, eram publicados quinzenalmente no Diário do Governo. Este sistema, que fora desenvolvido por Oom e Campos Rodrigues, substituiu um velho balão já bastante descredibilizado, que era operado manualmente por pessoal do Observatório da Marinha. 

Os trabalhos astronómicos propriamente ditos que Oom realizou enquanto diretor do OAL foram escassos, resumindo-se a uma série de observações do cometa 1881III e um conjunto de instruções para o uso de instrumentos altazimutais na observação de passagens meridianas em trabalhos de campo, trabalho que foi publicado já a título póstumo. Apesar de os astrónomos do OAL se manterem bem informados do que se passava nos meios científicos internacionais, as dificuldades internas do observatório lisboeta faziam com que o sonho de o OAL vir a ser um líder na astronomia estelar ao lado de Pulkovo não passasse de uma miragem. Sob a direção de Oom, as colaborações internacionais reduziram-se ao apoio a oficiais norte-americanos que se deslocaram a Lisboa, entre 1877 e 1879, para realizarem medições de longitude. Em 1882, Oom tentou organizar uma expedição a Lourenço Marques (actual Maputo) para observar trânsito de Vénus de 1882, desta vez incluindo elementos da Universidade de Coimbra. Mas à semelhança do que sucedera em 1874, também esta expedição acabou por ser inviabilizada no parlamento. Em 1887, Oom participou na conferência realizada no Observatório de Paris em que foi lançado o projeto Carte du Ciel, mas Lisboa ficou de fora deste empreendimento, que envolveu um grande número de observatórios de todo o mundo na elaboração de um amplo catálogo fotográfico do céu. Em 1889, Oom foi nomeado pela Sociedade de Geografia de Lisboa, da qual era membro fundador, para representar Portugal no Congresso Internacional das Ciências Geográficas de Paris, mas não chegou a concretizar esta missão. 

Em 28 de Fevereiro de 1890, Oom foi promovido a contra-almirante, e condecorado com a Ordem da Avis. No dia 24 de Julho do mesmo, Oom cometeu suicídio, alegadamente por se ver progressivamente incapacitado por um tumor cerebral. Campos Rodrigues sucedeu-lhe no cargo de diretor do OAL.  Na prática, foi o seu filho Frederico Thomaz Oom (1864-1930) que, na capacidade de subdiretor, tomou a  liderança do OAL. Frederico Oom empenhou-se em promover o OAL dentro e fora do país, e em dar o melhor uso possível a várias técnicas e dispositivos de grande eficácia que Campos Rodrigues tinha vindo a desenvolver desde que ingressara no OAL. Conseguiu assim aumentar a visibilidade e o prestígio do Observatório ao qual o seu pai dedicara a maior parte de uma carreira à qual o desaire e a decepção não foram, de todo, estranhos.  

Pedro Raposo
(entrada adaptada por Ana Simões)

Arquivos

Observatório Astronómico de Lisboa – Arquivo Histórico
Academia de Ciências de Lisboa 
Arquivo Histórico da Marinha
Arquivo Histórico – Museu Nacional de História Natural e da Ciência 

Obras 

«Vergleichung des Armag-Catalog von Robinson mit der Aboer von Argelander», Bulletin de l’Academie Impériale des Sciences de St.-Pétersburg, III (1862) 415-428.

«Observations», in Otto Struve (ed.), Observations de Pulkova, vol. III (St.-Pétersburg: Imprimerie de L’Academie Impériale des Sciences, 1870), pp. 139-199.

 «Observations faites a l’instrument des passages établi dans le premier vertical», in Otto Struve (ed.), Observations de Pulkova, vol. III (St.-Pétersburg: Imprimerie de L’Academie Impériale des Sciences,), pp. 227-237.

«Aus einem Schreiben des Herrn Dr. F. A. Oom an den Herausgeber», Astronomische Nachrichten, 83 (1874) cols.  315-316.   

Considerações acerca da organização do Real Observatório Astronómico de Lisboa (Lisboa: Imprensa Nacional, 1875).

«Observations méridiennes de la grande comète 1881 III», Astronomische Nachrichten 104 (1882) cols. 7-12. 

Francisco da Ponte Horta, José Maria da Ponte Horta, Frederico Augusto Oom, Luiz Porfirio da Motta Pegado, «Parecer apresentado á Primeira Classe da Academia Real das Sciencias, ácerca de uma memoria do sr. Cypriano Jardim intitulada “Projecto de aerostato dirigivel”, com um supplemento e additamento», Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, XII, 48 (1888) 269-272.

Instruções sobre o emprego de um “universal” como instrumento de passagens (Lisboa: Imprensa Nacional, 1895).

Bibliografia sobre o biografado

Pedro M. P. Raposo, Polity, precision and the stellar heavens: the Royal Astronomical Observatory of Lisbon (1857-1910), tese de doutoramento, University of Oxford, 2010.

Pedro M. P. Raposo, ‘Observatories, instruments and practices in motion: an astronomical journey in the nineteenth century’, HoST – Journal of History of Science and Technology 8 (2013): 69-104.  

Pedro M. P. Raposo, ‘Charming tools of a demanding trade: the heritage of nineteenth-century astrometry at the Astronomical Observatory of Lisbon’, Rittenhouse – The Journal of the American Scientific Instrument Enterprise 22 (2008): 25-46.

Simas, Manuel Soares de Melo e

Horta, 10 julho 1870 — Lisboa, 10 agosto 1934

Palavras Chave: astrónomo amador e profissional, divulgação da ciência, republicanismo, Observatório Astronómico de Lisboa.

DOI: https://doi.org/10.58277/RCRY4303

Astrónomo com um percurso invulgar, Manuel Soares de Melo e Simas foi um cidadão multifacetado que integrou a ciência, a educação e a  divulgação científica, em estreita relação com a militância republicana.

Melo e Simas estudou na Escola Secundária da Horta e matriculou-se, em 1887, na Universidade de Coimbra, onde frequentou o curso preparatório de Artilharia. Ingressou na Escola do Exército em Lisboa, em 1889, onde completou o curso de Artilharia com distinção. Viria a reformar-se no posto de coronel, em 1930. Os conhecimentos matemáticos adquiridos na sua formação militar foram essenciais para o seu futuro trabalho em astronomia, área para a qual despertou provavelmente em Coimbra, tendo feito a transição, então invulgar, tanto na Europa como nos Estados Unidos da América, de astrónomo amador para profissional. Enquanto astrónomo amador, iniciou-se com observações de fenómenos astronómicos variados, incluindo eclipses, ocultações e estrelas variáveis, mas rapidamente se interessou pelo cálculo de trajetórias de planetas e cometas, em que se tornou exímio. 

Os resultados das primeiras observações de Melo e Simas como astrónomo amador foram enviados à Société Astronomique de France, em 1895. Nesse mesmo ano, tornou-se membro desta sociedade e, dois anos depois, em 1897, da British Astronomical Association. Entretanto Melo e Simas iniciara a sua participação no projeto internacional de identificação e classificação de estrelas variáveis, liderado por Edward Pickering, diretor do Harvard College Observatory. Em 1902, a série de observações de estrelas variáveis publicada na revista Annals of the Astronomical Observatory of Harvard College incluía algumas realizadas por Melo e Simas nos Açores com um telescópio de três polegadas. Ao interesse pelas observações, Melo e Simas juntou, desde cedo, o cálculo de efemérides e trajetórias de objetos celestes. Em 1901, calculou os elementos do planeta 1901 GV baseando-se em observações realizadas em Roma e publicadas na Astronömische Nachrichten, revista prestigiada onde continuou a publicar regularmente.

A necessidade de observações precisas que sustentassem os seus cálculos levou-o, ainda nos Açores, a contactar Oom, a quem solicitou dados astronómicos variados, iniciando-se, assim, o intercâmbio com o observatório, que incluiu ocasionalmente a utilização dos seus instrumentos. O primeiro destes contactos ocorreu a propósito do cálculo da órbita definitiva do cometa 1900 II, descoberto em 23 de Julho de 1900, próximo da eclíptica. Com as informações facultadas por Oom, em Abril de 1902, Melo e Simas publicou o artigo “Definitive orbit elements of Comet 1900 II”, na revista Astronömische Nachrichten.

Com exceção do curso de astronomia que frequentou no ano lectivo 1905 − 6 na Escola Politécnica de Lisboa, a cargo do matemático Pedro José da Cunha, a sua formação em astronomia foi a de um autodidata. Entre 1904 e 1907, correspondeu-se com o  subdiretor do Observatório Astronómico de Lisboa, Frederico Oom, o que provavelmente lhe valeu a eleição para membro correspondente da Academia de Ciências de Lisboa, em 1907 (tendo passado a efetivo em 1930). O reconhecimento das qualidades de Melo e Simas no domínio da astronomia matemática e da observação de estrelas variáveis valeu-lhe também a contratação como astrónomo  supranumerário de 1ª classe, em 1911 (Decreto de 8 Março de 1911). Trabalhou em astronomia observacional tal como era tradição  no Observatório Astronómico de Lisboa, tendo ascendido a subdiretor, em 1931.

A sua primeira tarefa no observatório consistiu na observação do planeta Marte com o Grande Equatorial, uma prática nova para ele, que realizou com sucesso, tendo, daí em diante, passado a usar sistematicamente este telescópio. Em 1913 e 1914, foi-lhe atribuído o serviço da hora. Contrariamente à prática normal, fê-lo com recurso ao círculo meridiano, que também usaria num projeto de revisão da determinação de ascensões retas de estrelas. A morosidade destas reduções fez com que a sua publicação só viesse a ser completada décadas depois, já postumamente.

Melo e Simas retomou também cálculos das soluções de órbitas de planetas e cometas, entre os quais a caracterização da órbita do cometa 1910a. Usou novas técnicas para a redução das observações provenientes de vários observatórios europeus e novos métodos para a análise de erros. Numa outra publicação apresentou os cálculos dos movimentos próprios de 40 estrelas circumpolares visíveis no hemisfério do sul, ainda pouco conhecido dos astrónomos. 

Melo e Simas abraçou também o ideal republicano, tendo participado desde o início nas atividades da Universidade Livre, fundada em 1912, instituição associada à Academia das Ciências de Portugal, criada em 1907, da qual foi membro fundador. Integrou o Corpo Expedicionário Português durante a Primeira Guerra Mundial, entre 21 de Fevereiro de 1917 e 23 de Julho de 1919, foi senador eleito pelo círculo da Horta, em 1915, membro da Federação Republicana Portuguesa, a partir 1919, e Ministro da Instrução Pública, por um mês, no governo meteórico de Ginestal Machado em 1923.  

Após o fim da Grande Guerra, Melo e Simas regressou ao Observatório. Na sequência da expedição realizada por Arthur Stanley Eddington à Ilha do Príncipe, para testar o encurvamento dos raios luminosos que rasavam o Sol, uma das previsões da teoria da relatividade generalizada de Albert Einstein, viria a interessar-se pelos resultados de expedições astronómicas realizadas com esse propósito. Depois do eclipse solar de 1922, e de um pedido sobre assunto desconhecido do editor da revista Astronömische Nachrichten, na noite de 7 de Maio de 1923, Melo e Simas aproveitou o Grande Equatorial para observar a ocultação da estrela Washington 5478 pelo planeta Júpiter. Em 1924, comunicou à Academia das Ciências de Lisboa o resultado inconcludente desta observação, explicando a sua importância, método utilizado, e analisando o resultado e margem de erro. Anteriormente, em Julho de 1922, na revista do observatório, Almanaque, já acentuara a importância da astronomia na comprovação de uma teoria física tão revolucionária como a teoria da relatividade. 

Melo e Simas interessou-se desde os tempos açorianos pela divulgação científica, que foi parte integrante da sua atividade enquanto cidadão-astrónomo. No contexto da agenda republicana que professou,  colaborou na imprensa diária e periódica e proferiu palestras e lições públicas, tendo algumas vindo a ser publicadas.

Nos Açores contribuiu regularmente para jornais como o Faialense, entre 1899 e 1902, e periódicos como A Folha, dirigido por Alice Moderno, entre 1902 e 1904. Em ambos, pregava o “evangelho positivista”, com o intuito de desmistificar erros comuns através de explicações científicas, por vezes apoiadas pela história, numa linguagem clara, recorrendo amplamente a analogias, e discutindo descobertas, a vida e obra de cientistas célebres, o papel das mulheres nas ciências, as relações entre as ciências, a sociedade e a religião, e, ainda, os valores da ciência, entre os quais destacava a honestidade, integridade e seriedade. 

Não admira, pois, que Melo e Simas tenha sido também figura central na apropriação da visita do cometa Halley, em 1910, para a agenda republicana. Com o objetivo de educar o cidadão comum nos caminhos da ciência, através de artigos de jornal no Diário de Notícias, comunicações e publicações, realizadas no contexto da Academia das Ciências de Portugal, Melo e Simas explicou o que era um cometa, como era composto, e discutiu as probabilidades de impacto com a Terra. Usou ainda a história das sucessivas passagens do cometa Halley para ilustrar a evolução comteana do conhecimento, da fase teológica à metafísica e à positiva, transformando este cometa, no que poderíamos designar um verdadeiro “cometa republicano”.

Logo no início das lições na Universidade Livre, em 1913, falou sobre a “Utilidade da astronomia. Grandeza e magnificência do Universo. Ideia geral da distribuição dos mundos” e outra sobre “Os eclipses do sol e da lua,” nelas procurando explicar a utilidade e funções das ciências e, cerca de dez anos depois, entre 19 de Novembro de 1922 e 27 de Maio de 1923, proferiu uma série de treze lições sobre “Relatividade − sua noção e preceitos”. 

Melo e Simas morreu em 1934. No elogio fúnebre publicado pela Academia das Ciências de Lisboa, o colega e astrónomo Manuel Peres  elogiou o facto de ter sido “estruturalmente astrónomo, astrónomo mais de alma do que de profissão”, assinalando a continuidade que parece existir entre os seus estudos sobre  as trajetórias de balas, realizados no âmbito militar, e a sua atividade de astrónomo especializado em trajetórias de astros. Definiu-o, também, como um “político matemático”, almejando conquistar adeptos através de métodos equivalentes aos das demonstrações algébricas, e não como um “político artilheiro”, que procurasse impor as suas ideias à força. A 10 de Junho de 2005, no semanário Expresso foi recordado como o único astrónomo português a realizar um teste à teoria da relatividade, o que não deixando de ser verdade obscurece a real importância de Melo e Simas para a história das ciências, que se encontra no seu papel como astrónomo, educador e divulgador das ciências, atividades integradas na agenda republicana que abraçou. 

Ana Simões

Arquivos

Observatório Astronómico de Lisboa – Arquivo Histórico
Academia de Ciências de Lisboa
Arquivo Histórico Militar
Arquivo Histórico do Museu de Ciências da Universidade de Lisboa

Obras

 “Elements of Planet (478) [1901 GV]”,  Astronömische Nachrichten, 158 (1902): 379−80.

Definitive orbit elements of Comet 1900 II. Kiel: Verlag der Astronömische Nachrichten, 1903.

“Sur les eléments définitifs de l’orbite de la comète 1910a”, Astronömische Nachrichten 193 (1912): 441−2.  

“Utilidade da Astronomia. Grandeza e magnificência do Universo. Ideia geral da distribuição dos Mundos”, Universidade Livre, 1ª lição (31 de Janeiro de 1913). Lisboa, Universidade de Livre, 1913.

A instrução científica e a educação positiva. Lisboa: Universidade Livre, 1913.

“Movimentos próprios de quarenta estrelas circumpolares austrais,” Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa (1ª classe, Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes) 7 p. II (1914): 1−23.

“O cometa de Halley. Sua influência sobre a Terra”, Trabalhos da Academia de Sciências de Portugal 3 (1915): 399−422.

 As classes médias e a questão económica. Lisboa, Federação Nacional Republicana, 1920.

“Ocultação de uma estrela por Júpiter”, Jornal de Sciencias Matemáticas, Físicas e Naturais da Academia de Sciencias de Lisboa 19 (1924).

“Positions d’étoiles en ascension droite”, Bulletin de l’Observatoire Astronomique de Lisbonne (Tapada) 5 (1935) : 33−39; 6 (1936): 41−46; 7 (1936): 47−53; 8 (1937): 55−61; 9 (1937): 63−69. 

Bibliografia sobre o biografado

Arruda, L. M., “Manuel Soares de Melo e Simas, militar, astrónomo e político. Abordagem à sua biografia”, in O Faial e a Periferia Açoriana nos séculos XV a XX. Horta: Núcleo Cultura da Horta, 2006,  477−519.

Mota, Elsa, Paulo Crawford e Ana Simões, “Einstein in Portugal. Eddington’s 1919 expedition to Principe and the reactions of Portuguese astronomers (1917−1925).” British Journal for the History of Science 42 (2009): 245−73. 

[Peres, Manuel], “A Academia das Ciências de Lisboa sofreu uma dolorosa perda”, in Observatório Astronómico de Lisboa – Arquivo Histórico, s/d, Manuel Soares de Melo e Simas, processo individual, texto dactilografado.

Simões, Ana, Isabel Zilhão, Maria Paula Diogo e Ana Carneiro, “Halley turns Republican. How the Portuguese press perceived the 1910 return of Halley’s comet”, History of Science 51 (2013): 199−219.

Simões, Ana e Luís Miguel Carolino, “The Portuguese astronomer Melo e Simas (1870-1934). Republican ideals and popularization of science”, Science in Context 27 (2014): 49−77.

Ávila, Joaquim Tomás Lobo de (conde de Valbom)

Santarém, 15 novembro 1819 – Lisboa, 1 fevereiro 1901

Palavras-chave: École de Ponts et Chausées, caminhos-de-ferro, saint-simonismo, Regeneração.

DOI: https://doi.org/10.58277/QFGF3773

Joaquim Tomás Lobo d’Ávila (Joaquim Thomaz Lobo d’Avila) (Santarém, 15 de novembro de 1819 – Lisboa, 1 de fevereiro de 1901), Fidalgo-Cavaleiro da Casa Real e do Conselho de Sua Majestade, Grã-Cruz das Ordens de Cristo (Portugal), de São Maurício, São Lázaro e Sardenha (Itália) e da Rosa (Brasil), Cavaleiro da Ordem de Avis, foi um articulista, deputado, par, ministro, diplomata e engenheiro português que esteve intimamente ligado ao planeamento e execução da política de fomento do Fontismo e aos planos de modernização do país da segunda metade do século XIX. 

Era filho de Joaquim Anastácio Lobo d’Ávila, capitão de infantaria e grande proprietário no Ribatejo, e de Mariana Vitória de Mendonça Pessanha Mascarenhas. Foi casado (desde 19 de novembro de 1857) com Maria Francisca de Paula de Orta, filha de António José de Orta, um abastado empresário espanhol, o que lhe permitiu consolidar a sua fortuna pessoal (e assim manter a sua independência intelectual). O casal teve dois filhos: Leonor e Carlos Lobo d’Ávila (futuro parlamentar, ministro e um dos Vencidos da Vida).

Estudou no Colégio Militar, onde foi aluno brilhante. No Exército, assentou praça como aluno, aspirante (1839) e alferes de infantaria (1840). Neste ano, depois de ter completado no Colégio Militar os cursos preparatórios para a Escola Politécnica, matriculou-se nesta instituição. Foi também por esta altura (1841) que se iniciou na Maçonaria, na loja Filantropia, com o nome de Viriato.

Antes, em 1839, participou na fundação da Sociedade Escolástico-Filomática, juntamente com Rodrigo da Fonseca Magalhães, Rebelo da Silva e Almeida Garrett. Entre janeiro e agosto de 1840 a Sociedade publicou O Cosmorama Litterario, um semanário dedicado à divulgação literária e científica que defendia uma mudança da sociedade nacional pelo progresso intelectual em detrimento da revolução pelos motins armados. 

No entanto, em 1844, aderiu à revolta de Torres Novas contra Costa Cabral, na qual também participaram outros membros da futura elite tecnocrata nacional como Fontes Pereira de Melo, Vitorino Damásio ou João Crisóstomo de Abreu e Sousa. O golpe fracassou e Lobo d’Ávila fugiu para França. Em Paris, frequentou a École de Ponts et Chausées, como elevé libre. A abonada situação financeira da sua família permitiu-lhe a frequência deste plano de estudos. A partir de 1846, a sua ausência em Paris foi legitimada e apoiada pelo governo, que o passou a abonar com o soldo da sua patente acrescido de um bónus de 12 mil réis/mês.

Na capital francesa, privou com Nunes de Aguiar, Albino de Figueiredo, Sousa Brandão ou Gromicho Couceiro, homens que, como ele, viriam a desempenhar um papel relevante no programa de fomento da segunda metade do século XIX. Lobo d’Ávila terminou o curso com excelentes classificações, tendo também participado nos trabalhos práticos das obras públicas francesas. Além dos ensinamentos em Engenharia, estudou Geologia, Economia Política e Direito Administrativo.

Antes de regressar a Portugal, em 6 de junho de 1848, presenciou os eventos da Revolução de 1848, a cujos princípios aderiu, tendo inclusivamente cumprimentado o novo governo da República Francesa.

De novo em Portugal, ingressou na carreira de Obras Públicas a 15 de novembro de 1849 como engenheiro em Santarém, segundo o próprio, a pedido do ministro da Fazenda, António José de Ávila, que lhe garantiu que isso nada tinha de político. Contudo, foi-lhe alegadamente dito que devia abster-se de manifestações políticas caso quisesse manter o cargo. Lobo d’Ávila pediu então a demissão e exilou-se em Torres Novas.

Voltou às lides jornalísticas, tendo fundado em janeiro de 1850 Atheneu: Jornal Litterario, d’Administração e Economia Social, juntamente com homens que formariam parte da elite que tomaria conta dos destinos do país na segunda metade de Oitocentos: António de Serpa, Andrade Corvo ou Albino de Figueiredo, a quem se juntaram mais tarde João Crisóstomo, Daniel da Silva ou Casal Ribeiro. 

No seu primeiro número, o Atheneu praticamente listou todos os princípios saint-simonistas que norteariam a política da Regeneração: Portugal era um país atrasado e o caminho para o progresso passava, não pelas revoluções políticas, mas sim pela aplicação dos preceitos da ciência e pelo investimento no desenvolvimento tecnológico, numa simbiose entre iniciativa privada e apoio público. Nos meses seguintes, os seus membros discutiram questões ligadas às obras públicas, à ciência, ao desenvolvimento dos transportes e à reforma administrativa do Estado, de modo que o Atheneu funcionou como um protótipo do Conselho de Obras Públicas.

Nos 15 meses que durou a publicação, Lobo d’Ávila assinou 17 textos, nos quais mostrou a sua adesão ao saint-simonismo, defendendo que a regeneração do país se faria pela melhoria das vias de comunicação, introdução de práticas científicas, paz social e política, reforma administrativa do Estado, facilitação do crédito, liberalização do regime de propriedade e reforma das pautas (no sentido de uma proteção moderada à indústria), incluindo uma união aduaneira com Espanha. Com a criação de uma tarifa alfandegária ibérica única, as mercadorias procurariam naturalmente o porto mais conveniente. Lisboa seria a grande beneficiada, em virtude da sua vantajosa posição geográfica, sobretudo se fosse servida de uma ferrovia até Madrid. Lobo d’Ávila dedicou um artigo ao caminho-de-ferro após uma companhia inglesa ter apresentado ao governo uma proposta para a construção da linha de Lisboa a Badajoz. Considerou o projeto “esperançoso”, com um prazo (quatro anos e meio) e uma garantia de juro (4%) razoáveis, mas um orçamento (3 mil contos) insuficiente (deveria ser de 3600 contos). A maior preocupação de Lobo d’Ávila era, porém, a execução de um estudo prévio para um sistema geral de transportes. Esta foi uma necessidade defendida por outros camaradas seus (e novamente por ele próprio em 1854) ao longo de toda a segunda metade de Oitocentos, mas que só foi atendida pelo governo no final da centúria com a lei de 14 de julho de 1898. 

Em Fevereiro de 1851 tornou-se regente da cadeira de caminhos-de-ferro da Escola do Exército. A nomeação era o reconhecimento da sua competência, uma vez que a política de contratação de docentes da Escola obedecia principalmente ao critério do mérito no sentido de se tornar uma instituição de prestígio.

Advinda a Regeneração, fez parte (juntamente com o barão da Luz, Almeida Garrett, Joaquim Larcher e Pereira da Silva) da comissão nomeada pelo governo para apreciar a proposta feita pelo britânico Hardy Hislop para construir o caminho-de-ferro de Lisboa à fronteira. Lobo d’Ávila era o mais bem preparado elemento para apreciar a proposta. O relatório final, de 20 de outubro de 1851, por ele redigido, rejeitava-a e recomendava a abertura de concurso, que viria a ser ganho pelo inglês. O parecer não se limitou à análise da proposta de Hislop, tendo refletido sobre vários outros aspectos ligados à ferrovia: vantagens económicas e políticas, forma de construção (Estado ou iniciativa privada), tipo de subsídio público concedido (no caso de se optar pela construção por privados), melhor diretriz para a linha internacional, problemática das ligações fronteiriças (necessidade de um acordo prévio com Espanha), características técnicas da via e custo previsto. 

Mais tarde, quando o contrato se encontrava em discussão no parlamento, Lobo d’Ávila defendeu-o, não só como deputado mas também num opúsculo publicado em 1853, validando a ação do governo na subscrição de um terço do capital, justificando o alto valor do orçamento (era uma linha internacional de via dupla preparada para grandes velocidades), explicando os factores que influíam no custo da ferrovia e legitimando o subsídio concedido ao concessionário (semelhante ao praticado noutras nações).

Em 14 de outubro de 1852, já como tenente, foi nomeado secretário do Conselho Superior de Obras Públicas, o órgão consultivo do ministério que reunia a elite técnica nacional. A acumulação deste cargo com a de deputado e com a de fiscal do governo na linha do leste (desde 29 de novembro de 1856), forçou-o a deixar o ensino na Escola do Exército (a 9 de dezembro de 1856). Em 24 de abril de 1861, foi promovido a inspetor de Obras Públicas, mas manteve-se ligado àquele corpo consultivo (com suas diferentes denominações) quase ininterruptamente até 1880 e depois de 1892, firmando centenas de pareceres e desempenhando muitas vezes a importante função de relator. Em 1895 e 1899 chegou a vice-presidente daquele órgão (o presidente era por inerência o ministro).

No Conselho Superior, Lobo d’Ávila esteve no centro da discussão sobre a modernização do país, na medida em que aquele órgão era ouvido sobre todas as questões ligadas a obras públicas e minas, incluindo detalhes técnicos e administrativos. Lobo d’Ávila esteve assim ligado ao debate técnico-administrativo sobre a melhoria das condições sanitárias das cidades, sobre a formação de engenheiros, sobre a introdução de novas formas de locomoção, 

sobre a construção de portos, estradas e caminhos-de-ferro (incluindo a importante questão da definição de um sistema geral de transportes) tendo sempre em mente o grande objetivo que norteou o Fontismo de ligar os ancoradouros do litoral à fronteira e assim aproveitar a favorável posição geográfica do país no extremo ocidental da Europa.

Além da carreira no ministério das Obras Públicas, Lobo d’Ávila teve também uma longa carreira parlamentar. Esteve na câmara baixa entre 1853 e 1874 (falhando apenas a legislatura de 1857–1858). Fez parte das comissões de Fazenda e Obras Públicas, desempenhando por várias vezes o papel de relator. Intervinha no hemiciclo muito frequentemente, defendendo a construção de caminhos-de-ferro, um maior investimento na formação de engenheiros ou a necessidade de reformas administrativas, sem embargo de também se integrar nas lutas puramente político-partidárias. 

Começou por militar no Partido Regenerador, mas afastou-se deste grupo em 1859. Neste ano, ainda nos regeneradores, liderou os ataques parlamentares exigindo a rescisão do contrato com Morton Peto (para construir a linha Porto-Lisboa) que levaram à queda do governo histórico. Porém, não seria convidado para o executivo regenerador seguinte. O afastamento terá sido assim motivado por ambição pessoal. Por outro lado, Lobo d’Ávila sempre defendeu posições progressistas que não se coadunavam com o conservadorismo regenerador. Aliás, quando foi convidado para o governo histórico em 1862, integrou a facção mais radical do partido, a chamada unha negra (em oposição à unha branca, mais conservadora). 

Em 1860, fundou o jornal A Politica Liberal, de oposição ao Partido Regenerador, mas que não se coibia de criticar os históricos, como por exemplo no caso das aclarações do contrato Salamanca (para as linhas de norte e leste). Lobo d’Ávila fundou ainda o Commercio de Lisboa (1863–1865) e a Gazeta do Povo (1869–1872), tendo também colaborado n’A Revolução de Setembro, Civilização e Revista Universal. Apesar da alta taxa de analfabetismo em Portugal no século XIX, a imprensa revestiu-se de uma grande importância para a sociedade e a política nacionais da época, como meio de defesa dos respetivos programas e ideologias políticas, e no caso dos engenheiros, para a defesa da política de melhoramentos materiais e dos seus interesses corporativos. Lobo d’Ávila desempenhou também um relevante papel neste palco. 

Foi com os históricos e com o marquês de Loulé que sobraçou pela primeira vez a pasta de ministro: em 21 de fevereiro de 1862 foi nomeado titular da Fazenda, posto que ocupou até 5 de março de 1865 e que acumulou interinamente com a pasta das Obras Públicas entre 12 de setembro e 6 de outubro de 1862 (tendo sido entrementes promovido a capitão, em 1864). Como ministro, procurou aplicar os princípios que defendera anteriormente, consolidando o crédito nacional, instituindo o crédito predial, reformando os serviços aduaneiros e a Casa da Moeda, gerindo o financiamento da construção das linhas de norte e leste e abolindo o monopólio do tabaco, o regime vincular e os morgados.

Entretanto, subia na hierarquia da Maçonaria, chegando ao posto de Venerável e de Grão-Mestre da Confederação Maçónica (1863). Em Março de 1864, não conseguiu a reeleição como Grão-Mestre, constituindo em Maio seguinte a Confederação Maçónica Progressista de Portugal.

Em finais da década de 1860, foi uma das faces da oposição ao governo das economias do partido reformista (1868–1869), que pôs em causa a política de melhoramentos materiais e atingiu a própria classe dos engenheiros. Em 1868, Lobo d’Ávila e João Crisóstomo expunham a indispensabilidade da existência do corpo de engenharia civil (criado quatro anos antes e ameaçado de extinção pelo governo reformista neste ano), pois sem engenheiros civis, Portugal parava o seu processo de modernização e afastava-se das restantes nações europeias. O opúsculo era uma clara demonstração de que os engenheiros se viam como verdadeiros defensores do interesse público. A oposição àquela política manifestou-se também na formação em 1869 da Associação de Engenheiros Civis Portuguezes de que Lobo d’Ávila foi membro fundador. 

Em 1869, os históricos regressaram ao poder, confiando a Lobo d’Ávila as pastas das Obras Públicas e Guerra (11 de agosto de 1869 a 19 de maio de 1870). Como titular das Obras Públicas, reformou o serviço técnico do ministério, os serviços geodésicos e geológicos, os correios e o ensino industrial e agrícola e ordenou a execução de obras na praça do Campo Grande. A sua carreira como ministro foi interrompida pela Saldanhada de 19 de maio de 1870. 

Em 1873, foi promovido a major e em 1874 publicou Estudos de administração, que lhe valeu a nomeação como sócio efetivo da Academia Real das Ciências. Na obra, repleta de comparações com realidades internacionais, o autor retoma a defesa de uma descentralização administrativa, do privilégio do papel do município, de uma maior relevância do parlamento na elaboração dos regulamentos às leis, da criação de um contencioso administrativo e da reforma do Conselho de Estado.

Em 16 de maio de 1874, foi nomeado Par do Reino e a 7 de maio de 1875 foi-lhe atribuído o título de conde de Valbom. 

Na câmara alta do parlamento, manteve-se um parlamentar ativo, se bem que menos interventivo do que na câmara dos deputados. Integrou novamente as comissões de Fazenda e Obras Públicas, sendo convidado várias vezes para relator. 

Com a morte do duque de Loulé (1875), Lobo d’Ávila afastou-se da política partidária e da carreira técnica e enveredou por uma carreira diplomática. Entre 1876 e 1878 foi ministro plenipotenciário em Madrid, com instruções para suster junto do governo espanhol as influências dos partidos políticos locais que defendiam a União Ibérica. Por esta razão, não participou na grande discussão sobre o plano geral da rede ferroviária que teve lugar pela mesma altura na Associação de Engenheiros Civis.

De regresso a Portugal, foi indigitado conselheiro de Estado. Em 1881, foi nomeado para a comissão de inquérito industrial. Em 1883 ascendeu a coronel de engenharia e três anos depois foi promovido na carreira de Obras Públicas a engenheiro de primeira classe. 

Voltou à carreira diplomática em 1886 como enviado extraordinário em Paris, onde foi incumbido da missão de cativar França para o lado português na questão do mapa cor-de-rosa. Ainda em Paris, ordenou a cópia na Biblioteca Nacional de vários documentos dos séculos XVI a XVIII referentes a Portugal, que haviam sido extraviados para França durante a invasão napoleónica de 1808. 

Regressou a Portugal e à política ativa em 1890, no rescaldo da crise do Ultimato. Integrou o governo apartidário do seu camarada João Crisóstomo, no qual sobraçou a difícil pasta dos Negócios Estrangeiros (de 21 de maio de 1891 a 17 de janeiro de 1892) e interinamente a da Marinha e Ultramar. Lobo d’Ávila acompanhou apenas a fase final das negociações com Inglaterra, mas foi ele quem assinou o tratado de 11 de Junho de 1891. Coube-lhe também negociar com Londres a renovação do Tratado da Índia de 1878, que expirava no início de 1892 e que significava o fim de uma compensação de 160 contos anuais com os quais Portugal pagava a garantia de juro do caminho-de-ferro e porto de Goa. As negociações seriam interrompidas pelo negociador inglês e o acordo não seria renovado. 

Esta foi a última experiência governamental de Lobo d’Ávila, após o que voltou aos trabalhos de engenheiro: em 1892, voltou ao Conselho Superior de Obras Públicas, fez parte da comissão encarregada de examinar as reclamações dos empreiteiros do porto de Lisboa e tornou-se inspetor de primeira classe dos edifícios públicos; em 1899 ascendia à categoria de inspetor-geral. Até à sua morte em 31 de Janeiro de 1901 dedicou-se aos afazeres da sua arte, sendo considerado pelos seus pares na hora fatídica como o decano dos engenheiros portugueses. 

Um revolucionário em jovem, Lobo d’Ávila tornou-se em Paris um fiel seguidor dos ideais saint-simonianos, de modo que quando regressou a Portugal já estava convicto de que a regeneração do seu país não passava pelas barricadas da revolução, mas sim pela paz social e pelo conhecimento técnico-científico, que fomentassem o desenvolvimento dos transportes, a facilitação do crédito e o progresso dos que produziam riqueza. Desde a década de 1840 fez parte e conviveu com um grupo de homens que apoiavam os mesmos ideais de progresso e com quem partilhou quase ininterruptamente até à sua morte a sala de reuniões do Conselho de Obras Públicas, as bancadas do parlamento ou as cadeiras do governo. Lobo d’Ávila não era um técnico de campo como outras camaradas seus, embora estivesse habilitado para tal. Como engenheiro-político ou econo-engenheiro, a sua ação fez-se sentir sobretudo no planeamento e execução ao mais alto nível do Estado de um projeto estratégico de modernização do país. Sem nunca atingir o protagonismo político de homens como Fontes Pereira de Melo, António José de Ávila ou Luciano de Castro, Lobo d’Ávila, conde de Valbom, foi um dos principais atores do Fontismo, tendo perseguido ao longo da sua carreira como ministro, parlamentar e engenheiro os ideais saint-simonianos do progresso.

Hugo Silveira Pereira

Arquivos

Lisboa, Acervo Infraestruturas, Transportes e Comunicações, processo individual de Joaquim Tomás Lobo d’Ávila.
Lisboa, Arquivo Histórico Militar, Cx. 1751, processo individual de Joaquim Tomás Lobo d’Ávila.
Paris, École National de Ponts et Chausées. Correspondance au directeur: 1847-1851.

Obras 

Lobo d’Ávila, Joaquim Tomás. 1850a. “Caminho de ferro de Lisboa á fronteira.” Atheneu 47, 24 de novembro.

—. “Condições de que depende o progresso da nossa industria.” O Atheneu 3 (20 de janeiro 1850b).

—. “Da importancia dos estudos de economia politica.” O Atheneu 15 (14 de abril 1850c).

—. “Do ensino profissional, e noviciado administrativo, como base da carreira d’administração publica.” O Atheneu 8 (10, 19 e 22, 24 de fevereiro, 10 de março, 12 de maio e 2 de junho 1850d).

—. “Protecção e liberdade do commercio.” O Atheneu 27, 37 e 41, 7 de julho, 15 de setembro e 13 de outubro.

—. Reflexões sobre o contracto para a construcção do caminho de ferro de leste. Lisboa: IN, 1853.

—. Estudos de administração. Lisboa: Tipografia Universal, 1874.

Sousa, João Crisóstomo de Abreu e, e Joaquim Tomás Lobo d’Ávila. Exposição dirigida pelos conselheiros João Chrysostomo d’Abreu e Sousa e Joaquim Thomaz Lobo d’Avila ao Ex.mo Sr. Marquez de Sá da Bandeira Presidente do Conselho de Ministros em nome dos Engenheiros Civis Portugueses. Lisboa: IN, 1868.

Bibliografia sobre o biografado

Macedo, Marta Coelho de. Projectar e construir a nação. Engenheiros e território em Portugal (1873-1893). Coimbra: Universidade de Coimbra, 2009.

Matos, Ana Cardoso de. “Asserting the Portuguese Civil Engineering Identity: the Role Played by the École des Ponts et Chausées.” In Jogos de Identidade Profissional: os Engenheiros entre a Formação e a Acção, ed. Ana Cardoso de Matos et al., 177-208. Lisboa: Colibri, 2009.

Matos, Ana Cardoso de e Maria Paula Diogo. “Le Rôle des Ingénieurs dans l’Administration Portugaise, 1852-1900.” Quaderns d’Història de l’Enginyeria 10 (2009): 351-365.

Mónica, Maria Filomena. “Joaquim Tomás Lobo de Ávila (1819-1901).” In Dicionário Biográfico Parlamentar, ed. Maria Filomena Mónica, vol. 1, 244-247. Lisboa: ICS, 2005–2006.

Revista de Obras Públicas e Minas, 33, 1902, 14-19

Choffat, Léon-Paul

Porrentruy, Suíça, 14 março 1849 — Lisboa, 6 junho 1919

Palavras-chave: Mesozoico, cartografia geológica, geologia aplicada, tectónica.

DOI: https://doi.org/10.58277/UYCS1979

Léon-Paul Choffat nasceu no seio de uma família abastada, filho de Marie Anne Jeanne Baptiste Béchaux (1812−1881) e de Henri Joseph Choffat (1797−1869), banqueiro e industrial. Durante a infância, era visita da casa paterna o naturalista e iniciador da tectónica do Jura, Jules Thurmann, discípulo de Élie de Beaumont. Choffat foi diretamente influenciado por dois alunos de Thurmann, Jean-Baptiste Thiessing e Joseph Ducret, então professores da Ecole Cantonale de Porrentruy, onde se matriculou em 1861, acompanhando-os em excursões geológicas. Após terminar a educação secundária, foi enviado para Besançon para adquirir a formação necessária a uma carreira na banca; simultaneamente, frequentou a Faculdade de Ciências local. Foi nesta altura que se tornou sócio da Société d’Emulation du Doubs, uma associação promotora desta região francesa, vindo a publicar trabalhos sobre a geologia da região do Jura nas respetivas Mémoires, entre 1875 e 1879.

Regressado da estadia de três anos em França, Choffat ingressou, em 1871, na Escola Politécnica e na Universidade de Zurique, onde frequentou cursos de química e de ciências naturais. O falecimento de seu pai, aliado à fortuna pessoal herdada e à influência do arqueólogo e historiador da região, Auguste Quiquerez, e do médico e geólogo, Jean Baptiste Greppin, levaram-no a seguir a sua vocação de geólogo, agora sem constrangimentos. Durante este período, beneficiou do regime de aulas de campo de Arnold Escher von der Linth e Albert Heim, figuras de relevo na geologia suíça, e Heim na sua institucionalização. Na universidade e, mais tarde, nas expedições pelos Alpes, na região do Jura, Choffat relacionou-se com Ludwig von Loczy, Oswald Heer, que viria a colaborar com os serviços geológicos portugueses, Karl Mayer-Eymar e Jules Marcou. Depois de concluir os estudos superiores na Universidade de Zurique, em 1875, foi nomeado Privatdozent, na Escola Politécnica local para os cursos de geologia e paleontologia animal, lecionando também na Faculdade de Medicina; porém, rapidamente deixou a docência devido a uma laringite crónica, sendo aconselhado a mudar-se para um clima mais ameno. Em resultado das investigações realizadas no Jura francês e na região de Berna, tinha já publicados diversos trabalhos, em França e na Suíça, quando, em 1878, se deslocou a Paris para a primeira reunião do Congresso Internacional de Geologia (CIG).

A atividade científica de Choffat decorreu num período de franco desenvolvimento da geologia, então já em fase de profissionalização e especialização. Desde meados da década de 1830, tinham sido criados nos diversos países, incluindo Portugal, instituições estatais destinadas ao levantamento geológico e à elaboração de cartografia geológica, decorrentes da necessidade de controlar o território para melhor o administrar. A exploração de recursos minerais e hidrológicos intensificou-se dada a sua utilização em importantes sectores económicos como a produção industrial, enquanto matérias-primas e combustíveis, construção civil, agricultura, abastecimento de águas potáveis e exploração de águas mineromedicinais. Sendo a geologia uma ciência territorial que comporta uma dimensão histórica e tendo as unidades geológicas, frequentemente, um carácter transnacional, nela convergiram tensões entre nacionalismo e internacionalismo, numa época em que a ciência e a tecnologia se tornaram argumentos decisivos na afirmação da supremacia das diversas potências europeias. Estas tensões ficaram bem patentes nas reuniões do CIG, fórum internacional que reunia periodicamente com o intuito de normalizar a linguagem verbal e visual da geologia, em matéria de divisões cronostratigráficas e respetiva nomenclatura e do código de cores a usar na cartografia geológica, a última adquirindo um carácter simbólico ao integrar a parafernália de símbolos nacionais. 

Foi, precisamente, na reunião do CIG de 1878 que Choffat travou conhecimento com Carlos Ribeiro, então diretor da Secção dos Trabalhos Geológicos, organismo do Ministério da Obras Públicas, Comércio e Indústria, que tinha por missão o levantamento geológico de Portugal continental e a produção de cartografia geológica. Ribeiro convidou Choffat a colaborar com a instituição portuguesa não só para que este realizasse o estudo do Mesozóico, até aí inexplorado devido à falta de especialistas em Portugal, mas também fortalecesse a estratégia de internacionalização dos serviços que chefiava. Choffat, por seu turno, estava simultaneamente interessado em passar algum tempo num clima mais suave e em investigar a geologia de Portugal, o que lhe garantiria uma produção original e sem concorrência, facilitando a sua projeção na comunidade científica internacional. 

Choffat esboçou um programa de trabalho e negociou modos de prevenir conflitos, assegurando-se de que não haveria sobreposição com trabalho de colegas portugueses, ao mesmo tempo que clarificou questões de propriedade intelectual e dos fósseis a recolher, propondo-se ser um colaborador temporário, a título gratuito. Ribeiro respondeu favoravelmente ao plano e Choffat veio para a Lisboa. A correspondência endereçada à Secção dos Trabalhos Geológicos dá indicações acerca das suas atividades no ano e meio seguinte e da rede de contactos que tinha na Suíça e em França.

Choffat chegou a Portugal em Novembro de 1878, passando os últimos dois meses deste ano a examinar a coleção de fósseis da Secção; em Janeiro de 1879, foi-lhe oficialmente requerido que estudasse as formações do Mesozóico. Bem integrado, gozava de uma autonomia significativa, cedo desempenhando um papel ativo na instituição, pois apercebeu-se das limitações existentes, nomeadamente da sua reduzida dimensão e falta de recursos bibliográficos, estabelecendo contactos com livreiros estrangeiros, no sentido de adquirir obras atualizadas para a modesta biblioteca.

As investigações sobre o Mesozóico resultaram na colheita de fósseis cuja descrição e classificação requereram colaboração externa. No início de 1880, decidiu contactar Heer, reputado especialista na flora do Terciário, que se mostrou interessado nos seus achados e se prontificou a auxiliá-lo, mas no quadro de uma colaboração formalizada com a Secção dos Trabalhos Geológicos. Como Ribeiro não conhecia Heer, Choffat funcionou como intermediário entre ambos e, mais tarde, com outros especialistas: o paleontólogo suíço Perceval de Loriol, e o cristalógrafo e mineralogista austríaco Gustav Adolph Kenngot que colaboraram com os serviços geológicos portugueses. 

A estadia de Choffat em Portugal produziu resultados capazes de contribuir para a consolidação da sua posição no panorama científico internacional e a confiança nele depositada levou Ribeiro a investi-lo de responsabilidades de diplomacia científica. Quando se deslocou a Paris, em Junho de 1880, para apresentar um trabalho na Société Géologique de France sobre as investigações do Jurássico realizadas em Portugal usou a oportunidade para, a pedido de Ribeiro, auscultar a disponibilidade dos colegas de viajarem até Lisboa para o Congresso de Arqueologia e Antropologia Pré-histórica que teve lugar nesse mesmo ano. 

A sua primeira estadia em Portugal terminou, em 1880, ano em que regressou a Porrentruy para depois casar, em Besançon, com Jeanne Claudette Logerot (1859−1928) de quem teve nove filhos. Embora à data mantivesse o lugar de professor em Zurique, manifestou a Ribeiro o desejo de voltar a Portugal. Entretanto, o ano de 1882 é marcado pela morte deste, sucedendo-lhe na direção da Secção dos Trabalhos Geológicos, Joaquim Filipe Nery da Encarnação Delgado, que seguiu orientações idênticas no que se referia à colaboração externa, dado o reduzido pessoal dos serviços e a inexistência de uma comunidade local de geólogos. 

Choffat regressou definitivamente a Portugal, em 1883, começando a trabalhar para o governo português, na Secção dos Trabalhos Geológicos, sob contrato sucessivamente prorrogado até à sua morte. Nesse mesmo ano, iniciou-se a publicação da primeira revista portuguesa especializada em geologia, as Comunicações da Secção dos Trabalhos Geológicos, denotando a capacidade da instituição de produzir, regularmente, investigação científica. 

A produção científica de Choffat foi vasta, abrangendo diversas disciplinas da geologia, ou com ela relacionadas: estratigrafia e paleontologia do Mesozoico, cartografia geológica, tectónica, sismologia, geologia económica, hidrogeologia, paleoantropologia e arqueologia. Entre 1880 e 1885, publicou sobre o Lias (Jurássico Inferior) e Dogger (Jurássico Médio), a Norte do Tejo, e sobre o Cretácico nas regiões de Lisboa, Sintra e Belas. Como era então comum, dividiu o Jurássico em Lias, Malm (Jurássico Superior) e Dogger, estando entre os primeiros geólogos europeus a defender a separação do Calloviano do Jurássico Superior e a colocá-lo no Dogger. Em 1882, apresentou à Société Géologique de France uma nota sobre estruturas diapíricas em Portugal que designou vales tifónicos, assunto sobre o qual publicou nos dois anos seguintes. Neste período, teve ainda assento nas comissões de nomenclatura geológica, lideradas pela Secção dos Trabalhos Geológicos, no âmbito do CIG. 

Com a reestruturação de 1886, a Secção dos Trabalhos Geológicos passou a denominar-se Comissão dos Trabalhos Geológicos, dissociando-se da Direcção-Geral dos Trabalhos Geodésicos, em fase de declínio, ficando formalmente ligada ao sector mineiro pela sua integração na Direcção-Geral das Obras Públicas e Minas. A partir de então, a Comissão passou a ser obrigada a recrutar o seu pessoal entre os engenheiros de minas já ao serviço do Ministério das Obras Públicas, certamente para poupar verbas e satisfazer esta já bem posicionada clientela. De salientar que somente Choffat e depois Wenceslau de Lima, ambos no regime de contratados, tiveram o título de geólogo, facto indicativo de que o estatuto profissional dos engenheiros prevalecia sobre o dos geólogos no seio da instituição, situação que se prolongou pelas primeiras décadas do século XX.

De 1885 em diante, Choffat prosseguiu com investigações sobre o Cretácico e o Jurássico, corrigindo interpretações de Ribeiro. Apesar de este ter definido as principais características geológicas do território antes de 1860, os seus conhecimentos sobre as faunas e floras do Cretácico e do Jurássico estavam, naturalmente, limitadas pelo conhecimento da época, o que explica que não tenha podido caracterizar o Bathoniano (Jurássico Médio), o Senoniano (Cretácico Superior), hoje em desuso, e estabelecer os contactos do Jurássico com o Triásico. Choffat localizou os depósitos bathonianos e estabeleceu a estratigrafia pormenorizada de todos os andares do Jurássico, descrevendo a sua fauna em Portugal. Propôs a criação do andar Lusitaniano (1885 e 1893) para o conjunto estratigráfico Oxfordiano Superior – Kimmeridgiano, localizado no Jurássico, o que foi temporariamente aceite. Embora nunca se tenha deslocado a África, desenvolveu, entre 1886 e 1889, estudos de geologia das colónias portuguesas neste continente, analisando amostras e notas enviadas por diversos viajantes. 

Em 1887, Choffat solicitou que nos trabalhos de levantamento geológico auferisse de ajudas de custo para o serviço de campo iguais às dos engenheiros de minas, alegando ser mais antigo no serviço do governo português do que o primeiro classificado dos engenheiros subalternos, pretensão despachada favoravelmente. No ano seguinte, requereu que o seu vencimento de 60 mil reis fosse equiparado ao dos engenheiros chefes de minas, no valor de 100 mil reis; no entanto, foram-lhe apenas abonados 90 mil reis

Neste período, a produção científica da Comissão dos Trabalhos Geológicos assentava, fundamentalmente, nos trabalhos de Choffat e de Delgado, recorrendo-se novamente a colaborações estrangeiras, em certos casos facilitadas por Choffat. É o caso de Loriol que analisou as faunas do Cretácico e do Jurássico, em 1888, e, posteriormente, em 1890 e 1896. Mais uma vez, os serviços geológicos foram reestruturados, em 1892, passando a designar-se Direção dos Trabalhos Geológicos, continuando Nery Delgado a gerir os seus destinos. 

No plano da cartografia, Choffat e Nery Delgado baseados na carta geológica de Portugal de 1876, na escala de 1:500 000, apresentaram os esboços da revisão desta carta, nas reuniões do CIG de Londres (1888) e de Zurique (1894), publicando uma nova versão, em 1899, que foi premiada com uma medalha de ouro, na Exposição Universal de Paris de 1900. Em conjunto com Nery Delgado, Choffat colaborou na elaboração do Mapa Geológico de España, na escala 1: 400 000 (folhas 5, 9 e 13), publicada em 1889, e na edição de 1893 do Mapa Geológico de España (representando a Península Ibérica), na escala 1: 1 500 000, ambos sob a direção de Manuel Fernandez de Castro. Contribuíram, também, para as folhas 29 AV e 36 AVI da carta geológica da Europa, na escala 1: 500 000, publicada em Berlim, em 1896, uma iniciativa do CIG coordenada pelo prussiano Wilhelm Hauchecorne. Choffat elaborou uma carta geológica de Portugal do ponto de vista agrícola, na escala de 1: 2 000 000, publicada em 1901. Em colaboração com Luís de Almeida Couceiro, funcionário dos serviços geológicos, elaborou uma carta hipsométrica de Portugal, na escala de 1:100 000 publicada em 1900, com uma nota explicativa, em 1907. Trabalhou, ainda, nos mapas geológicos de Sintra, na escala 1: 20 000; Buarcos, na escala 1: 100 000, e Arrábida, na escala 1: 25 000, com a colaboração de Romão de Matos (1880−1979), um dos auxiliares de trabalho de campo (então denominados coletores) mais proficientes. 

Em 1899, a Direção dos Trabalhos Geológicos foi reestruturada, passando a designar-se Direção dos Serviços Geológicos, deixando o vencimento de Choffat de estar inscrito no orçamento geral, para passar a sair da verba “despesas diversas.” Consequentemente, ficou sem financiamento para ajudas de custo referentes a trabalho de campo e a publicações, sendo o seu vencimento reduzido para 76 500 reis, facto surpreendente, tendo em conta a sua carreira e prestígio. Em 1901, na sequência de mais uma reorganização, a anterior Direção passa a Comissão do Serviço Geológico.

Choffat, agora detentor de um conhecimento aprofundado da geologia do país, reviu divisões estratigráficas anteriormente estabelecidas. Trabalhou, principalmente, o Cretácico Superior e os contactos entre o Jurássico e o Cretácico. Relativamente ao Cretácico, reviu interpretações e distinguiu quatro grupos: o grupo hoje em desuso Neocomiano (Cretácico Inferior), o Belasiano (uma antiga divisão entre o Cretácico Médio e Inferior, cujo nome deriva de Belas, localidade próxima de Lisboa), o Turoniano (Cretácico Médio), e o Senoniano (Cretácico Superior). Na sequência dos sismos registados no país em 1903 e 1909, publicou trabalhos neste domínio, tendo representado Portugal na Associação Internacional de Sismologia; em 1908, publicou um estudo sobre a tectónica da Serra da Arrábida. 

Na área da hidrogeologia realizou, entre 1893 e 1903, estudos relacionados com o abastecimento de água a Lisboa, Guimarães, Beja e Guarda, e sobre as águas minerais dos terrenos mesozoicos e do soco paleozoico.

Desde os finais do século XIX que, no decurso de trabalhos de terraplanagens, abertura de poços ou pesquisa de águas, se registaram ocorrências de hidrocarbonetos (petróleo, asfalto e betume) nos terrenos mesozoicos portugueses a norte do Tejo. Rapidamente se difundiu a notícia da existência de petróleo em Portugal, numa altura em que a exploração de jazidas deste combustível fóssil adquiria cada vez maior importância em diversos países. Desde 1902 que Choffat fora solicitado por privados a realizar estudos sobre locais onde parecia existirem indícios de petróleo. Os resultados destes estudos foram publicados em 1910, concluindo o geólogo ser inegável a existência de petróleo nas formações mesozoicas portuguesas da região de Torres Vedras e Monte-Real. Aproveitou a ocasião para chamar a atenção para a necessidade de realização de estudos geológicos preliminares a sondagens, de modo a aumentar a eficácia, reduzir o risco de insucesso e os custos; considerava que o Estado português deveria intervir na pesquisa e exploração dos hidrocarbonetos, uma atividade industrial promissora em termos económicos. Entre 1912 e 1914, Choffat elaborou relatórios sobre as areias auríferas da Adiça e outros depósitos da costa ocidental da Península de Setúbal, as jazidas de ferro do Triásico e dos xistos paleozoicos das zonas de Pias e Alvaiázere e as minas de granadas de Monte Suímo, em Sintra.

Ainda no que se refere à geologia aplicada, publicou sobre a importância dos dados geológicos prévios à construção de caminhos-de-ferro, prática corrente na Suíça, e a construção de uma ponte sobre o Tejo, em Lisboa. De entre estes trabalhos, destaca-se o estudo geológico dos terrenos onde foi construído o túnel do Rossio, publicado em 1889. Além do seu significado científico, esta obra visou ser uma demonstração da necessidade de estudos geológicos preliminares a obras públicas, demarcando o espaço de competência profissional do geólogo, face ao engenheiro civil. No entanto, o principal beneficiário deste estudo foi Edmond Bartissol, o empreiteiro francês responsável pela obra inaugurada em Junho de 1890, que pôde assim escolher o método de perfuração mais económico. Choffat, no entanto, advogava um traçado do túnel ligeiramente diferente, alegando que este pouparia ao Estado quantia considerável, mas nem a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, nem a Direcção-Geral ou o Ministério da Obras Públicas, lhe solicitaram qualquer estudo prévio à adjudicação da obra, talvez por entenderem que este seria uma mera formalidade burocrática.  

Finalmente, Choffat publicou diversos obituários de geólogos portugueses e de estrangeiros que trabalharam sobre temas geológicos referentes ao território nacional, contribuindo para a construção de uma memória da geologia, em Portugal.

Com a morte de Nery Delgado, em 1908, sucedeu-lhe Wenceslau de Lima cujo mandato foi efémero. Choffat foi instado a suceder-lhe, mas recusou por se sentir fisicamente debilitado. Lamentou a falta de quadros competentes, dadas as deficiências no ensino da geologia em Portugal e a aversão ao trabalho de campo que já anteriormente criticara. Choffat não deixou discípulos; apenas alguns coletores e o capitão de engenharia do quadro de minas do Ministério das Obras Públicas, Francisco Luís Pereira de Sousa, terão beneficiado da sua experiência e conhecimentos. A 6 de Junho de 1919, Choffat morreu, em Lisboa, ficando provisoriamente sepultado no jazigo de Nery Delgado, no Cemitério dos Prazeres, tendo sido posteriormente transladado para o seu mausoléu, no cemitério de Porrentruy. 

Cada vez mais crítico do rumo que a instituição tomara, sobretudo após o falecimento de Nery Delgado, terá sido sua intenção doar parte da biblioteca pessoal a sociedades científicas francesas e belgas; a um seu sobrinho, estudante de geologia, as obras referentes à Suíça e o remanescente à Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Quanto às suas notas de campo e outros manuscritos, foram levados pelos herdeiros para a Suíça. Este espólio só regressaria a Portugal, em 1947, sendo posteriormente devolvido aos serviços geológicos.

A obra de Choffat foi reconhecida e objeto de distinções variadas. Foi homenageado através da nomenclatura paleontológica, sendo longa a lista de táxones que lhe são dedicados. Em 1892, foi-lhe conferido o doutoramento honoris causa pela Universidade de Zurique, e o grau de Comendador da Ordem de Isabel la Católica, em 1896, pela colaboração com a Comisión del Mapa Geológico de España; em Portugal, recebeu o mesmo grau da Ordem de S. Tiago. Em 1900, foi galardoado com o Prémio Auguste Viquesnel da Société Géologique de France, pela primeira vez atribuído a um estrangeiro. Foi membro de inúmeras academias e sociedades científicas portuguesas e estrangeiras.

Ana Carneiro

Arquivos

Arquivo Histórico e Biblioteca do LNEG – Laboratório Nacional de Energia e Geologia: notas manuscritas, correspondência, minutas de campo, cartografia e publicações científicas (espólio não organizado, guardado em caixas diversas).

Biblioteca do Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra, 

Núcleo Paul Choffat (1849–1919).

Obras 

Choffat, Paul. “Études Géologiques sur la Chaîne du Jura. I– Esquisse du Callovien et de l’Oxfordien dans le Jura Occidental et le Jura Méridional suivie d’un Supplément aux Couches à Ammonites Acanthicus dans le Jura Occidental.” Mémoires de la Société d’Émulation du Doubs, 3 (1879): 72–219.

— Etude Stratigraphique et Paléontologique des Terrains Jurassiques du Portugal: Première Livraison – Le Lias et le Dogger au Nord du Tage. Lisbonne: Section des Travaux Géologiques/Imprimerie de L’Académie Royales des Sciences, 1880.

Étude Géologique du Tunnel du Rocio. Contribution à la Connaissance du Sous-sol de Lisbonne. Lisbonne: Commission des Travaux Géologiques du Portugal/ Imprimerie de l’Académie Royale des Sciences, 1889.

— “Les Eaux d’Alimentation de Lisbonne. Rapport entre leur Origine Géologique et leur Composition Chimique.” Bulletin de la Société Belge de Géologie, Paléontologie et Hydrologie, 10 (1896): 161–197.

— “L’Infralias et le Sinémurien du Portugal.” Comunicações da Comissão do Serviço Geológico de Portugal, 5 (1903): 49–113.

Contributions à la Connaissance Géologique des Colonies Portugaises d’Afrique. I – Le Crétacique de Conducia. Lisbonne: Commission du Service Géologique du Portugal/ Imprimerie de l’Académie Royale des Sciences, 1903.

Essai sur la Tectonique de la Chaîne de l’Arrabida. Lisbonne: Commission du Service Géologique du Portugal/Imprimerie Nationale, 1908.

—“Le Séisme du 23 Avril 1909 dans le Ribatejo (Portugal) et ses Relations avec la Nature Géologique du Sol.” In Comptes Rendus des Séances de la Troisième Réunion de la Commission Permanente de l’Association Internationale de Sismologie, Réunion à Zermatt, du 30 Août au 2 Septembre, edited by R. Kövesligethy, 126–129. Budapest: Victor Hornyánszky, 1910. 

— “Rapports de Géologie Économique. 3– Les Recherches d’Hydrocarbures dans l’Estremadure Portugaise (Résumé). 4– Les Mines de Grenats de Suimo.” Comunicações da Comissão do Serviço Geológico de Portugal, 10 (1914): 159–198.

Delgado, Joaquim Filipe Nery e Paul Choffat. Carta Geológica de Portugal. Escala 1:500 000. Direção dos Trabalhos Geológicos, 1899.

Bibliografia sobre o biografado 

Areias, Maria das Dores, “Expeditions in the African Colonies during then 19th century: Geological Contributions from Portuguese Travellers.” Comunicações do Instituto Geológico e Mineiro, 88 (2001): 347–354.

Carneiro, Ana, Teresa Salomé Mota e Vanda Leitão. O Chão que Pisamos. A Geologia ao Serviço do Estado (1848–1974). Lisboa: Edições Colibri /Colecção CIUHCT, 2014.

Fleury, Ernest. “Une Phase Brillante de la Géologie Portugaise: Paul Choffat, 14 Mars 1849–6 Juin 1919.” Mémoires de la Société Portugaise des Sciences Naturelles, 3 (1920): 1–54.

Rocha, Rogério Bordalo da, et al. (eds). Paul Choffat na Geologia Portuguesa. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa /Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, 2008.

Teixeira Pinto, Luís. “Paul Choffat’s First Stay with the Portuguese Geological Survey.” Comunicações do Instituto Geológico e Mineiro, 88 (2001): 301–308.

Rodrigues, César Augusto de Campos

Lisboa, 9 agosto 1836 — Lisboa, 25 dezembro 1919 

Palavras-chave: astronomia, Observatório Astronómico de Lisboa.

DOI: https://doi.org/10.58277/POFQ1710

César Augusto de Campos Rodrigues foi o mais destacado astrónomo português na viragem do século XIX para o século XX, tendo-se distinguido na astronomia de posição ao serviço do Observatório Astronómico de Lisboa, ao qual dedicou cerca de 50 anos da sua vida. 

Campos Rodrigues começou por abraçar a  carreira militar na marinha de guerra. Depois de frequentar o Liceu de Lisboa e o Real Colégio Militar, em 1851 assentou praça na companhia dos guardas marinhas, tendo feito uma viagem de instrução ao Mediterrâneo na corveta Porto. Concluiu o curso preparatório de Marinha na Escola Politécnica em 20 de Fevereiro de 1854, ano em que foi promovido a aspirante de 1ª classe. Ingressou depois na Escola Naval, tendo concluído o respectivo curso em 3 de Julho de 1855. Foi depois nomeado para embarcar no brigue Mondego rumo aos mares da China. Com esta viagem, concluiria a sua formação de oficial de Marinha.   

A bordo do Mondego, Campos foi incumbido, juntamente com o seu companheiro de armas e amigo José Feliciano de Castilho (1838-1864), de efetuar registos meteorológicos e oceanográficos segundo as indicações do superintendente do Observatório Naval dos Estados Unidos, Matthew Fountaine Maury (1806-1873). Maury lançara uma campanha global de recolha de dados oceanográficos, distribuindo protocolos de observação e cartas náuticas atualizadas pelos navegantes que aceitassem, em troca, submeter os seus diários náuticos ao observatório norte-americano. Maury nem sempre foi bem visto no seio da comunidade científica norte-americana da época, mas este empreendimento revestiu-se  de enorme importância no desenvolvimento da oceanografia. Em 1857, Maury escreveu ao diretor do Observatório Meteorológico do Infante D. Luiz,  Guilherme Dias Pegado,  informando-o de que havia recebido várias contribuições portuguesas, e referindo-se de forma elogiosa ao diário do brigue Mondego elaborado por Campos e Castilho. 

Campos Rodrigues fora entretanto promovido a guarda-marinha, em 1856,  tendo sido promovido a 2º tenente em 1858. A 20 de Janeiro de 1860, na viagem de regresso a Lisboa, o brigue Mondego naufragou no Oceano Índico. Campos Rodrigues contou-se entre os membros da tripulação que foram resgatados por uma embarcação americana e reconduzidos a Portugal. A sua atuação durante o naufrágio, visando resgatar tantos tripulantes do brigue quanto fosse possível, mereceu-lhe um louvor militar. 

Entre Maio e Setembro de 1860, prestou serviço no registo do Porto de Lisboa. Em breve regressaria à Escola Politécnica, juntamente com José Feliciano de Castilho, para se tornar engenheiro hidrógrafo. Completou o respectivo curso em 20 de Julho de 1863 e o estágio subsequente em 11 de Agosto de 1865. Em Setembro desse ano, foi admitido no Instituto Geográfico, que era dirigido por Filipe Folque (1800-1870), figura de proa do levantamento cartográfico de Portugal. Folque terá desde cedo reconhecido em  Campos Rodrigues um potencial astrónomo para o novo Observatório Astronómico de Lisboa, que estava então a ser edificado na Tapada da Ajuda.  

A fundação do OAL foi patrocinada por D. Pedro V e apoiada por Friedrich Georg Wilhelm Struve (1793-1864), diretor do Observatório de Pulkovo, que acreditava poder-se estabelecer em Lisboa um observatório capaz de liderar a área da astronomia estelar, juntamente com Pulkovo.  Lisboa proporcionava condições geográficas e climáticas especialmente favoráveis para o estudo das paralaxes estelares e das nebulosas, dois temas centrais da astronomia estelar de então. Algumas estrelas cuja paralaxe anual (e por conseguinte, cuja distância) era considerada mensurável com os instrumentos e técnicas da época, tais como 1830 Groombridge e Alpha Lyrae, passavam nas proximidades do zénite lisboeta, pelo que os efeitos da refração atmosférica seriam mínimos. Além disso, o clima ameno de Portugal, o número considerável de noites de céu limpo por ano, e a escuridão durante as noites estivais, especialmente em comparação com as “noites brancas” de S. Petersburgo,  faziam da capital lisboeta um local apetecível para estudar as nebulosas, cuja natureza era ainda desconhecida.  

No Instituto Geográfico, Campos Rodrigues foi incumbido de fazer o levantamento hidrográfico da barra e do porto de Caminha, que concluiu em 1868. Durante esse período, desenvolveu alguns procedimentos originais para lidar com problemas típicos destes trabalhos, nomeadamente a medição de distâncias horizontais com um taqueómetro, o cálculo de áreas delimitadas nas cartas topográficas por linhas curvas, e o denominado problema dos três pontos ou problema de Pothenot, relativo à projeção de um determinado ponto a partir de três pontos inacessíveis numa rede primária de triângulos.

Em Janeiro de 1869, Campos Rodrigues passou finalmente a integrar o pessoal do OAL, tornando-se o colaborador mais próximo de Frederico Augusto Oom (1830-1890), então Chefe da Secção Astronómica dos Trabalhos Geodésicos do Reino e futuro diretor do OAL. F. A. Oom passara cinco anos no Observatório de Pulkovo a estudar os instrumentos e métodos aí utilizados, de modo a preparar-se para liderar o OAL e torná-lo num observatório dedicado à astronomia estelar. F. A. Oom empenhar-se-ia na frente política para consagrar essa visão nos estatutos do OAL, tendo que lidar com a lentidão dos meandros governamentais e parlamentares, e com a oposição de alguns sectores que desejavam definir o Observatório como uma instituição de carácter generalista e facilmente permeável a sinecuras para o professorado da Universidade de Coimbra e das instituições de ensino superior da capital. 

Campos Rodrigues permaneceria na retaguarda, concentrando-se em preparar o OAL para a implementação do seu programa científico, e coadjuvando F. A. Oom na gestão diária do Observatório. Os trabalhos efectuados no OAL desde a entrada de Campos até à aprovação da Lei Orgânica do Observatório em 1878 incidiram sobretudo na finalização das estruturas de observação (salas de observação, alçapões, cúpulas), na instalação e estudo dos instrumentos, na elaboração de listas de estrelas para as observações de determinação da hora, e no desenvolvimento de processos de cálculo para tornar mais expedita a redução dos dados observacionais. Campos viria a desenvolver diversas réguas de cálculo e processos de cálculo gráfico e desde cedo se começou a debruçar sobre os instrumentos do Observatório, procurando conhecê-los a fundo e aperfeiçoá-los de modo a favorecer a precisão das observações.  Entre os instrumentos originais do OAL destacam-se um círculo meridiano Repsold-Merz, um grande telescópio refractor equatorial de sete metros de distância focal também Repsold-Merz e um instrumento de passagens no primeiro vertical Repsold- Steinheil. 

Em 1873, F. A. Oom começou a organizar uma expedição com destino a  Macau, para observar o trânsito de Vénus de 1874 e assim contribuir para a determinação do valor exato da paralaxe solar, o que por sua vez permitiria conhecer com rigor a distância média Terra-Sol, conhecida como Unidade Astronómica. Tal como no século XVIII, por ocasião dos trânsitos de 1761 e 1769, várias nações organizavam as suas próprias expedições, e F. A. Oom viu aqui uma oportunidade para afirmar o OAL como  observatório nacional de Portugal, tomando a dianteira neste grande esforço científico internacional. Os astrónomos animavam-se com o facto de pela primeira vez se poder aplicar a fotografia à observação deste fenómeno, e Campos Rodrigues desenvolveu um método próprio para fotografar o trânsito, que consistia em usar o interior de uma pequena torre de observação como câmara, ficando o obturador associado à  respectiva cúpula. Mas depois de vários trabalhos preparatórios, a expedição, que não era especialmente onerosa, foi abortada no parlamento com base em argumentos financeiros. 

Em 1876, Campos Rodrigues e  F. A. Oom participaram nos primeiros testes do telefone em Portugal, em colaboração com João Carlos de Brito Capelo (1831-1901) do Observatório Meteorológico do Infante D. Luiz.  Em Dezembro de 1877, os dois astrónomos participaram numa chamada experimental que ligou o OAL à Escola Politécnica, onde o rei D. Luís presenciava a atribuição de prémios aos estudantes, e de onde pôde ouvir, através do telefone, música tocada no Observatório.

Depois de anos de debates e de manobras políticas, em 6 de Maio de 1878 foi finalmente aprovada a  Lei Orgânica do Real Observatório Astronómico de Lisboa que, em consonância com o projeto fundacional defendido por F. A. Oom,  consagrava o  OAL ao estudo das paralaxes estelares, das nebulosas e das estrelas duplas – em suma, ao desenvolvimento da astronomia estelar. Na hierarquia das funções do OAL seguiam-se as observações ocasionais de objetos e fenómenos do sistema solar, o apoio a trabalhos cartográficos e a transmissão da hora oficial. 

Este programa revelou-se, no entanto, demasiado ambicioso. As primeiras décadas de atividade do OAL depois da aprovação da Lei  Orgânica ficaram marcadas pela dificuldade em estabilizar o seu corpo de pessoal, quer na vertente científica, quer no que respeita ao pessoal administrativo e auxiliar. Por conseguinte, foi na transmissão da hora oficial que F. A. Oom, Campos Rodrigues e Augusto Alves do Rio (um oficial de Marinha que serviu como astrónomo de 2ª classe, isto é, astrónomo auxiliar, entre 1878 e 1887) concentraram os seus esforços. 

As observações regulares de tempo foram iniciadas em 1878, tendo feito parte da rotina do OAL até à década de 1980. Eram efectuadas com dois instrumentos de passagens portáteis  construídos pela firma A. & G. Repsold de acordo com indicações de Oom. Faziam-se todas as noites em que o estado do tempo o permitia, incidindo numa série de estrelas previamente selecionadas para o efeito. Ao fim da manhã do dia seguinte, depois de reduzidos os dados das observações, procedia-se à verificação e acerto dos relógios do observatório (as denominadas “pêndulas”). A partir de 1885, a hora oficial determinada pelos astrónomos do OAL passou a ser transmitida telegraficamente para uma estação horária no Arsenal da Marinha, onde um “balão horário” (mais propriamente, uma esfera metálica oca) era içado ao topo de um mastro e largado à 1:00 da tarde local, em sincronia com o sinal enviado do OAL. Assim se dava a hora oficial à navegação e à cidade. Os erros da queda do balão, que raramente iam além de escassos décimos de segundo, eram publicados quinzenalmente no Diário do Governo. Este sistema, que fora desenvolvido por Oom e Campos Rodrigues, substituiu um velho balão já bastante descredibilizado, que era operado manualmente por pessoal do Observatório da Marinha. 

Na década de 1880, Campos Rodrigues estudou detalhadamente o círculo meridiano Repsold-Merz, tendo-o usado numa série de observações da Estrela Polar que nunca chegaram a ser devidamente tratadas, e que por isso nunca foram publicadas. Em 1887, Alves do Rio deixou o OAL, o que levou Campos a ter que assegurar a maior parte das  observações de tempo.  Ao longo dos dois anos que seguiram, Campos aproveitou para levar a  cabo um estudo aprofundado de todo o equipamento empregue nesse trabalho. Antes tinha já introduzido alguns acessórios e modificações nos aparelhos electro-cronográficos do Observatório, que os tornaram mais eficazes e precisos.  Um dos seus dispositivos mais emblemáticos é um interruptor eléctrico com uma peça basculante em V, que produzia sinais através do corte de corrente. Originalmente concebido para substituir os interruptores de um aparelho de medição da equação pessoal (o erro individual de cada observador), o interruptor de Campos Rodrigues foi depois adaptado a todos os relógios de pêndulo do Observatório. Os sinais dos relógios e das observações eram registados com um cronógrafo eléctrico igualmente concebido pelo astrónomo.  Uma vez incumbido de assegurar todas as observações de tempo, Campos desenvolveu também novos métodos e acessórios para os instrumentos de passagens, que permitiam lidar mais eficazmente com os erros sistemáticos deste tipo de instrumentos e apontá-los mais facilmente para as estrelas a observar em cada sessão.  

Para além de determinar a hora oficial, Campos Rodrigues aproveitou também para aperfeiçoar os valores de ascensão recta (coordenada celeste equivalente à longitude terrestre) das estrelas de referência listadas no almanaque Berliner Astronomisches Jahrbuch. Este trabalho, que foi publicado alguns anos mais tarde, terá impressionado o astrónomo norte-americano Lewis Boss (1846-1912), que o usou no seu Preliminary General Catalogue of 6188 Stars for the Epoch 1900 (1910). Este catálogo foi depois desenvolvido pelo seu filho Benjamin Boss (1880-1970), resultando na publicação do General Catalogue of 33,342 stars (1936), uma obra de grande relevância para o estudo dos movimentos próprios das estrelas e da dinâmica da Via Láctea.

Depois do falecimento de F. A. Oom em 1890, Campos Rodrigues foi nomeado diretor do OAL. Pela mesma altura, o filho de F. A. Oom, Frederico Thomaz Oom (1864-1930) foi nomeado astrónomo de 2ª classe, e alguns anos depois, sub-director. Frederico Oom assumiu prontamente um papel central na gestão do OAL, tornando-se no porta-voz da instituição. Apesar do seu título oficial de diretor, Campos permaneceu no papel de eminência parda do Observatório, enquanto Oom se empenhou em procurar um maior reconhecimento para o OAL, quer no contexto nacional, quer no seio da comunidade científica internacional. 

Em 1892, o OAL aderiu à campanha lançada por John Eastman (1836-1913), do Observatório Naval dos Estados Unidos tendo em vista a determinação da paralaxe solar com base em observações de Marte, que estaria em oposição (isto é, alinhado com o Sol e a Terra) em Agosto desse ano. Campos Rodrigues e Frederico Oom efetuaram observações de Marte e de estrelas de referência, essenciais para determinar com rigor as sucessivas posições aparentes do planeta. Os resultados das observações foram posteriormente apresentados num volume intitulado Observations méridiennes de la planète Mars pendant l’opposition de 1892, publicado em 1895. A obra foi distribuída internacionalmente, sendo objecto de uma recensão muito positiva por parte do astrónomo francês Guillaume Bigourdan (1851-1932). Em 1903, o astrónomo norte-americano T. J. J. See (1866-1962) elaborou uma lista dos valores até então obtidos para o diâmetro de Marte, dando destaque ao valor obtido em Lisboa por ocasião da oposição de 1892 (9″.05 ± 0″.44). 

Em 1900, o OAL integrou uma campanha lançada no âmbito do projeto internacional Carte du Ciel, que teve por objectivo proceder a uma nova determinação da paralaxe solar por meio de observações do asteróide Eros. Apesar de a campanha ser eminentemente baseada na fotografia e exigir equipamento que Lisboa não dispunha, o OAL contribuiu com observações posicionais das estrelas de referência, efectuadas por Campos Rodrigues, Frederico Oom, e Artur Teixeira Bastos (?-1931), que ingressara no OAL em 1894. Os resultados das observações efectuadas pelos vários observatórios participantes foram publicados em 1904. O OAL destacou-se entre os 13 observatórios que realizaram observações de estrelas de referência, quer pelo elevado número de observações submetidas, quer pela precisão destas últimas. Este trabalho levou a que Campos Rodrigues fosse distinguido com o Prémio Valz da Academia das Ciências de Paris em 1904.  

Ainda em 1900, Campos Rodrigues e Frederico Oom integraram uma comissão dirigida por Mariano Cyrillo de Carvalho (1836-1905), professor de matemática na Escola Politécnica, que foi incumbida de coordenar o apoio logístico à observação do eclipse total do Sol de 28 de Maio daquele ano.  A faixa de totalidade do eclipse cruzou a região das beiras, à qual se deslocou um grande número de cientistas e académicos nacionais, assim como vários astrónomos estrangeiros. Um grupo liderado pelo diretor do Observatório de Greenwich, William Christie (1845-1922), observou o eclipse em Ovar, tendo aproveitado a viagem a Portugal para visitar o OAL. De volta à Inglaterra, intervindo num encontro da Royal Astronomical Society,  Christie enalteceu as modificações e acessórios que Campos Rodrigues tinha acrescentado ao equipamento original do OAL.  No que respeita ao eclipse, Campos Rodrigues e Artur Teixeira Bastos deslocaram-se à Serra da Estrela, estabelecendo uma estação de observação na zona de Manteigas. Os dois astrónomos pretendiam averiguar a possível existência de planetas interiores à órbita de Mercúrio, mas esta tarefa foi dificultada por um ténue manto de nuvens. Campos Rodrigues fotografou a coroa solar, mas as imagens resultantes eram muito pequenas, e nunca foram publicadas.  

Em 1902, Frederico Oom associou-se ao oficial de marinha e engenheiro hidrógrafo Hugo de Lacerda Castelo Branco (1860-1944) numa campanha de enaltecimento da figura de Campos Rodrigues na imprensa nacional e nos meios militares, com vista à sua promoção a Vice-Almirante.  A promoção concretizou-se nesse mesmo ano. Pela mesma altura, e por iniciativa de Frederico Oom, os resultados de observações efectuadas no OAL sob a liderança de Campos Rodrigues, assim como algumas descrições de aparelhos e técnicas concebidas pelo astrónomo, começaram a ser publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Apesar de manter uma atitude recatada e de persistir numa humildade que os seus colaboradores e admiradores amiúde denunciavam como exageradas, a figura de Campos Rodrigues foi cada vez mais exaltada nos meios militares como um exemplo de brilhantismo intelectual e de dedicação à ciência. Nesse mesmo ano, um novo observatório astronómico e meteorológico que estava ser construído em Lourenço Marques (actual Maputo, Moçambique) foi batizado Observatório Campos Rodrigues.    

Campos Rodrigues era também visto como um infalível e benévolo consultor a quem várias instituições e personalidades recorriam para resolver assuntos de instrumentação e cálculo. Uma das figuras nacionais que amiúde procuraram os conselhos do astrónomo foi Carlos Viegas de Gago Coutinho (18691-1959), tendo o OAL despenhado um papel importante no apoio às missões geodésicas em África dirigidas pelo conhecido oficial de marinha e geógrafo. 

Tendo escolhido manter-se em atividade no OAL ao atingir a idade da reforma na carreira militar em 1902, Campos permaneceu ao serviço do Observatório até ao seu falecimento, que se deu na madrugada do dia de Natal de 1919.  O OAL manteve-se fiel  à tradição da astronomia de posição em que Campos Rodrigues se destacou, tendo as técnicas e dispositivos desenvolvidos pelo astrónomo sido usados na Tapada durante décadas, já depois da sua morte. 

Pedro Raposo (entrada adaptada por Ana Simões)

Arquivos

Observatório Astronómico de Lisboa – Arquivo Histórico
Academia de Ciências de Lisboa 
Arquivo Histórico da Marinha
Arquivo Histórico – Museu Nacional de História Natural e da Ciência 

Obras 

«Observations d’occultations pendant l’éclipse total de la Lune, 1891, novembre 15», Astronomische Nachrichten, 138 (1895) cols. 107-110.

«Observations des Léonides 1898, 1899», Astronomische Nachrichten, 158 (1899) cols. 393-396; 151 (1899) cols. 119-122.

«Corrections aux Ascensions Droites de quelques étoiles du Berliner Jahrbuch observées à Lisbonne (Tapada)», Astronomische Nachrichten, 159 (1902) 329-360.

«Personal Equation», The Observatory, 25 (1902), 121-124.

«Einfache Einrichtung zur Beleuchtung der Fadencines Kollimators», Zeitschrift fur Instrumenenkunde, XXII (1902) 142-143.

«Kurvenlineal fur Kreisbögen», Deutsche Mechaniker-Zeitung, 17 (1902), 166-167.

«Bewegliche Leitern zur Beobachtung des Nadirs», Deutsche Mechaniker-Zeitung, 18 (1902), 178.

«Le problème de Pothenot», Revista di topografia e catasto, 16 (1903-1904), 100-102.

«Observations d’éclipses de Lune», Astronomische Nachrichten, 165 (1904), 178-184.

«Portuguese Standard Time», The Observatory, 34 (1911), 305.

Bibliografia sobre o biografado

Oliveira, João Brás d’Oliveira. Campos Rodrigues – Discurso pronunciado por ocasião da inauguração do seu retrato no Club Militar Naval em 12 de Março de 1906. Lisboa: Tipografia de J. F. Pinheiro, 1906.

Oom, Frederico. O Vice-Almirante Campos Rodrigues – O homem de Sciência (Lisboa: Tipografia Empresa do Diário de Notícias, 1920)

Raposo, Pedro M. P. ‘Time, weather and empires: the Campos Rodrigues Observatory in Mozambique (1905-1930)’, Annals of Science 72 (2015): 279-305. 

— ‘Observatories, instruments and practices in motion: an astronomical journey in the nineteenth century’, HoST – Journal of History of Science and Technology 8 (2013): 69-104.  

— ‘Charming tools of a demanding trade: the heritage of nineteenth-century astrometry at the Astronomical Observatory of Lisbon’, Rittenhouse – The Journal of the American Scientific Instrument Enterprise 22 (2008): 25-46.