Erédia, Manuel Godinho de

Malaca, 1563 — Goa, ca. 1623

Palavras-chave: Manuel Godinho de Erédia, Ásia, Malaca, cartografia, geografia, botânica, XVI, XVII.

DOI: https://doi.org/10.58277/ZAGJ1026

Manuel Godinho de Erédia foi autor de uma vasta obra cartográfica e geográfica sobre o mundo oriental, a qual na época permaneceu manuscrita e apenas modernamente tem sido editada. Filho de um soldado português de ascendência aragonesa e de uma princesa originária das Celebes (Sulawesi), Erédia foi educado no colégio jesuíta de Malaca. Mais tarde, em muitos dos seus mapas e escritos utilizaria palavras e expressões malaias, para além de se referir a fontes escritas de origem malaia ou javanesa, o que leva a supor que conhecia bem a língua malaia. Com 13 anos de idade, Manuel Godinho mudou-se para Goa, a fim de continuar a sua educação formal com os padres jesuítas, estudando gramática, artes, filosofia e matemática. Distinguiu-se no estudo desta última disciplina, pois durante alguns anos exerceu funções no colégio jesuíta de Goa como mestre de matemática. Era também um artista talentoso, pois as fontes jesuítas atribuem-lhe a autoria de uma pintura religiosa remetida para a corte do Grão-Mogol em Agra. A vocação religiosa de Erédia, contudo, não se revelou sólida, pois em 1586 abandonou a Companhia de Jesus, para se dedicar a outras atividades. Contudo, não se encontra confirmação documental para a alegação do próprio Erédia de que teria passado a desempenhar funções de cosmógrafo-mor do Estado da Índia.

O vice-rei D. Duarte de Meneses, que governou o Estado da Índia entre 1584 e 1588, fez-se acompanhar por GiovanniBattista Cairato, engenheiro de origem italiana que fora encarregado por Felipe II de Espanha (e I de Portugal) de realizar um cuidadoso levantamento das fortalezas orientais dos portugueses. Cairato viajou extensamente pelo Oriente até 1596, e parece certo que Erédia o serviu como desenhador; durante estas deslocações, o cartógrafo reuniu elementos para muitos dos seus posteriores desenhos de cidades e fortalezas. A primeira obra conhecida de Erédia, a Informação da Aurea Chersoneso, ou Peninsula, e das Ilhas Auriferas, Carbunculas e Aromaticas, foi escrita após este período, entre 1598 e 1600. Tratava-se de uma descrição da Península Malaia e das principais ilhas do arquipélago indonésio, com notícias referentes à história, costumes, crenças e lendas, e com a preocupação de identificar minas de metais preciosos e fontes locais de especiarias valiosas. Desde as primeiras décadas do século XVI que nenhum outro autor tinha analisado de forma tão cuidadosa estas regiões orientais. Este primeiro escrito de Erédia, paralelamente a informações geográficas inovadoras, incluía dezenas de referências livrescas, citando numerosos autores ocidentais, clássicos e modernos, como Ptolomeu, Estrabão, Plínio, Pompónio Mela, Marco Polo ou Ludovico de Varthema. Este procedimento foi depois repetido em todos os subsequentes escritos de Erédia, que gostava de alardear erudição, a qual, contudo, nem sempre era de primeira mão. 

Entre 1600 e 1605, Erédia estanciou na Península Malaia, dedicando-se a trabalhos de engenharia militar, relacionados com as fortalezas portuguesas da região, e a atividades de prospeção mineira no sertão de Malaca. Preparou entretanto diversos planos de fortificações e detalhados mapas das regiões malaias visitadas, que conduziram a cartografia portuguesa para a representação inovadora de regiões interiores do continente asiático. Nada se consegue apurar sobre o seu paradeiro nos cinco ou seis anos seguintes, mas regressou decerto a Goa, pois muitas das suas cartas e plantas de fortalezas, cidades e regiões orientais, como o Atlas produzido em 1610 a instâncias do vice-rei Rui Lourenço de Távora, que governou o Estado da Índia entre 1609 e 1612, parecem datar deste obscuro período. Em 1611, efetuou uma viagem de prospeção mineira nas regiões setentrionais do Indostão, regressando na posse de vários mapas corográficos muito detalhados e inovadores, e de uma breve relação intitulada Discursos sobre a Província do Indostão, que descrevia esta região indiana. Como era habitual nos seus escritos, apresentava uma complexa combinação de observações em primeira mão e de informações orais, com diversas notícias recolhidas em fontes livrescas. Estas últimas incluíam não só referências ocidentais, mas também alusões a manuscritos persas. Erédia preparou também, durante esta expedição, um álbum de desenhos de árvores e plantas indianas, a Suma de Árvores e Plantas da índia Intra Ganges, dedicado a Rui Lourenço de Távora, que comprovava a sua curiosidade pela história natural e os seus dotes artísticos. Aparentemente satisfeito com este metódico trabalho de exploração, o novo vice-rei, D. Jerónimo de Azevedo, que governou entre 1612 e 1617, enviou-o em mais uma empresa de prospeção mineira na região de Goa. Erédia deve ter desempenhado este encargo nos anos de 1612 e 1613, descobrindo importantes jazidas de cobre e de ferro, e produzindo, como de costume, diversos mapas e cartas.

A partir de 1613, e até ao seu desaparecimento uma década mais tarde, Manuel Godinho viveu em Goa, a partir de onde dirigiu diversas cartas para Portugal, algumas das quais continham propostas de realização de viagens de descobrimento em partes inexploradas dos mares asiáticos. Mas nenhum desses projetos mereceu apoio régio. Dedicou-se, entretanto, a diversos afazeres. Trabalhou como pintor, sendo nomeadamente responsável pela elaboração de numerosos retratos de governadores e vice-reis portugueses, e também como cartógrafo, desenhando mapas e plantas de cidades e fortalezas, que andam reunidos em diversos atlas manuscritos. Erédia atravessou então o seu mais prolífico período de criação literária, pois no curto espaço de quatro anos produziu três tratados históricos e geográficos. Em primeiro lugar, em finais de 1613 concluiu a Declaraçam de Malaca e India Meridional com o Cathay, o seu mais ambicioso projeto textual, dedicado a Felipe III de Espanha (e II de Portugal), composto por três partes, e que desenvolvia a anterior Informação. Primeiro, uma detalhada corografia de Malaca e do seu sertão, ilustrada por mapas e desenhos diversos (pessoas, plantas, animais e embarcações), que abordava temas tão variados como a topografia urbana e rural, a história política local, as práticas comerciais, as produções naturais, as crenças religiosas ou o folclore tradicional. Depois, uma compilação de notícias sobre terras desconhecidas, alegadamente ricas em minérios auríferos, que se poderiam encontrar nos mares para sul de Timor, também ilustrada por diversos mapas especulativos. A partir desta secção da obra tem-se desenvolvido um debate, ainda não concluído, sobre o possível descobrimento da Austrália pelos portugueses. Enfim, em terceiro lugar, a Declaraçam continha uma geografia geral do continente asiático, desde a parte setentrional do Indostão até às regiões mais orientais da China, que procurava conciliar o saber geográfico ocidental com informações orais recolhidas na Índia e com cartografia produzida na Europa, recorrendo talvez a algumas fontes asiáticas. Esta secção era ilustrada por mapas parciais e globais da Ásia, que, como geralmente sucedia em toda a cartografia erédiana, tentavam reconciliar a diversidade de fontes utilizadas pelo cosmógrafo, que incluíam nomeadamente mapas analisados em edições bíblicas e edições do cartógrafo flamengo Abraham Ortelius. Pesem embora os muitos equívocos cometidos relativamente à real configuração das regiões tratadas, atribuíveis às limitadas possibilidades de exploração então disponíveis, a Declaraçamconstituiu um feito notável do ponto de vista do conhecimento europeu da geografia asiática, pois abordava áreas e temáticas pouco estudadas anteriormente. Tal como o seu primeiro tratado, também este estava recheado de referências eruditas, numa clara exibição de conhecimentos livrescos. Mas desta vez Erédia atribuía uma maior importância aos autores seus contemporâneos, citando nomeadamente João de Barros, Brás de Albuquerque, Benito Arias Montano, Diogo do Couto ou João de Lucena, entre outros. 

Neste período, em finais de 1615, Erédia redigiu também a Historia de serviços com martirio de Luis Monteiro Coutinho, relato apologético das façanhas militares de um capitão português capturado e executado em 1588 por ordem do soberano do Achém, sultanato do norte da ilha de Samatra, que lhe fora encomendado por familiares. Manuel Godinho tentou situar a carreira de Luís Monteiro no contexto mais alargado da presença portuguesa na Ásia, mostrando de passagem que estava bastante bem informado sobre as passadas atividades militares do Estado da Índia. Tal como outras das suas produções, também esta obra (que se mantém inédita, num manuscrito autógrafo da Biblioteca Nacional de Portugal) era acompanhada de detalhadas ilustrações representando cenas bélicas. De finais de 1616 data o Tratado Ophirico, última das produções erédianas, também dedicada ao monarca Felipe III. As partes principais desta obra constituíam um ambicioso dossiê de exegese bíblica. A partir de uma edição latina da Bíblia, talvez a Poliglota de Arias Montano, e com o apoio de meia-dúzia de comentadores, Erédia lançou-se na resolução de um problema que durante séculos tinha estado na primeira linha de preocupações de estudiosos da tradição cristã. Procurando conciliar a tradicional geografia bíblica com a sua visão da configuração dos espaços asiáticos, obtida em tratados livrescos, através de informações orais, e também em repetidas viagens terrestres, o cosmógrafo luso-malaio procurava determinar a exata localização da região de Ofir, de onde vinha o ouro de Salomão. 

Erédia, nos seus últimos anos, continuou a produzir materiais artísticos e cartográficos. O cronista Diogo do Couto, que também residia em Goa, mencionava numa carta enviada para Portugal em 1616 o ‘pintor Godinho’, que então trabalhava sob a sua supervisão na restauração das pinturas das armadas da carreira da Índia. Manuel Godinho parece ter falecido por volta de 1623. Nenhuma das suas inúmeras produções textuais ou cartográficas mereceu durante a sua vida as honras da impressão; e nenhum dos seus diversos projetos de descobrimento foi patrocinado pelas autoridades portuguesas. As suas obras rapidamente caíram no esquecimento, apenas sendo regularmente convocadas, em tempos mais recentes, no contexto da discussão sobre o descobrimento da Austrália pelas potências marítimas da Europa. Os variados e extensos escritos de Erédia foram produto do específico mundo cultural da Índia portuguesa, onde os saberes, os valores e as tradições da Europa e da Ásia se interligavam, formando uma única e complexa simbiose cultural. Manuel Godinho de Erédia produziu nas suas muitas obras uma síntese por demais curiosa, usando uma combinação complexa de experiência pessoal, de testemunhos vivenciais, de rumores dispersos, de tradições malaias, e de fontes cartográficas e literárias. As suas origens miscigenadas permitiram-lhe acesso franco às mais atualizadas fontes da educação humanista europeia, aos mais recentes descobrimentos portugueses no campo da geografia asiática, e a um vasto corpo de sabedoria asiática, consignada em manuscritos e em tradições orais. Estas contribuições múltiplas colocavam os seus tratados geográficos e as suas produções cartográficas num lugar de fronteira e de cruzamento, onde se ensaiava uma impossível ponte entre três heranças culturais muito distintas, a clássica europeia, a portuguesa e a malaia. Esta natureza simbiótica explica o singular destino dos escritos de Erédia, condenados durante séculos ao esquecimento. Mas os escritos históricos e geográficos de Erédia, de uma forma muito própria, eram bastante inovadores e estavam na linha da frente das preocupações de outros cosmógrafos contemporâneos. O infortúnio editorial de Erédia explica-se sobretudo pelos conturbados tempos em que lhe foi dado viver, numa época que assistiu à expansão holandesa e inglesa na Ásia marítima e ao sistemático assalto às posições ibéricas desencadeado pelas potências do Norte da Europa. Nessa conjuntura, as autoridades ibéricas não estimularam particularmente a difusão e a impressão de materiais de natureza geográfica sobre as Índias Orientais. E muitos dos escritos de Manuel Godinho de Erédia eram dedicados a tópicos demasiado sensíveis, como a localização de fontes produtoras de metais preciosos e o descobrimento de desconhecidas ilhas auríferas. O Estado da Índia, certamente, não gostaria de ver cair este tipo de informações estratégicas em mãos erradas.

Rui Manuel Loureiro
ISMAT e CHAM/NOVA

Obras

Erédia, Manuel Godinho de. Historia de serviços com martirio de Luis Monteiro Coutinho (Goa, 1615), ms., Biblioteca Nacional de Portugal, FG 414.
Erédia, Manuel Godinho de. Malaca, l’Inde Orientale et le Cathay, ed. Léon Janssen. Bruxelas: E. Lambert-Stevelinck, 1881.

Erédia, Manuel Godinho de. Eredia’s Descrition of Malaca, Meridional India, and Cathay, ed. J.V. Mills & Cheah Boon Kheng. Kuala Lumpur: Malaysian Branch of the Royal Asiatic Society, 1997.
Erédia, Manuel Godinho de. O Lyvro da Plantaforma das Fortalezas da Índia, ed. Rui Carita Lisboa: Edições INAPA e Ministério da Defesa Nacional, 1999.

Erédia, Manuel Godinho de. Suma de Árvores e Plantas da Índia Intra Ganges, ed. John G. Everaert, J. E. Mendes Ferrão e Maria Cândida Liberato. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descorbimentos Portugueses, 2001.
Erédia, Manuel Godinho de. Informação da Aurea Quersoneso, ed. Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau, 2008.

Erédia, Manuel Godinho de. Tratado Ophirico, 1616, ed. Juan Gil e Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau, 2016.

Bibliografia sobre o biografado

Flores, Jorge. “Between Madrid and Ophir: Erédia, a Deceitful Discoverer?” In Dissimulation and Deceit in Early Modern Europe, ed. Miriam Eliav-Feldon & Tamar Herzig, 184–210. London: Palgrave Macmillan, 2015.
Loureiro, Rui Manuel. “Manuel Godinho de Erédia e os seus tratados geográficos.” Oriente 9 (2004): 94–107.

Loureiro, Rui Manuel. “Manuel Godinho de Erédia revisited.” In Indo-portuguese History: Global Trends, ed. Fátima da Silva Gracias, Celsa Pinto e Charles Borges, 411–439. Goa: s.n., 2005.
Richardson, W.A.R. “A Cartographical Nightmare: Manuel Godinho de Erédia’s Search for India Meridional.” In The Portuguese and the Pacific, ed. Francis A. Dutra e João Camilo dos Santos, 314–348. Santa Barbara, Califórnia: Center for Portuguese Studies-University of California, 1995.

Subrahmanyam, Sanjay. “Pulverized in Aceh: On Luís Monteiro Coutinho and his ‘Martyrdom.’” Archipel 78 (2009): 19–60.

Coutinho, António Xavier Pereira

Lisboa, 11 junho 1851 — São Pedro do Estoril?, 27 março 1939

Palavras-chave: Botânica, Instituto Agrícola, Escola Politécnica de Lisboa, Agronomia.

DOI: https://doi.org/10.58277/NLFH4624

Engenheiro agrónomo de formação, D. António Xavier Pereira Coutinho foi um importante agrónomo e botânico que dedicou grande parte da sua vida ao estudo da flora portuguesa. Foi o principal responsável pela publicação da primeira flora moderna de Portugal, relativa às plantas vasculares, em 1913. Através da regência de cadeiras no Instituto Agrícola e na instituição que o sucedeu, formou várias gerações de técnicos agrícolas que contribuíram para o ordenamento do território nacional e colonial. Também desempenhou uma importante atividade pedagógica através da publicação de manuais escolares para diversos níveis de ensino.

Pereira Coutinho nasceu em Lisboa, numa família da alta nobreza. Era filho de D. Martinho da França e Faro Pereira Coutinho Pacheco Pato de Novais Pimentel, moço fidalgo com exercício no Paço, formado em engenharia militar, e de D. Maria da Penha de França Baena Falcão de Magalhães e Avelar. Vários dos ascendentes de Pereira Coutinho tinham servido como cavaleiros, camaristas ou mordomos de reis portugueses e espanhóis, desde os inícios do século XVIII. Os serviços prestados junto da corte espanhola valeram à casa dos Pereiras Coutinhos os títulos de Marquês de Soydos e Visconde de Santo António, o que a tornou a única casa fidalga portuguesa com dois títulos nobiliárquicos espanhóis.  

Frequentou a Escola Politécnica de Lisboa, continuando os seus estudos no Instituto Agrícola de Lisboa, a mais importante escola técnica agrícola do país, onde concluiu o curso de engenheiro agrónomo em 1874, com uma dissertação sobre o estudo do clima agrícola. Em seguida, arranjou emprego como agrónomo, cargo que desempenhou até 1879. Destacado para o distrito de Bragança, visitou os seus pontos principais, familiarizando-se com o clima, as práticas agrícolas e as restantes atividades económicas da região, tendo ainda organizado a quinta distrital. Para melhor prestar auxílio aos lavradores, e dada a escassez de estudos sobre a flora local, procurou estudá-la ele próprio, apesar de possuir uma experiência limitada enquanto botânico e não ter acesso a herbários e obras de referência. 

Em 1878, foi nomeado para uma comissão encarregada do estudo da praga de filoxera que atacava as vinhas da região do Douro, um problema agrícola importante, pois afetava uma das culturas mais relevantes para a economia nacional. O hábito de colher plantas pelas regiões por onde andava despertou a atenção de Manuel Paulino de Oliveira, professor da Universidade de Coimbra dedicado à entomologia e vice-presidente da comissão, que estudava o inseto causador da praga. Por esta altura, o seu colega Júlio Henriques, professor de Botânica e diretor do Jardim Botânico da Universidade, tentava criar um grupo de estudos botânicos capaz de empreender um levantamento sistemático da flora nacional, e ao ver um possível colaborador em Pereira Coutinho, contactou-o. Este acedeu, estando presente desde o início da fundação oficial deste grupo em 1879, a Sociedade Broteriana, e desenvolveu uma grande estima por Henriques, que se tornou um mentor, dando-lhe acesso a herbários e obras de referência. 

A competência profissional de Pereira Coutinho tornou-o conhecido entre as elites científicas da época, dando-lhe acesso a uma carreira académica no Instituto Agrícola. Nomeado chefe dos serviços químicos em 1879, estudou a composição dos fenos e das palhas de diversas regiões do reino e substituiu o professor João Inácio Ferreira Lapa na cadeira de Tecnologia, Química Agrícola e Análise. Em 1882, concorreu à regência da cadeira de Silvicultura, criada nesse mesmo ano por reforma governamental, tendo sido aprovado, e redigiu um manual para auxiliar os alunos, que publicou em dois volumes, entre 1886 e 1887. Em 1886, a cadeira a que prestava substituição foi dividida em duas, e transitou para a nova disciplina de Química Agrícola, Análise de Terras, Adubos e Plantas, posição que manteve durante vários anos, tomando ainda a direção do laboratório químico do Instituto.

Pereira Coutinho foi, à semelhança de outras personalidades da época ligadas ao ensino da agronomia, como José Maria GrandeJoão de Andrade Corvo, um defensor da modernização da agricultura portuguesa. Para este fim, fundou, em 1886, e com José Veríssimo de Almeida, seu colega no Instituto, o periódico A Agricultura Contemporânea (em 1890, o título foi alterado para A Revista dos Campos), onde eram fornecidas informações sobre novos instrumentos agrícolas, técnicas de estrumação, legislação agrícola aprovada, e pragas agrícolas, entre outros temas. Pereira Coutinho também escreveu para outros periódicos, como O Agricultor Português e Portugal Agrícola. Durante este período, outra das suas contribuições mais significativas foi a publicação, em 1889, de um guia de boas práticas para o fabrico e tratamento do vinho português, no sentido de aperfeiçoar a sua produção e fazer face à competição por parte de vinhos franceses, italianos e espanhóis. 

A partir do final da década de 1880, Pereira Coutinho iniciou um programa de investigação que tinha por objetivo o estudo taxonómico das Angiospérmicas presentes em território nacional, com vista à publicação de uma flora portuguesa moderna. Apesar de já ter realizado alguns estudos taxonómicos no passado, só nesta altura começou a empreendê-los de um modo sistemático. A sua admissão na Escola Politécnica de Lisboa, onde provavelmente poderia mobilizar mais recursos para estudos deste tipo, contribuiu para a mudança. Foi admitido no lugar de naturalista-adjunto da Secção Botânica do Museu Nacional de Lisboa, em 1890, graças à intervenção do Conde de Ficalho, o diretor da Secção e então regente da cadeira de Botânica da Escola, e no ano seguinte venceu o concurso para lente substituto dessa cadeira. Em 1903, após a morte de Ficalho, tornou-se regente da cadeira e diretor do Jardim Botânico da Escola.

Pereira Coutinho foi professor na Escola Politécnica e no Instituto Agrícola até 1921, data em que atingiu o limite legal de idade. No seguimento da reforma republicana do ensino superior de 1911, que transformou a Escola na Faculdade de Ciências da recém-criada Universidade de Lisboa, passou a reger a cadeira de Botânica Especial e Geografia Botânica, dedicada ao ensino da taxonomia vegetal. Também se dedicou ao ensino da botânica no Instituto, tendo provavelmente transitado para a cadeira respetiva após a reforma de 1911, que criou o novo Instituto Superior de Agronomia.

Após mais de duas décadas de estudos, Pereira Coutinho publicou um primeiro esboço de uma flora nacional em 1913, tendo incorporado o contributo de outros membros da Sociedade Broteriana, especialmente Júlio Henriques, Joaquim de Mariz, Gonçalo Sampaio e Jules Daveau. Este trabalho foi considerado a sua obra-prima. Continuou a expandir e a revê-lo até ao final da vida, dedicando-se ainda ao estudo de líquenes, musgos, hepáticas e basidiomicetas (à época, todos eram agrupados no reino das Plantas).

Ainda que as qualidades científicas de Pereira Coutinho fossem apreciadas e enaltecidas pelos seus colegas, foi como professor que deixou as impressões mais profundas. Os seus antigos alunos recordam-no como um exemplo de integridade moral e intelectual, austero e exigente, que os conquistava por uma modéstia característica e pela clareza com que ensinava os assuntos mais complexos. Nas suas aulas, enfatizava a observação direta de espécimes vegetais, chegando a adotar métodos de ensino inovadores. Após publicar a Flora de Portugal, deu uma feição quase completamente prática à cadeira que lecionava na Escola Politécnica: em vez de começar por exposições teóricas, fornecia plantas aos alunos e convidava-os a determinar a espécie a que pertenciam, segundo as chaves dicotómicas da Flora. A sua ação pedagógica incluiu ainda a escrita de manuais escolares para o ensino primário e secundário, ilustrados por si próprio, cujos conteúdos eram apresentados com simplicidade e rigor, e que foram reeditados diversas vezes. Alguns deles impressionavam pelo seu estilo original, que interpelava diretamente o leitor, como se conversasse com ele. Pereira Coutinho marcou vários dos seus alunos, especialmente Aurélio Quintanilha, que foi seu assistente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e alcançou reconhecimento internacional como botânico.

Contrariamente a outros colegas, e apesar do seu elevado estatuto social, Pereira Coutinho não enveredou por uma carreira política, tendo mesmo recusado o cargo de diretor-geral da agricultura para o qual foi convidado durante a monarquia constitucional. A docência e a investigação eram mais importantes para si, mas é possível que o seu desinteresse esteja ligado a uma discordância ou resignação face ao triunfo das forças liberais em Portugal. Pereira Coutinho provinha de uma família de monárquicos favoráveis a D. Miguel, e alguns parentes tinham mesmo lutado em seu nome durante as Guerras Liberais. Também é possível que as memórias deixadas pela Guerra nos membros da sua família o tenham influenciado a levar uma vida arredada da política. De qualquer modo, possuía um espírito tolerante (Quintanilha era um republicano convicto, mas nunca se sentiu discriminado).

A partir de 1921, após jubilação, retirou-se para a sua quinta de Caparide, em São Pedro do Estoril, vivendo em grande medida isolado do mundo, entregue à família e aos estudos taxonómicos. Casou com a sua prima D. Isabel Pereira Coutinho e teve uma numerosa descendência. Já perto do final da vida, por insistência de colegas e antigos alunos, conseguiu terminar novas versões do Esboço de uma flora lenhosa portuguesa e da Flora de Portugal

De uma grande austeridade moral, provavelmente derivada da sua profunda fé católica, Pereira Coutinho foi um investigador muito empenhado, tendo uma longa e regular carreira dedicada à taxonomia vegetal, além da ação que desempenhara, nas primeiras décadas da sua vida, em prol do ordenamento do território agrícola. Faleceu em Março de 1939, deixando uma vasta obra enquanto botânico e saudosas memórias em vários dos alunos de quem fora professor.

Daniel Gamito-Marques

Obras

Coutinho, António Xavier Pereira. A quinta distrital de Bragança no ano agrícola de 1875 a 1876. Porto: Tipografia do Jornal do Porto, 1877.

Coutinho, António Xavier Pereira. Os fenos espontâneos e as palhas de trigo, em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1884.

Coutinho, António Xavier Pereira. Curso de Silvicultura. Tomo I: Botanica Florestal. Lisboa: Tipografia da Academia Real de Ciências, 1886.

Coutinho, António Xavier Pereira. Curso de Silvicultura. Tomo II: Esboço de uma Flora Lenhosa Portuguesa. Lisboa: Tipografia da Academia Real de Ciências, 1887.

Coutinho, António Xavier Pereira. Guia do vinicultor. Porto: Lugan & Genelioux, sucessores, 1889.

Coutinho, António Xavier Pereira. Curso elementar de botânica para uso dos liceus. Lisboa: Guillard, Aillaud & C.ia, 1895. [Reeditado em anos subsequentes].

Coutinho, António Xavier Pereira. Rudimentos de agricultura. Paris e Lisboa: Aillaud & C.ia, [1903].

Coutinho, António Xavier Pereira. A Flora de Portugal (Plantas vasculares). Lisboa: Aillaud, Alves & C.ia, 1913. 

Coutinho, António Xavier Pereira. Esboço de uma flora lenhosa portuguesa. Lisboa: Direcção Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas, 1936. 

Coutinho, António Xavier Pereira. Flora de Portugal (plantas vasculares) disposta em chaves dicotómicas. Lisboa: Bertrand Irmãos, Ltd., 1939. 

Bibliografia sobre o biografado

Coutinho, António Xavier da Gama Pereira (dir.). In-Memoriam do Professor Dom António-Xavier Pereira Coutinho. Porto: Diário do Porto, 1941. 

Fernandes, Abílio e Artur Augusto Taborda de Morais. “Publicações do Prof. A. X. Pereira Coutinho.” Boletim da Sociedade Broteriana 14 (1940): XI–XX.

Palhinha, Rui Teles. “D. António Xavier Pereira Coutinho.” Boletim da Sociedade Broteriana 14 (1940): VII–X.

Palhinha, Rui Teles. “D. António Xavier Pereira Coutinho.” Revista da Faculdade de Ciências 5 (1940): 37–38.

Tavares, Joaquim da Silva

Vila de Rei, 17 agosto 1866 — Paris, 2 setembro 1931

Palavras-chave: Brotéria, Companhia de Jesus, botânica, zoologia, cecídias.

DOI: https://doi.org/10.58277/RXNA6324

Joaquim da Silva Tavares, S.J. ingressou na Companhia de Jesus com catorze anos, no dia 13 de novembro de 1880. Depois de dois anos no Noviciado do Barro em Torres Vedras, estudou Humanidades (1882–1885) e Filosofia (1885–1888) no Colégio de São Francisco em Setúbal. Entre 1889 e 1894 foi professor de Física, Química e História Natural no Colégio de Campolide (1889) em Lisboa e no Colégio de São Fiel (1890–1894) em Louriçal do Campo, onde ensinou também Latim e Grego. Tal como todos os seus companheiros jesuítas neste período, estudou Teologia fora de Portugal, primeiro em Uclés (1894–1897), na província de Cuenca em Espanha e depois em Vals-près-le-Puy na região de Haute Loire em França (1897–1898). Foi ordenado sacerdote em Uclés no dia 20 de junho de 1897 e, entre 1898 e 1899, esteve em Viena para se preparar para a profissão dos últimos votos na Companhia de Jesus. De regresso a Portugal, ensinou Física, Química e Mecânica no Colégio de São Francisco (1899–1900) e Física, Química e História Natural no Colégio de São Fiel (1900–1907), onde também dirigiu o herbário e o museu de história natural. Entre 3 de julho de 1908 e 5 de outubro de 1910, foi reitor de São Fiel.

Em Outubro de 1902, Joaquim da Silva Tavares, Cândido de Azevedo Mendes, S.J. (1874–1943) e Carlos Zimmermann, S.J. (1871–1950) fundaram a revista científica Brotéria. Por ter como principal objetivo a identificação de novas espécies de animais e plantas, a Brotéria: Revista de Sciencias Naturaes do Collegio de S. Fiel tomou o nome do naturalista Félix de Avelar Brotero (1744–1828), a quem a revista era dedicada. Além de ter atingido uma longevidade singular para uma revista científica em Portugal, a Brotéria Científica (1902–2002) distinguiu-se também das outras publicações da Companhia de Jesus em todo o mundo, por ser uma revista exclusivamente científica e não uma gazeta de divulgação com fins apologéticos. Ao longo de cem anos, publicaram-se na Brotéria cerca de 1 300 artigos de investigação original, em áreas como a botânica, a zoologia, a genética e melhoramento de plantas, a bioquímica e a genética molecular. Com a fundação da Brotéria, os naturalistas da Companhia de Jesus pretendiam difundir os seus trabalhos de classificação sistemática e contribuir para o progresso da botânica e da zoologia no nosso país. Este objetivo foi alcançado através da identificação e descrição de vários milhares de espécies de animais e plantas, muitas delas novas para a ciência, sobretudo em Portugal, Espanha, Madeira, Angola, Moçambique, Brasil e Timor. Entre 1902 e 1979, foram identificadas e descritas 1 327 novas espécies de animais e 890 novas espécies de plantas na revista dos jesuítas portugueses. Durante a direção de Silva Tavares (1901–1931), a Brotéria revelou ser uma importante revista científica, de circulação nacional e internacional. A relevância das suas publicações foi reconhecida em Portugal e no estrangeiro e logo nos primeiros anos da sua existência, houve revistas científicas especializadas como o American Naturalist, Journal of Mycology e o Bulletin of the Torrey Botanical Club, o primeiro jornal de botânica editado nos Estados Unidos da América, a dedicar artigos às novas espécies identificadas e descritas pelos naturalistas da Companhia de Jesus, inserindo-as nos seus catálogos anuais. A inclusão das espécies descritas na Brotéria nestes catálogos revela a importância da circulação do conhecimento entre os jesuítas e os botânicos americanos, não só para o desenvolvimento da sistemática e da taxonomia no início do século XX, mas também para a credibilização internacional dos jesuítas portugueses.

Silva Tavares dedicou-se à identificação e descrição de cecídias, estruturas vulgarmente designadas por galhas e que se desenvolvem nas plantas como resposta ao ataque de outros seres vivos. Ao longo da sua carreira, estudou centenas de espécies de zoocecídias colecionadas em Portugal, Espanha, Áustria, Brasil, Argentina e Moçambique. Em 1900, publicou o seu primeiro trabalho sobre as zoocecídias portuguesas nos Anais de Ciências Naturais, o que lhe valeu a nomeação para membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa em 1903. Ao longo de 92 páginas, o jesuíta identificou 234 insetos cecidogénicos, 24 dos quais novos para a ciência, e setenta novas plantas hospedeiras. Os seus trabalhos de classificação sistemática de cecídias tiveram a sua continuação natural na Brotéria. No ano de fundação da revista, Silva Tavares publicou uma série de artigos sobre as cecídias portuguesas, destacando-se uma adenda ao estudo publicado nos Anais de Ciências Naturais dois anos antes, onde identificava quinze novas espécies. 

Inspirado pelo trabalho de Jean-Jacques Kieffer, S.J. (1857–1925), que tinha publicado uma resenha das zoocecídias da Europa em 1901, Silva Tavares decidiu publicar uma sinopse das espécies portuguesas em 1905. Para a conclusão deste trabalho, contou com a colaboração de diversos naturalistas para a colheita de alguns espécimes, nomeadamente Gonçalo Sampaio (1865–1937) e Augusto Nobre (1865–1945), da Academia Politécnica do Porto, e Afonso Luisier, S.J. (1872–1957). Para a classificação taxonómica de alguns espécimes, o jesuíta reconheceu ainda a importância das contribuições de Kieffer, Louis Bedel (1849–1922) e dos irmãos Joseph de Joannis, S.J. (1854–1932) e Léon de Joannis, S.J. (1843–1919). Para complementar a identificação e descrição das zoocecídias portuguesas, este estudo incluiu catorze estampas com fotografias de cerca de 240 espécies. Apesar da prática comum nos estudos sobre cecídias ser a publicação de desenhos, Silva Tavares considerava que era mais vantajoso publicar antes fotografias, por causa da sua maior fidelidade. Em 1907, o jesuíta publicou um apêndice a esta sinopse, onde identificou 32 novas espécies de cecídias e uma nova espécie de díptero. 

Em 1903, 1905 e 1914, Silva Tavares publicou os resultados dos seus estudos sobre as zoocedídias, que o botânico Carlos Azevedo de Meneses (1863–1928) lhe enviou da ilha da Madeira, e identificou 72 espécies, doze das quais novas para a ciência. Em 1908, publicou um estudo sobre as cecídias da Zambézia, onde identificou 54 espécies, onze das quais inéditas. Os espécimes da Zambézia tinham sido colhidos pelo missionário Luís Lopes, S.J. (1867–1954). Os últimos trabalhos que Silva Tavares publicou antes da expulsão dos jesuítas versavam sobre as cecídias do Brasil e do Gerês. Enquanto no primeiro estudo, descreveu quarenta espécies, a partir do material enviado pelos padres Johann Rick, S.J. (1869–1946) e Bruggmann, S.J. (1863–1922), no segundo, identificou 137 espécies.

Entre 1902 e 1906, a Brotéria afigurou-se como uma revista científica dirigida a um público académico. Neste período, Silva Tavares conseguiu estabelecer mais de uma centena de permutas com revistas nacionais e internacionais. Contudo, o número de assinantes em Portugal não era suficiente para financiar a sua publicação. Por isso, resolveu restruturar a Brotéria dividindo-a em três séries distintas: Vulgarização CientíficaBotânica e Zoologia. Enquanto as séries científicas publicaram artigos de investigação original na língua de preferência do autor (português, latim, italiano, francês, alemão, espanhol, francês ou inglês), a série de Vulgarização Científica foi integralmente escrita em português e a sua publicação teve como objetivo garantir a independência financeira à Brotéria. Dividida em seis fascículos anuais, esta série foi publicada alternadamente com os cadernos de Botânica Zoologia até 1924, dando depois origem à Brotéria Cultural. Apesar da sua curta longevidade, publicaram-se nesta série mais de quatrocentos artigos de divulgação científica em áreas como agricultura, física, geografia, medicina, higiene, química e história das ciências. O projeto de divulgação da Brotéria esteve manifestamente dependente do seu diretor e dos seus maiores colaboradores, nomeadamente os jesuítas Camilo Torrend (1875–1961), Raúl Sarreira (1889–1968), Manuel Rebimbas (1873–1944), António de Oliveira Pinto (1868–1933), Cândido Azevedo Mendes (1874–1943), Manuel Martins (1858–1940) e Artur Redondo (1873–1966) e outros cientistas e médicos portugueses e brasileiros como António Ferreira da Silva (1853–1923), Egas Moniz Barreto de Aragão (1870–1924), José Pedro Dias Chorão (1853–1928) e Fernando de Almeida e Silva (1873–1942). O empenho de Silva Tavares na publicação desta série refletiu-se sobretudo na quantidade de artigos que escreveu. Ao longo de dezoito anos, o diretor da Brotéria publicou 174 artigos na Brotéria: Vulgarização Científica, o que representou mais de 40% de todos os artigos publicados nesta série. A partir dos artigos que escreveu na Vulgarização Científica, publicou um volume sobre As fruteiras do Brasil em 1923.

Após a implantação da República, Silva Tavares foi forçado a exilar-se, tendo chegado a Salamanca a 13 de outubro de 1910. No dia 7 de novembro partiu de Cádis para Buenos Aires, onde chegou no dia 25 desse mês. De Buenos Aires seguiu para a Baía, onde restabeleceu, em 1912, a publicação da Brotéria, que assumiu então o subtítulo de Revista Luso-Brasileira. Permaneceu no Brasil até 1914, data em que regressou a Espanha, fixando-se na Galiza, primeiro em Pontevedra e depois no Colégio de La Guardia. Tal como os seus companheiros jesuítas, viu as suas coleções confiscadas pelo Governo Provisório. Embora desse razão a Silva Tavares, António José de Almeida (1866–1929), ministro do Interior, acabou por entregar a resolução deste assunto ao ministro da Justiça, Afonso Costa (1871–1937), que recusou as pretensões do jesuíta. Assim, apesar da insistência de Veríssimo de Almeida (1834–1915), Marck Athias (1875–1946), Carlos Arruda Furtado (1886–1953), António Ferreira da Silva (1853–1923) e Ricardo Jorge (1858–1934), Silva Tavares só recuperou as suas coleções de cecídias quando regressou a Portugal em 1928.

No exílio, Silva Tavares estudou as cecídias e os insetos cecidogénicos da Argentina, do Brasil e da Península Ibérica. Em 1915, fruto da sua breve estadia em Buenos Aires, publicou um artigo sobre as cecídias da Argentina, onde identificou e descreveu 73 espécies. Entre 1916 e 1924, publicou uma série de artigos sobre os insetos das famílias Cynipidae e Cecidomyiidae da Península Ibérica, onde identificou e descreveu pela primeira vez oito géneros, 33 espécies, dez subespécies e uma variedade. Entre 1918 e 1922, descreveu nas páginas da Brotéria onze novos géneros e trinta novas espécies de cecídias do Brasil. Em 1925, publicou uma “Nova contribuição para o estudo da cecidologia brasileira”, onde identificou um novo género e cinco novas espécies de galhas. Entre 1927 e 1931, a Brotéria editou um conjunto de artigos de Silva Tavares sobre os insetos da família Cynipidae encontrados na Península Ibérica. Nestes artigos, o jesuíta descreveu seis novas espécies e seis novas subespécies destes insetos. Em 1931, Silva Tavares reuniu estes trabalhos numa monografia intitulada Cynipidae Peninsulae Ibericae. O primeiro volume, profusamente ilustrado, compreendeu os artigos publicados até 1928. Com a morte de Silva Tavares, o segundo volume, que incluía os artigos publicados entre 1930 e 1931, ficou incompleto e nunca chegou a ser publicado.

Durante a direção de Silva Tavares, a publicação da Brotéria foi reconhecida no Brasil, onde a revista recebeu duas medalhas de ouro, a primeira na Exposição do Liceu de Artes e Ofícios da Baía, em 1913, e a segunda na Exposição Internacional do Rio de Janeiro, em 1922. Enquanto esteve sediada na Baía (1912–1914), por causa do exílio dos jesuítas, a sua subsistência financeira foi garantida, em grande medida, por assinantes brasileiros, dado que existiam na Europa apenas 98 assinantes. Em 1927, a situação já se tinha invertido e a maioria dos assinantes encontrava-se no nosso país. De regresso a Portugal em 1928, Silva Tavares foi convidado para trabalhar no Instituto Rocha Cabral e em 1930 conseguiu que a Brotéria – Botânica e a Brotéria – Zoologia fossem subsidiadas pela recém-criada Junta de Educação Nacional. Apesar de ter publicado a grande maioria dos seus trabalhos na Brotéria, publicou também no Boletim da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, na Marcellia, nos Annales de la Societé Linnéenne, e em atas de encontros organizados pela Associación Española para el Progresso de las Ciencias. Entre os seus principais correspondes estrangeiros encontravam-se os jesuítas Jean-Jacques Kieffer, Joseph de Joannis, Léon de Joannis e Johann Rick, e ainda os naturalistas italianos Alfredo Corti (1880–1973) e Mario Bezzi (1868–1927).

Pelas suas atividades científicas em torno da identificação e classificação sistemática de cecídias, a sua reputação científica foi-se construindo, quer a nível nacional, quer no panorama internacional. Além de ter sido cofundador da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais e da Sociedade Ibérica de Ciências Naturais, pertenceu ainda a várias outras reputadas academias científicas nacionais e estrangeiras como a Reial Acadèmia de Ciències i Arts de Barcelona, a Société Lynnéenne, a Sociedad Española de Historia Natural, a Asociación Española para el Progreso de las Ciências, a Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências, a Société Entomologique de France, a Sociedade Entomológica de España, o Museu Nacional do Rio de Janeiro e a Accademia Pontificia dei Nuovi Lincei. O reconhecimento científico atingiu o seu apogeu com a nomeação, por unanimidade, para sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa. A eleição, realizada a 6 de março de 1928, foi amplamente noticiada nos periódicos portugueses e valeu a Silva Tavares a felicitação pessoal de Egas Moniz. Ocorrida em plena Ditadura Militar, esta nomeação foi um dos primeiros sinais públicos de reconhecimento científico dos jesuítas, em Portugal, após a implantação da República em outubro de 1910. 

Silva Tavares morreu no dia 2 de setembro de 1931 em Paris e foi homenageado na Academia das Ciências no dia 5 de novembro de 1936, numa sessão realizada por Aquiles Machado (1862–1942), Celestino da Costa (1844–1956) e Antero Seabra (1897–1983), seu sucessor na Academia.

Francisco Malta Romeiras

Obras

Tavares, Joaquim da Silva. “As Zoocecidias Portuguesas. Enumeração das espécies até agora encontradas em Portugal e descrição de dezanove ainda não estudadas.” Anais de Ciências Naturais 7 (1900): 17–106.

Tavares, Joaquim da Silva. “As Zoocecidias portuguesas: Addenda.” Brotéria 1 (1902): 5–48.

Tavares, Joaquim da Silva. “Zoocecidias dos suburbios de Vienna d’Austria.” Brotéria 1 (1902): 77–94.

Tavares, Joaquim da Silva. “Zoocecidias da ilha da Madeira.” Brotéria 2 (1903): 179–186; 4 (1905): 221–227.

Tavares, Joaquim da Silva. “Zoocecidias da ilha da Madeira.” Brotéria: Zoologia 12 (1914): 193–197.

Tavares, Joaquim da Silva. “Synopse das Zoocecidias Portuguesas.” Brotéria 4 (1905): v–xii, 1–123.

Tavares, Joaquim da Silva. “Contributio prima ad cognitionem cecidologiae Regionis Zambeziase.” Brotéria: Zoologia 7 (1908): 133–174.

Tavares, Joaquim da Silva. “Cécidologie Argentine.” Brotéria: Zoologia 13 (1915): 88–128.

Tavares, Joaquim da Silva. “Espécies novas de Cynípides e Ceccidomyas da Península Ibérica, e descrição de algumas já conhecidas.” Brotéria: Zoologia 14 (1916): 65–136; 16 (1918): 130–142; 17 (1919): 5–101; 18 (1920): 43–69; 20 (1922): 97–155; 21 (1924): 5–48.

Tavares, Joaquim da Silva. “Cecidologia Brasileira.” Brotéria: Zoologia 16 (1918): 21–28; 18 (1920): 82–125; 19 (1921): 76–112; 20 (1922): 5–48.

Tavares, Joaquim da Silva. “Os Cynípides da Península Ibérica.” Brotéria: Zoologia 24 (1927): 16–78; 25 (1928): 11–152; 26 (1930): 25–53; 27 (1931): 5–100.

Bibliografia sobre o biografado

Carvalho, José Vaz de. “Joaquim da Silva Tavares.” In Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús, vol. 4: 3706. Madrid e Roma: Universidade Pontificia Comillas e Institutum Historicum Societatis Iesu, 2001.

Leite, Serafim. “J.S. Tavares.” Brotéria: Fé, Ciências, Letras 13 (1931): 273–297.

Luisier, Afonso. “In memoriam. Le R. P. J. da Silva Tavares, S.J.” Brotéria: Ciências Naturais 1 (1932): 9-34.

Maurício, Domingos. “O fundador da Brotéria na Academia.” Brotéria: Revista Contemporânea de Cultura 23 (1936): 449–455.

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. xxx: 811–814. Lisboa e Rio de Janeiro: Verbo, 1936–1960

Zimmermann, Carlos (Karl Zimmermann)

Ehigen, Baden-Württemberg, Alemanha, 28 março 1871 — Salvador, Baía, Brasil, 21 outubro 1950

Palavras-chave: Brotéria, Companhia de Jesus, diatomáceas, botânica.

DOI: https://doi.org/10.58277/WSYC8043

Carlos Zimmermann, S.J. entrou na Companhia de Jesus através da província de Lyon, em data incerta, mas só iniciou a sua formação religiosa em Portugal em 1890. No dia 7 de Setembro desse ano, ingressou no Noviciado do Barro em Torres Vedras, onde estudou Humanidades e foi responsável pelo ensino de Música até 1892. Depois de ter completado os seus estudos de Filosofia e Ciências Naturais no Colégio de São Francisco (1892–1895) em Setúbal, foi nomeado professor no Colégio de São Fiel, onde permaneceu até 1902. Estudou Teologia em Canterbury, Inglaterra (1902–1905), e no Colégio de Santo Inácio em Enlway, Irlanda (1905–1906). De regresso a Portugal, esteve no Noviciado do Barro (1906–1907), para se preparar para a profissão dos últimos votos na Companhia de Jesus. Em 1907, foi destacado para o Colégio do Porto e foi encarregue de organizar o Museu de História Natural que se estava então a constituir. Com o encerramento deste colégio em 1909, Zimmermman regressou a São Fiel, onde permaneceu até 1910. Nos dois períodos em que esteve neste colégio (1895–1902 e 1909–1910), ensinou Física, Química, História Natural, Música, Latim, História, Geografia, Desenho e Alemão. No ano letivo de 1897–1898, Zimmermann foi responsável pela constituição do herbário do Colégio de São Fiel. Em 1910, este herbário era constituído por mais de duas mil espécies de líquenes, musgos, fungos, fanerogâmicas e cerca de três mil espécies de diatomáceas.

Juntamente com Joaquim da Silva Tavares, S.J. (1866–1931) e Cândido de Azevedo Mendes, S.J. (1874–1943), fundou no Colégio de São Fiel, em 1902, a Brotéria, uma revista científica dedicada à identificação, descrição e classificação de novas espécies de animais e plantas. Promotor ativo do ensino experimental das ciências naturais, publicou, entre 1902 e 1907, uma série de quatro artigos na Brotéria, intitulada “Microscopia vegetal”, onde encorajava os professores de História Natural dos liceus portugueses a usar o microscópio nas suas aulas. Uma vez que o seu objetivo era promover o ensino experimental da botânica, estes artigos continham descrições pormenorizadas dos instrumentos e dos métodos relevantes para se obterem preparações definitivas para observação microscópica. 

Entre os seus principais correspondentes estrangeiros, encontravam-se os naturalistas franceses Maurice Peragallo (1853–1931), autor de uma vasta obra sobre a identificação e classificação de diatomáceas e antigo professor de Zimmermann em Paris, e Joannes Albert Tempère (1847–1926), colecionador destas algas microscópicas e criador de meios de montagem específicos para a sua observação microscópica. Pontualmente, Zimmermann correspondeu-se ainda com Frederico Oom (1864–1930), direor do Observatório Astronómico de Lisboa, com quem se aconselhou sobre a construção de um observatório meteorológico no Colégio de São Fiel. Situado a 2 km da serra da Gardunha, a uma altitude superior a 500 m, este observatório começou a ser construído em 1901 e entrou em funcionamento em Janeiro de 1902. As observações meteorológicas realizadas em São Fiel eram relatadas duas vezes por dia ao Observatório do Infante D. Luís e constavam do relatório anual desta instituição.

Na sequência dos bombardeios ao Colégio de Campolide na tarde de 4 de Outubro de 1910, um grupo de quinze jesuítas dirigiu-se à estação de comboios de Campolide, deixando a maior parte dos seus bens no colégio. Carlos Zimmermann fazia parte deste grupo e sofreu dois atentados no caminho para a estação, onde foi depois assaltado por um revolucionário. Consigo levou apenas o microscópio, deixando no colégio não só as suas coleções de diatomáceas, mas também alguns livros, manuscritos e desenhos de preparações destas algas microscópicas. Após a implantação da república, estes bens foram confiscados pelo Governo Provisório. Exilado no Brasil desde Março de 1911, conseguiu recuperar as suas coleções em novembro desse ano, graças ao apoio do naturalista José da Silva e Castro (1842–1928) e à intervenção de António Machado (1833–1969), membro da comissão nomeada para inventariar as coleções científicas e a biblioteca do Colégio de Campolide e filho de Bernardino Machado (1833–1969), então ministro dos Negócios Estrangeiros. Apesar do apoio da comunidade científica nacional e internacional, Zimmermann não conseguiu recuperar os livros que estavam no Colégio de Campolide, nem o herbário do Colégio de São Fiel, que após a expulsão dos jesuítas foi enviado para Universidade de Coimbra, onde ficou, provavelmente, a cargo de Júlio Henriques (1838–1928).

Reconhecido em Portugal e no estrangeiro pela relevância do seu trabalho de classificação sistemática, Zimmermann integrou importantes academias científicas como a Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, da qual era sócio fundador, e a Royal Microscopical Society. Entre 1902 e 1919, identificou e descreveu centenas de espécies de diatomáceas em Portugal, no Brasil, em Moçambique e nas ilhas da Madeira e de Porto Santo. Em Portugal identificou 27 famílias, 73 géneros e 400 espécies de diatomáceas (das quais 340 nunca tinham sido observadas) e na Madeira registou cerca de 200 espécies diferentes. Entre 1913 e 1919, publicou uma série de artigos na Brotéria sobre as diatomáceas do Brasil (Baía, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul), onde registou cerca de 800 espécies diferentes. Ao longo da sua carreira, identificou e descreveu 80 novas espécies de diatomáceas.

A partir de 1911, Zimmermann foi professor no Colégio Padre António Vieira, criado na Baía pelos jesuítas portugueses exilados. Foi ainda bibliotecário deste colégio e diretor do Museu de Ciências Naturais. Em 1921, pediu a secularização e abandonou a Companhia de Jesus. Morreu na cidade de Salvador da Baía no dia 21 de outubro de 1950.

Francisco Malta Romeiras

Obras

Zimmermann, Carlos. “Observatorio Metereologico do Collegio de S. Fiel.” Brotéria 1 (1902): 185–188.

Zimmermann, Carlos. “Microscopia vegetal.” Brotéria 1 (1902): 49–75; 2 (1903): 5–40; 4 (1905): 137–159; 5 (1906): 229–244.

Zimmermann, Carlos. “Os Jesuitas e a Astronomia nos seculos 17 e 18.” Brotéria 5 (1906): 125–128.

Zimmermann, Carlos. “Catálogo das Diatomaceas portuguezas.” Brotéria 5 (1906): 245–251; Brotéria: Botânica 8(1909): 89–103; 9 (1910): 95–102; 12 (1914): 115–124.

Zimmermann, Carlos. “Diatomaceas. Como se colhem e preparam.” Brotéria: Vulgarização Científica 9 (1910): 42–51.

Zimmermann, Carlos. “Contribuições para o estudo das Diatomaceas dos Estados Unidos do Brasil.” Brotéria: Botânica11 (1913): 149–164; 12 (1914): 5–12; 13 (1915): 37–56, 65–71 e 124–146; 14 (1916): 85–103 e 130–157; 15 (1917): 30–45; 16 (1918): 8–24 e 113–122; 17 (1919): 5–16.

Zimmermann, Carlos. “Contribuição para o conhecimento das Diatomaceas da Provincia de Moçambique.” Brotéria: Botânica 12 (1914): 155–162.

Zimmermann, Carlos. “Algumas Diatomaceas novas ou curiosas.” Brotéria: Botânica 13 (1915): 33–36; 15 (1917): 5–7; 16 (1918): 84–95.

Zimmermann, Carlos. “Quelques Diatomées nouvelles ou curieuses.” Brotéria: Botânica 17 (1919): 97–100.

Bibliografia sobre o biografado

Romeiras, Francisco Malta. “Constituição e percurso das colecções científicas dos jesuítas exilados pela 1ª República: o caso de Carlos Zimmermann SJ (1871-1950).” Archivum Historicum Societatis Iesu 86 (168) (2015): 287–327.

Romeiras, Francisco Malta e Henrique Leitão. “Jesuítas e Ciência em Portugal. II: Carlos Zimmermann SJ e o ensino da Microscopia Vegetal.” Brotéria 174 (2012): 113–125.

Gomes, Doriedson Ferreira, Oberdan Caldas, Eduardo Mendes da Silva, Peter Andrew Gell e David M. Williams. “Father Zimmermann (1871–1950): the first Brazilian diatomist.” Diatom Research 27 (2012): 177–188.

Franco, José Eduardo. “Carlos Zimmermann.” In Fé, Ciência, Cultura: Brotéria–100 anos, ed. Hermínio Rico e José Eduardo Franco, 149–150. Lisboa: Gradiva, 2003.

Torrend, Camilo (Camille Torrend)

Saint-Privat d’Allier, Haute-Loire, França, 21 junho 1875 — Salvador, Baía, Brasil, 24 junho 1961

Palavras-chave: Brotéria, Companhia de Jesus, fungos, botânica.

DOI: https://doi.org/10.58277/YSEO1434

Camilo Torrend, S.J. tinha dezanove anos quando entrou na Companhia de Jesus no Noviciado do Barro, em Torres Vedras, no dia 25 de outubro de 1894. A decisão de ingressar na Companhia de Jesus em Portugal prendeu-se com o desejo de vir a ser missionário na Zambézia, à semelhança do seu irmão Jules (1861–1936). Depois de três anos no Noviciado do Barro, estudou Filosofia e Ciências Naturais no Colégio de São Fiel (1897–1898) em Louriçal do Campo e no Colégio de São Francisco (1900–1902) em Setúbal. Entre 1904 e 1908, estudou Teologia em Dublin e foi ordenado sacerdote nesta cidade no dia 29 de julho de 1907. De regresso a Portugal, foi destinado para o Colégio de Campolide, em Lisboa, onde se focou na identificação e caracterização de novas espécies de fungos. Neste colégio, constituiu uma importante coleção de 283 mixomicetes, na qual se encontravam representadas 199 espécies diferentes. Antes do exílio, realizou diversas expedições para recolha de fungos em Almada, no Vale do Rosal, na Costa de Caparica, em Setúbal e na Serra de Monchique. 

No dia 6 de outubro de 1910, Torrend encontrava-se no Noviciado do Barro, onde estava a terminar a sua formação religiosa, quando toda a comunidade, constituída por noventa jesuítas, foi presa por ordem de Afonso Costa. Graças à ação diplomática francesa, foi libertado da prisão de Caxias no dia 12. Nesse dia foi entrevistado por Afonso Costa que lhe ofereceu uma cátedra na Universidade de Coimbra, caso quisesse permanecer em Portugal. Torrend recusou a oferta do ministro da Justiça e acabou por embarcar para Londres no dia 18 de outubro. Tal como acontecera com os seus companheiros jesuítas, viu as suas coleções científicas confiscadas pelo Governo Provisório. Contudo, graças à intervenção do embaixador francês, conseguiu recuperá-las em abril de 1913.

Torrend foi um dos principais autores da Brotéria, a revista científica fundada por três jesuítas portugueses no Colégio de São Fiel em 1902. Ao longo da sua carreira, identificou e descreveu centenas de espécies de fungos em Portugal, na Madeira, em Moçambique, em Timor e no Brasil. No primeiro artigo que publicou na Brotéria, Torrend identificou 512 espécies de fungos na região de Setúbal. Na época, este trabalho foi reconhecido por Júlio Henriques (1838–1928) e José Veríssimo de Almeida (1834–1915) como uma das mais importantes contribuições para o estudo da flora micológica portuguesa. Em 1905, quando ainda estava em Dublin a estudar Teologia, Torrend publicou a sua primeira contribuição para o estudo dos fungos de Moçambique. Neste trabalho, identificou 36 fungos pertencentes à flora da Zambézia e, juntamente, com o Padre Giacomo Bresadola (1847–1929), fundador da Societé Mycologique de France, descreveu duas espécies novas para a ciência. Estes espécimes tinham sido recolhidos pelo seu irmão Jules e por Luís Gonzaga Dialer, S.J. (1866–1943), missionários em Mururú, no distrito do Zumbo, e enviados para Torrend, para posterior identificação e descrição. Entre 1907 e 1908, o jesuíta publicou na Brotéria: Botânica uma importante resenha com as 271 espécies de mixomicetes conhecidas até então. Além de uma tabela geral de géneros, espécies e sinonímias, a revista dos jesuítas portugueses publicou ainda 240 ilustrações de mixomicetes em nove estampas diferentes. Entre 1909 e 1913, Torrend estudou os cogumelos da ilha Madeira e identificou 338 espécies, 31 das quais novas para a ciência. Estes fungos tinham sido recolhidos por Carlos Azevedo Meneses (1863–1928) e pelos padres Jaime Gouveia Barreto (1887–1963) e Manuel da Silveira, seus correspondentes na Madeira. Entre 1922 e 1935, publicou na Brotéria, uma série de artigos sobre os basidiomicetes da família Polyporaceae do Brasil, tendo identificado e descrito 115 espécies diferentes, uma das quais inédita. Apesar da Brotéria ter editado a maioria dos seus trabalhos de classificação sistemática, Torrend publicou também no Boletim da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, no Bulletin de la Societé Mycologique de France, nas Mycological Notes e no The Irish Naturalist.

Ao longo da sua carreira, Torrend publicou alguns artigos de divulgação científica, nomeadamente na Brotéria-Vulgarização Científica (1907–1924), tendo-se destacado, neste contexto, o texto que escreveu sobre a expedição de Eddington e Crommelin a São Tomé e Príncipe e ao Brasil, para a observação do eclipse total de 29 de maio de 1919. Por ter publicado o artigo antes de terem sido analisadas as chapas fotográficas do eclipse, Torrend apresentou os três cenários possíveis, salientando qual o resultado que poderia confirmar a teoria da relatividade de Einstein 

Entre 1912 e 1914, foi professor no Instituto Nun’Álvares (Château de Dielighem, Bruxelas). Com o início da Primeira Guerra Mundial, Torrend partiu para o Brasil. Ensinou Apologética e Biologia no Colégio Padre António Vieira, em Salvador da Baía (1914–1953) e regeu a cátedra de Fitopatologia e Botânica na Escola Agrícola da Baía entre 1932 e 1943. Sócio fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais e membro da Real Sociedade de Agricultura de Turim e da Real Academia das Ciências, Torrend foi ainda conselheiro do Diretório Regional de Geografia do Brasil e presidente da Sociedade Baiana de História. Quando o micólogo brasileiro Augusto Chaves Batista (1916–1967), que tinha como seu aluno, criou o Instituto de Micologia da Universidade Federal de Pernambuco, em 1954, decidiu dar o nome do jesuíta ao herbário. Constituído por cerca de 88 mil registos de fungos e 46 mil exsicatas é considerado atualmente o maior herbário do género da América Latina. Em 1957, a Universidade do Recife distinguiu-o com um doutoramento honoris causa.

Morreu com 86 anos em Salvador da Baía, no Brasil, no dia 24 de junho de 1961.

Francisco Malta Romeiras

Obras

Torrend, Camilo. “Contribuições para o estudo dos fungos da região setubalense.” Brotéria 1, (1902): 93–150; 2 (1903): 123–148; 4 (1905): 207–211.

Torrend, Camilo. “Primeira contribuição para o estudo da llora mycologica da provincia de Moçambique.” Brotéria 4 (1905): 212–221.

Torrend, Camilo. “Les Myxomycètes. Étude des espèces connues jusqu’ici.” Brotéria: Botânica 6 (1907): 5–64; 7 (1908): 5–177.

Torrend, Camilo. “Contribuitions pour l’étude des champignons de l’île de Madère.” Brotéria: Botânica 8 (1909): 128–144; 10 (1912): 29–49; 11 (1913): 165–181.

Torrend, Camilo. “Fungos. Que são e como se coleccionam.” Brotéria: Vulgarização Científica 9 (1910): 95–106.

Torrend, Camilo. “Premiére contribuition à l’étude des champignons de l’île de Timor (Océanie).” Brotéria: Botânica 9 (1910): 83–91.

Torrend, Camilo. “Un nouveau genre de Discomycètes, Helolachnun aurantiacum Torrend.” Brotéria: Botânica 9 (1910): 53.

Torrend, Camilo. “Les Basidiomycètes des environs de Lisbonne et de la région de S. Fiel (Beixa Baixa).” Brotéria: Botânica 10 (1912): 192–210; 11 (1913): 54–98.

Torrend, Camilo. “O eclipse total de 29 de Maio de 1919, no Brazil.” Brotéria: Vulgarização Científica 18 (1920): 40–41.

Torrend, Camilo. “Les Polyporacées du Brésil.” Brotéria: Botânica 18, (1920): 23–43 e 121–142; 20 (1922): 107–112; 22 (1924): 12–42; 24 (1926): 5–19; Brotéria: Ciências Naturais 31 (1935): 108–120.

Bibliografia sobre o biografado

Carvalho, José Vaz de Carvalho. “Camilo Torrend.” In Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús, vol. 4: 3816. Madrid e Roma: Universidade Pontificia Comillas e Institutum Historicum Societatis Iesu., 2001.

Palhinha, Rui Teles (Ruy Telles Palhinha)

Angra do Heroísmo, 4 janeiro 1871 — Lisboa, 13 novembro 1957

Palavras-chave: botânica, história da botânica, Açores.

DOI: https://doi.org/10.58277/FDGU5029

Rui Teles Palhinha sucedeu a António Xavier Pereira Coutinho na direção da secção de Botânica e do Jardim Botânico da Faculdade de Ciências de Lisboa, tendo-se dedicado sobretudo ao ensino da botânica e ao estudo das plantas dos Açores.

Completou o curso do liceu de Santarém em 1888 e em 1892 terminou o curso da Faculdade de Filosofia Natural da Universidade de Coimbra. Em 1896 foi colocado no Liceu de Santarém e em 1900 no Liceu Central de Lisboa. Em 1908 foi nomeado reitor do Liceu de Camões e em 1910 transferido a seu pedido para o Liceu de Passos Manuel, onde se conservou até 1926, quando abandonou o ensino liceal. De 1915 a 1927 foi professor de metodologia especial do grupo das Ciências Histórico-Naturais e diretor da Escola Normal Superior de Lisboa.

Simultaneamente entrou para o ensino universitário. Em 1904 foi nomeado, após concurso, lente substituto da Escola Politécnica de Lisboa, sendo provido definitivamente no lugar em 1908. Em 1911, por transformação da Escola Politécnica em Faculdade de Ciências, passou à categoria de professor extraordinário e em 1918 foi nomeado professor ordinário. Por proposta do Conselho da Faculdade de Ciências, foi nomeado em 1921 diretor da Secção de Botânica e do Jardim Botânico, na vaga deixada pela jubilação de Pereira Coutinho (1851–1939). De 1904 a 1927 desempenhou as funções de secretário da Escola Politécnica e, depois, da Faculdade de Ciências. Foi também, durante muitos anos, diretor da Biblioteca da Escola Politécnica e depois bibliotecário da Faculdade de Ciências. Foi também diretor, por eleição, da Faculdade de Farmácia de Lisboa. Demitiu-se desse cargo em 1926 a fim de completar o respetivo curso, após o que foi convidado a exercer o cargo de professor da mesma Faculdade, de que pediu a exoneração em 1932. Atingiu o limite de idade em 1941. Em 1968, a Portaria 23326 instituiu o prémio escolar Prof. Doutor Ruy Telles Palhinha a ser concedido ao aluno da Faculdade de Ciências de Lisboa que tivesse a mais alta classificação na disciplina de taxonomia das plantas vasculares.

Foi sócio de várias sociedades e associações científicas nacionais e estrangeiras. Desde 9 de fevereiro de 1953 era sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa no lugar deixado por Antero F. de Seabra (1874–1952).

Luís Gonçalves da Cunha, naturalista da Faculdade de Ciências, que o acompanhou nas explorações açóricas, numa biografia publicada em 1958, destacou o primado do professor sobre o botânico, a “sua vasta cultura filosófico-científica,” tanto nas ciências como nas letras e nas línguas, a sua “prodigiosa” memória e capacidade física, o “trato afável”, por vezes com “extremos de sensibilidade,” a sua independência face aos contextos nacionais da época em que viveu.

Palhinha publicou biografias de naturalistas e académicos portugueses, estudos sobre a história de cursos e instituições e da botânica em Portugal, promoveu a publicação de obras relevantes de botânica e estudou a flora dos Açores.

Nas biografias de Jules Daveau (1852–1929), Pereira Coutinho, Brotero (1744–1828), Francisco Manuel de Melo Breyner (1837–1903), Antero de Seabra e Domingos Vandelli (1735–1816), Palhinha destacou não só as qualidades científicas dos biografados como alguns traços do seu carácter e personalidade. Publicou também um trabalho no qual descreveu e discutiu com pormenor o sistema original de classificação das plantas de Brotero, que diferia do sistema lineano. Dedicou ainda um estudo ao Jardim Botânico de Lisboa, do qual foi diretor durante duas décadas, descrevendo a sua origem e progressão até à sua direção.

Tendo-lhe sido confiado por Francisco de Melo da Costa (1890—945), 3.º marquês de Ficalho, pouco antes de falecer, um conjunto de documentos epistolares em posse do seu avô–conde de Ficalho, publicou Palhinha estudos sobre alguns destes documentos, importantes para a compreensão da história da botânica em Portugal.

Em 1948 foram publicados três desses trabalhos. No estudo publicado no Anuário da Sociedade Broteriana, Palhinha transcreveu e analisou 27 cartas de Júlio A. Henriques (1838–1928) para o conde de Ficalho e uma dirigida a Daveau, às quais acrescentou duas cartas do conde de Ficalho para Henriques, existentes no arquivo do Instituto de Botânica de Coimbra. Esta análise revelou elementos sobre a personalidade de Henriques quanto aos seus objetivos em relação ao estudo da flora portuguesa e ao ensino da botânica e à promoção do Herbário da Universidade de Coimbra. Poder-se-á acrescentar que estas cartas revelam a grande colaboração que existia entre os botânicos da Escola Politécnica e da Universidade de Coimbra, membros de uma rede de académicos, da qual também fazia parte Gonçalo Sampaio da Academia Politécnica do Porto, que almejavam a renovação da botânica portuguesa, na prossecução da obra iniciada com Brotero. No trabalho publicado na revista Brotéria (série de Ciências Naturais) foram transcritas quatro cartas de Isaac Newton (1840–1906) para o conde de Ficalho, escritas entre 1881 e 1887, relacionadas com os líquenes das coleções africanas de Frederico Welwitsch (1806–1872). Neste mesmo volume da Brotéria (série de Ciências Naturais) R. T. Palhinha publicou ainda a transcrição e estudo de oito cartas e um postal de Alphonse de Candolle (1806–1893) ao conde de Ficalho (e ainda uma carta do botânico suíço dirigida possivelmente a Bernardino António Gomes). Da análise destes documentos epistolares, Palhinha concluiu sobre o elevado valor que o herbário organizado por Welwitsch tinha a nível internacional.

No ano seguinte, 1949, também na revista Brotéria (série de Ciências Naturais), Palhinha transcreveu e comentou seis cartas de August Schweinfurth (1836–1925) dirigidas ao conde de Ficalho, datadas entre 1881 e 1883. Nestas cartas, e à semelhança do que tinha feito Candolle, Schweinfurth reclamava uma parte do herbário de Welwitsch, que este teria consignado no seu testamento. Invocava o acordo que se tinha encontrado entre o governo português e o British Museum, que tinha aceitado os termos do testamento. Os espécimes do herbário de Welwitsch foram efetivamente enviados e Schweinfurth, em carta datada de 1883, agradecia o seu envio e prometia remeter para a Escola Politécnica um herbário de plantas do nordeste africano.

Na revista Brotéria de 1955 (série de Ciências Naturais) publicou treze cartas de Edmond Goeze (1838–1929) para o conde de Ficalho, escritas entre 1873 e 1880. No Anuário da Sociedade Broteriana desse ano, Palhinha transcreveu e reproduziu um documento escrito por Welwitsch, datado de 1852, dirigido ao lente de Botânica da Escola Politécnica. Este documento acompanhava alguns exemplares do género Umbilicus que Welwitsch pensava representarem talvez uma variedade nova sumariamente referida por Brotero na sua Flora. Welwitsch enviava também sementes do que poderiam ser espécies novas para a flora portuguesa. Numa abordagem metodológica exemplar, Palhinha analisou e discutiu pormenorizadamente os elementos taxonómicos fornecidos por Welwitsch, cotejando com bibliografia sobre a flora portuguesa, com exemplares do Herbário da Faculdade de Ciências recolhidos por Welwitsch e com anotações deste naturalista no seu exemplar da flora de Brotero, finalizando com a identificação das plantas mencionadas pelo naturalista austríaco que, afinal, não eram táxones novos pois os encontrara descritos na bibliografia.

Uma outra relevante actividade de Palhinha foi a direção da segunda edição da Flora de Portugal de António Xavier Pereira Coutinho, que saiu em 1939. O autor tinha o manuscrito pronto para ser publicado, mas sentindo que a tarefa já o ultrapassaria pediu a Palhinha para dirigir a edição, que aceitou. Os fundos foram obtidos do Instituto de Alta Cultura. Além da correção das provas, Palhinha fez ainda a atualização de várias denominações botânicas.

Neste âmbito, trabalhos importantes do conde de Ficalho sobre a história da botânica tiveram reedições prefaciadas por Palhinha, patrocinadas pela Agência Geral das Colónias—Memória sobre a malagueta e as Plantas úteis da África Portuguesa. No antelóquio à segunda edição das Plantas úteis, Palhinha traçava uma vida e obra do seu autor, destacando a sua personalidade. No que respeita à botânica, pôs em relevo a actividade do conde de Ficalho na promoção do Herbário da Escola Politécnica e do Jardim Botânico, no estabelecimento de relações científicas com outros estabelecimentos como o Jardim Botânico de Kew, a concretização da transferência dos herbários da Academia das Ciências para a Escola Politécnica e a organização do Museu Nacional, com as suas três secções de história natural. Relativamente ao papel do conde de Ficalho em relação ao espólio de Welwitsch, Palhinha considerava pessoalmente que os herbários organizados pelo botânico austríaco pertenciam ao Estado português, considerando incorreta a atitude de Welwitsch ao distribuir as suas coleções botânicas por diversas instituições e naturalistas de todo o mundo, num testamento redigido em 1872, poucos dias antes de falecer. A atitude controversa do naturalista austríaco gerou litígio em tribunal inglês, tendo o Estado português sido representado por Bernardino António Gomes filho (1806–1877). A Portugal foi reconhecido o direito às coleções que tinham sido feitas por Welwitsch na África ocidental, a expensas do governo português. As coleções de história natural, reenviadas de Inglaterra, incluindo os espécimes de herbário, deram entrada na Academia das Ciências tendo depois transitado para o Museu Nacional de Lisboa. Muitos dos espécimes de herbário que ficaram em Lisboa foram revistos pelo conde de Ficalho. O estudo deste material de herbário foi de grande importância para o conde de Ficalho redigir a obra cuja segunda edição Palhinha prefaciava.

Relativamente à flora de Portugal, Palhinha publicou em 1946 na revista Brotéria um estudo das plantas aromáticas e medicinais do país, ampliando um trabalho que tinha apresentado ao I Congresso Nacional de Ciências Agrárias. São enumeradas espécies tanto da flora portuguesa como exóticas cultivadas, organizadas por ordem taxonómica. Indicam-se os princípios ativos e formas de sua extração. O carácter utilitário e de aplicação prática deste trabalho é saliente, como o próprio autor reconheceu. A 20 de dezembro de 1940 proferiu a sua última lição que foi depois editada com o título de Distribuição dos endemismos portugueses. Neste texto salientou a dualidade da flora de Portugal continental, que apresenta tanto espécies norte-atlânticas como mediterrâneas, diminuindo as primeiras de norte para sul e o inverso ocorrendo com as segundas. Salientou depois que na flora portuguesa existe um número relativamente elevado de endemismos, sendo o isolamento o principal fator geral na origem destas espécies endémicas. Usando a informação contida na edição de 1937 da flora de Pereira Coutinho, Palhinha repartiu os táxones (espécies, subespécies e variedades) endémicos do continente pelas regiões biogeográficas de Bernardino Barros Gomes (representadas na sua Carta orographica e regional de Portugal, 1875), apresentando mapas elucidativos. As três regiões de maior número de endemismos eram a Estremadura (Centro Litoral), o Baixo Alentejo Litoral e o Algarve, em virtude de condições climáticas especiais e ainda pela presença das Berlengas e dos Cabos que, ao longo da costa, são pontos de interesse botânico. Para cada uma destas regiões enumerou as plantas endémicas. Em julho de 1948 realizou-se no Gerês a I Reunião de Botânica Peninsular. Os trabalhos apresentados ao simpósio foram publicados na revista Agronomia lusitana(1950) sob o patrocínio do Instituto de Alta Cultura. Palhinha prefaciou a obra que continha um trabalho seu sobre a flora geresiana. Neste trabalho, analisou e discutiu a distribuição em Portugal das plantas que ocorrem no Gerês, destacou dentro destas as plantas que no país só ocorrem no Gerês, e enumerou as plantas novas para Portugal que foram encontradas durante as excursões realizadas no Gerês durante o simpósio. Discutiu a distribuição geográfica das plantas da flora geresiana, destacando o facto de dos 597 táxones conhecidos, 109 serem plantas ibéricas.

A flora do arquipélago dos Açores era estudada por naturalistas estrangeiros desde finais do século XVIII. Um dos primeiros visitantes botânicos ao arquipélago foi Francis Masson (1741–1805) enviado pelo Jardim Botânico de Kew, tendo feito escala nos Açores em 1777. As espécies novas para a ciência recolhidas por Masson foram descritas por William Aiton (1731–1793), então diretor do estabelecimento, no Hortus Kewensis de 1789. As explorações da história natural do arquipélago intensificaram-se no século XIX. Em 1838, uma equipa da qual faziam parte Christian Ferdinand Friedrich Hochstetter (1787–1860) e seu filho Karl Christian Friedrich Hochstetter (1818–1880), estudaram a história natural de várias ilhas. Em 1844, Moritz August Seubert (1818–1878) publicou em Bona a Flora Azorica, com base no material recolhido e nas observações de Hochstetter pai e filho. Foram referenciadas um total de 400 espécies de vegetais, sendo várias novas para a ciência, tanto no grupo das algas como nas plantas vasculares. Das plantas inventariadas, 50 foram consideradas como endémicas. Constitui a primeira flora dos Açores, ainda hoje de consulta indispensável. A obra Natural History of the Azores or Western Islands de Frederick DuCane Godman (1834-1919) publicada em 1870 tinha capítulos dedicados à flora do arquipélago da autoria de Hewett Cottrel Watson (1804–1881) para as plantas vasculares, e de William Mitten (1819–1906) para os briófitos, que recorria às suas próprias observações e materiais, bem como ao herbário do cônsul britânico Thomas Carew Hunt (em funções no arquipélago entre 1844 e 1848) e ainda as herborizações feitas por Godman e plantas enviadas por António da Costa Paiva, 1.º barão de Castelo de Paiva (1806–1879) aos herbários de Kew. William Trelease (1857-–1945) tinha estado nos Açores em 1894 e 1895 recolhendo material que foi usado na sua obra Botanical Observations on the Azores, publicada em 1897. Na introdução a este trabalho, W. Trelease chamava a atenção para o elevado número de plantas exóticas cultivadas como ornamentais nos espaços exteriores das ilhas. Algumas destas tinham-se naturalizado e até ocupavam alguma proeminência na paisagem. Ao mesmo tempo a flora endémica tinha-se reduzido em parte pela utilização de toda a terra disponível para fins agrícolas. Em algumas ilhas as próprias pastagens de altitude estavam a ser substituídas por campos com plantas forrageiras levadas da Europa e da América. As terras de baixa altitude, nas quais não se deixava um palmo de terra livre, estavam repletas de plantas cosmopolitas de introdução recente.

É neste contexto que em 1934, 1937 e 1938 Palhinha acompanhado por Adriano Gonçalves da Cunha (1902–1986), investigador do Instituto Bento da Rocha Cabral, e Luís Gonçalves Sobrinho (1907–1969), naturalista e docente da Faculdade de Ciências de Lisboa, realizaram os seus primeiros trabalhos botânicos no arquipélago. Apesar da flora vascular ser razoavelmente bem conhecida pelos trabalhos já referidos de naturalistas estrangeiros, os herbários nacionais (continente) eram muito pobres em exemplares açóricos e as floras de Gonçalo Sampaio e de Pereira Coutinho restringiam-se praticamente ao continente. Destas expedições botânicas resultaram vários trabalhos que foram sendo publicados na revista Açoreana. Em 1943 publicou um primeiro catálogo dos fetos (pteridófitos) dos Açores, no qual discute a espontaneidade ou o carácter exótico das espécies que cresciam no arquipélago. Em 1950, também nesta revista, publicou uma primeira lista das plantas vasculares autóctones (naturais) do arquipélago. Apesar de no território cresceram cerca de 700 táxones de plantas vasculares, a grande maioria (3/4) é de plantas exóticas ou naturalizadas, restando apenas 167 táxones nativos (autóctones) do arquipélago, incluindo 53 endemismos açóricos. Todavia, nos fetos, a maioria é constituída por espécies autóctones. Das plantas nativas não-endémicas a grande maioria também ocorre na Europa e na América do Norte, sendo minoritária a influência mediterrânica. As plantas exóticas ou naturalizadas eram da mesma forma maioritariamente norte-americanas ou europeias. A importante (e difícil) questão da determinação do carácter autóctone ou exótico das várias plantas que crescem nos Açores foi precisamente o objetivo de um trabalho que publicou também na revista Açoreana. Neste trabalho, Palhinha apresenta uma primeira lista das plantas exóticas que cresciam nas ilhas do arquipélago, indicando, para cada táxon, a sua origem geográfica.

Em 1951, Palhinha publicou um trabalho sobre os nomes populares das plantas nos Açores. Salientou corretamente, logo no início da obra, o carácter subjetivo dos nomes populares de plantas, dado que a mesma espécie pode ter no mesmo país vários nomes vulgares e o mesmo nome comum pode ser aplicado a espécies distintas. Por esta razão tornava-se indispensável a participação dos botânicos na elaboração das listas dos nomes vulgares de plantas, dado que estes devem ser referenciados ao respetivo nome científico. Para cada nome vulgar são indicados o(s) nome(s) científico(s) da(s) planta(s) a que ele se refere.

Em 1957 revia, com a ajuda de António Rodrigo Pinto da Silva (1912–1992), o manuscrito do seu Catálogo das Plantas Vasculares dos Açores, quando morre num acidente de viação. O manuscrito seria publicado em 1966 depois de revisto e completado com adições substantivas (criação de uma subespécie nova, mudança de estatuto de duas variedades para subespécies e criação de uma nova combinação) por Pinto da Silva, que na introdução explica com pormenor em que consistiu a sua edição do manuscrito de Palhinha. Foram apresentados 699 táxones da flora vascular dos Açores. 

João Paulo Cabral
Professor universitário aposentado

Obras

Palhinha, Ruy Telles. Distribuição dos endemismos portugueses. Última lição proferida na Faculdade de Ciências de Lisboa quando da sua jubilação, mandada imprimir pelos seus assistentes, 12 páginas, 4 mapas, Lisboa, 1940.

Palhinha, Ruy Telles. “Pteridófitos do arquipélago dos Açores.” Açoreana 3 (1943): 87–117.

Palhinha, Ruy Telles. “Plantas aromáticas de Portugal.” Brotéria-Ciências Naturais 15–17 (1946–1948): 97–113.

Palhinha, Ruy Telles. Antelóquio a Plantas úteis da África Portuguesa, pelo Conde de Ficalho, vii-xvi. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1947.

Palhinha, Ruy Telles. “Subsídios para o conhecimento da Flora Açoriana.” Açoreana 4 (1949): 267–276.

Palhinha, Ruy Telles. “Alguns dados estatísticos acerca da flora geresiana.” Agronomia Lusitana 12 (1950): 493–498.

Palhinha, Ruy Telles. “Nomes populares de plantas nos Açores.” O Instituto 115 (1951): 74–101.

Palhinha, Ruy Telles. “Plantas exóticas existentes nos Açores.” Açoreana 5 (1953): 1–9.

Palhinha, Ruy Telles. “Uma carta de Welwitsch.” Anuário da Sociedade Broteriana 21 (1955): 5-12.

Palhinha, Ruy Telles. Catálogo das plantas vasculares dos Açores. Lisboa: Sociedade de Estudos Açorianos Afonso Chaves, 1966.

Bibliografia sobre o biografado

Cunha, A. Gonçalves da. “Prof. Doutor Ruy Telles Palhinha.” Boletim da Sociedade Broteriana 32 (1958): vii-xx.

Ferreira, Alexandre Rodrigues

Baía, 27 setembro 1756 – Lisboa, 23 abril 1815

Palavras-chave: Botânica, Jardim Botânico, Viagens Filosóficas, Brasil.

DOI: https://doi.org/10.58277/HENR6746

Nasceu na cidade da Baía de Todos os Santos a 27 de setembro de 1756, filho de Manuel Rodrigues Ferreira. Por vontade de seu pai, seguiu a vida religiosa e a 20 de setembro de 1768 recebeu as primeiras Ordens Clericais. Por ter revelado excecional aptidão para os estudos, seguiu para Portugal para frequentar a Universidade de Coimbra, porém chegou em plena Reforma Pombalina e depois da frequência de um ano em 1770, só pôde retomar os estudos a partir de finais de 1773. Aluno de Domenico Vandelli, foi nomeado demonstrador nas aulas de História Natural ainda em 1778. No mesmo ano, designado Naturalista do Real Gabinete de História Natural e Jardim Botânico da Ajuda, mudou-se para a Corte a 15 de Julho de 1778 e aguardou ordens relativas à viagem do Ministro de Estado Martinho de Melo e Castro, então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos para empreender uma viagem filosófica, entendida como essencial para se ter um maior conhecimento geográfico e científico da região, especialmente desde que os estudos de Guillaume Delisle demonstraram as falsificações na cartografia portuguesa, que colocavam o estuário do rio da Prata dentro do hemisfério luso definido pelo Tratado de Tordesilhas, com consequências na ocupação dos territórios de Mato-Grosso e da bacia Amazónica. [FMR1] Porém, sobretudo por motivos de guerra, a data da partida foi sendo adiada. Enquanto esperava pela partida, Ferreira voltou a Coimbra para obter o grau de Doutor em Filosofia Natural em 1779. Neste período, a pedido de Vandelli, explorou as Minas de Buarcos com João da Silva Feijó (1778); parte do Ribatejo, de novo com Feijó e Joaquim José da Silva (1781); e a região de Setúbal (1783), com Júlio Mattiazi e José Custódio da Silva. Em 22 de maio de 1780, o duque de Lafões nomeou-o Correspondente da Academia das Ciências de Lisboa.

Finalmente, em 14 de julho 1783, partiu de Lisboa, para empreender uma viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá com o objetivo de recolher materiais dos três reinos da natureza—animal, vegetal e mineral—, acompanhado do jardineiro naturalista Agostinho Joaquim do Cabo e dos riscadores, José Joaquim Freire e Joaquim José Codina, que iria durar durante mais de nove anos. Chegados em setembro desse ano, iniciam um périplo de vários anos pelo Pará, seguindo para a capitania de São José do Rio Negro, deslocando-se seguindo o curso dos rios. A partir de 1787, percorreram de forma intensa a região amazónica e o Mato Grosso, recolhendo, acondicionando e remetendo para o Real Museu da Ajuda, em Lisboa, milhares de exemplares vegetais, animais, minerais e etnográficos, acompanhados de centenas de memórias manuscritas e desenhos. No final da viagem, fica nove meses na cidade do Pará à espera de partir para Lisboa, tempo durante o qual o Governador e Capitão General do Pará o nomeia para Vogal com a função de assistir às Juntas de Justiça e Fazenda. Durante esse período acaba por se casar com D. Germana Pereira de Queiroz Ferreira em 16 de setembro de 1792, filha do Capitão Luiz Pereira da Cunha, responsável pelo transporte das coleções de Alexandre Rodrigues Ferreira para a Corte e que nada recebeu pelo seu trabalho e despesa.

Volvida quase uma década, Rodrigues Ferreira e José Joaquim Freire regressaram para Lisboa em setembro de 1792. Os resultados da expedição foram 230 manuscritos, 8 cartas geográficas, 26 estampas e desenhos, 12 chapas de cobre gravadas, 2 volumes de aguarelas, armas e objetos indígenas e tudo aquilo que conseguiu ser coletado e transportado por vias fluviais e terrestres até Belém de depois atravessar o Atlântico até aos seus destinos: Real Jardim Botânico da Ajuda e o Real Gabinete de História Natural. Somam-se a este espólio inventariado pelo cientista Carlos França, outros recentemente descobertos: a coleção de estampas do Conselho Federal de Cultura (Museu Nacional do Rio de Janeiro) e a coleção de estampas Brummer. As estampas revelam dados da geografia natural e geografia humana, de várias embarcações civis e militares, de técnicas agrícolas tradicionais do período pré-industrial, de antropologia—raças e etnias—e de técnicas de construção e técnicas alimentares, e zoologia (aves e mamíferos) e botânica. A riqueza dos minerais e da flora estimularam o seu intelectual, mas não é menos significativo o legado que nos deixou sobre as doenças que padeciam os indígenas e os visitantes que respiravam o “ar doentio” das terras encharcadas em água, como por exemplo em Mato Grosso. A sua preparação em ciências médicas para aliviar os males da tripulação, permitiram-lhe fazer esta investigação, que se revelou preciosa para a História da Medicina. Neste âmbito, importa mencionar o legado que nos chegou das boticas de Alexandre Rodrigues Ferreira—duas listas com todos os compostos que este requisitou em Barcelos em 5 de fevereiro de 1788 para a sua expedição ao Rio da Madeira e a segunda data de 21 de Maio de 1790—“Relação de tudo quanto se faz preciso apromptar para a Expedição Philozofica de Villa Bella para Cuyabá”.

Em 1793, instalado em Lisboa, em mercê dos serviços prestados, foi nomeado Oficial da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, dedicando-se, durante um curto período de tempo, à administração metropolitana. A 25 de julho de 1794 foi condecorado com a Ordem de Cristo. A 7 de setembro de 1794, na sequência do falecimento de Júlio Matiazzi, foi nomeado Vice-Diretor do Real Gabinete de História Natural e do Real Jardim Botânico da Ajuda, com tutela ainda da tesouraria do complexo e seus estabelecimentos—gabinete da biblioteca, também conhecido como do Desenho, casa do laboratório, dita das preparações, armazéns, etc., sendo sucessivamente reconduzido nestas funções até 1811. A partir de 1794, dedicou-se à seleção e organização das coleções da Ajuda, em particular do material produzido e recolhido durante a viagem ao Brasil, com o objetivo de compor uma História Natural do Pará, em vários volumes, que deixaria inacabada. Foi ainda nomeado administrador das Reais Quintas de Queluz, Caxias, e Bemposta por decreto de 25 de julho de 1794, tendo desempenhado um papel fundamental na conclusão da cascata com esculturas de Joaquim Machado de Castro. Nesse ano foi também nomeado Deputado da Real Junta do Comércio por decreto de 23 de dezembro de 1795. 

Alexandre Rodrigues Ferreira revelou um verdadeiro espírito científico nas observações feitas ao natural que recolheu no Brasil, assim como na preocupação epistemológica de distinguir o conhecimento científico do conhecimento em geral, nunca deixando de privilegiar o conhecimento que engrandecia o reino. 

Estando doente desde cerca de 1807, faleceu em Lisboa, em 23 de abril de 1815.

Ana Duarte Rodrigues e David Felismino,
NOVA FCSH

Arquivos

Academia das Ciências de Lisboa, Portugal

Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa, Portugal

Biblioteca Nacional–Divisão de Obras Raras e Publicações, Rio de Janeiro, Brasil

Museu Nacional de História Natural, Lisboa, Portugal

Museu Antropológico da Universidade de Coimbra

Obras

Abuso da Conchyologia em Lisboa, para servir de introdução à sua Theologia dos Vermes

Exame da Planta Medicinal, que como nova aplica, e vende o Licenciado Antonio Francisco da Costa, cirurgião Mór do Regimento de Cavalaria de Alcantara.

Alexandre Rodrigues Ferreira. Catálogo de Manuscritos e Bibliografia, Biblioteca Nacional. Divisão de obras raras e publicações, 1952.

Bibliografia sobre o biografado

Sá, Manuel José Maria da Costa e. Elogio do Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1818.

Lima, Américo Pires de. O Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira. Documentos Coligidos e Prefaciados. Agência Geral do Ultramar. Divisão de Publicações e Biblioteca, 1953.

França, Carlos. Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira (1756–1815): História de uma missão scientífica ao Brasil no século XVIII. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922.

Soares, José Paulo Monteiro e Cristina Ferrão, eds. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira: Colecção Etnográfica. Rio de Janeiro: Kapa, 2005

Matos, Manuel Cadafaz de. No segundo centenário da viagem filosófica, de Alexandre Rodrigues Ferreira, por terras do Brasil. Lisboa: Távola Redonda, 1993.

Cunha, Osvaldo Rodrigues da. O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira: Uma análise comparativa de sua viagem filosófica (1783-1793) pela Amazônia e Mato Grosso com a de outros naturalistas posteriores. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1991.

Memória da Amazónia: Alexandre Rodrigues Ferreira e a viagem philosophica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá: 1783-1792. Coimbra: M.L.A. da Univ., 1991.

Orta, Garcia de

Castelo de Vide, c. 1500 — Goa, 1568

Palavras-chave: matéria médica, botânica, Império Português no século XVI, Inquisição.

Garcia de Orta (de Orta, da Orta, d’Orta) (Castelo de Vide, c. 1500 — Goa, 1568foi um médico e naturalista do período renascentista. Os seus pais, Fernando de Orta e Leonor Gomes, originários respectivamente de Valência de Alcântara e de Albuquerque, em Espanha, deslocaram-se para Portugal na sequência da promulgação do édito de expulsão dos judeus de Espanha, em 1492. Fixaram residência na povoação fronteiriça de Castelo de Vide na qual  tiveram quatro filhos, Garcia de Orta e as suas irmãs  Violante, Isabel e Catarina. Orta teve também um meio-irmão, Jorge de Orta, fruto de uma ligação anterior mantida entre o pai e uma mulher castelhana de nome Brites Nunes. Este seu familiar estabeleceu-se em Elvas pouco tempo antes de 1504. A ascendência judaica de Garcia de Orta e, nomeadamente, a sua condição de cristão-novo teve uma influência marcante no seu percurso pessoal e profissional.

Entre c. 1515 e 1523, Orta estudou medicina nas universidades de Salamanca e de Alcalá onde obteve o seu título de licenciado. Dedicou-se à prática médica, primeiro em Castelo de Vide e, volvidos três anos, em Lisboa. Depois de três tentativas frustradas para conseguir um lugar na Faculdade de Artes da Universidade de Lisboa, obteve  em 1530 a posição de  leitor de Filosofia Natural nesta instituição. Em 1533, foi eleito representante do Conselho da Universidade, cargo que ocupou até à partir para a Índia, a 12 de Março de 1534. Embarcou na qualidade de médico pessoal do amigo e patrono Martim Afonso de Sousa, Capitão-Mor da Armada. A Inquisição  foi estabelecida em Portugal, poucos anos antes, em 1531, e o receio do médico português de vir a ser perseguido devido às suas origens judaicas, terá sido um dos principais motivos desta mudança radical na sua vida. Jamais regressaria ao reino. 

A frota ancorou em Goa, no mês Setembro de 1534. Em breve, Orta passou a acompanhar Martin Afonso de Sousa em campanhas militares na costa ocidental da Índia, desde Gujarate a Ceilão, cruzando, entre outras,  as cidades de Diu, Chaul, Baçaim e Cochin. Em 1538, Sousa regressou a Lisboa mas Orta decidiu não o acompanhar e instalar-se em Goa. Em breve, adquiriu grande prestígio profissional e social, tendo sido médico de vários vice-reis e governadores da cidade e do sultão de Ahmadnagar. Exerceu também medicina no Real Hospital Militar de Goa e granjeou o título de Físico-mor aquando do regresso de Martim Afonso de Sousa a Goa, em 1541, na qualidade de Vice-Rei, cargo que ocupou até 1546. Para a fortuna pessoal do médico português, contribuiu também a sua actividade comercial em matéria médica e pedras preciosas.  Além da sua abastada casa em Goa, Orta passou igualmente a dispor da Ilha de Bombaim que adquiriu por aforamento, em 1548.

Em finais de 1541, chegou a Goa a família do mercador e cristão novo Henrique de Solis, originária de Alter do Chão. Pouco tempo depois, a filha, Brianda de Solis, contraiu matrimónio com Garcia de Orta com quem teve duas filhas. Em 1548, chegou também a esta cidade a mãe e as irmãs de Orta, Catarina e Isabel, fugindo à perseguição movida pelo Tribunal da Santa Inquisição de Lisboa. Este tribunal religioso foi estabelecido em Goa, em 1560, mas durante a sua vida Orta conseguiu escapar à acusação do Santo Ofício e proteger dele a sua família, provavelmente devido ao seu prestígio e ao seu círculo de contactos e amigos influentes. Após a morte do médico português em Goa, em 1568, alguns dos seus familiares mais próximos foram perseguidos severamente pela Inquisição, tanto em Goa, como em Portugal. A  irmã Catarina foi presa e condenada à fogueira, em 1569, e o ano de interrogações e tortura a que tinha sido sujeita conduziu a que denunciasse vários dos seus familiares pela prática de judaísmo, incluindo o seu já falecido irmão. O Santo Ofício ordenou que fossem exumadas as ossadas de Orta e que as mesmas fossem queimadas em auto-da-fé,  ocorrido a 4 de Dezembro de 1580. As cinzas foram depois lançadas no rio Mandovi.

Os Colóquios dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia, a única obra de Garcia de Orta e a primeira de um autor europeu sobre as matérias nela versadas, foram publicados em Goa por Joannes de Enden, em 1563. A prensa móvel foi introduzida nesta cidade em 1557, sendo os Colóquios apenas a terceira obra publicada no território e a única que, até então, não se debruçava sobre temas religiosos. Vigorando já o Tribunal do Santo Ofício na cidade, a folha de rosto do livro patenteia a necessária autorização à sua impressão por parte do inquisidor Aleixo Dias Falcão. Não é totalmente conhecido o modo como a mesma foi obtida, nem tão pouco o grau de escrutínio utilizado pelo censor. Em todo o caso, o prestígio social e económico de Orta e, em particular, o seu círculo de protetores e de amigos  influentes no reino e em Goa, terão contribuído decisivamente para que a obra pudesse ter sido publicada. São aliás dois dos humanistas seus companheiros nesta cidade, o licenciado Dimas Bosque e o latinista Tomé Dias Caiado quem, a par de Luís de Camões que então publica o seu primeiro poema, dão autoria aos principais  paratextos laudatórios da obra. O frontispício dos Colóquios contribui também como dispositivo legitimador ao referenciar o suposto título de Garcia de Orta como Físico d’ El Rey nosso Senhor e o privilégio do 3º Conde do Redondo, Vice-Rei da Índia, sendo ainda de assinalar a dedicatória da obra ao ilustre e seu sempre estimado Martim Afonso de Sousa.

Tal como o título indica, a obra de Garcia de Orta é apresentada no formato dialógico, sendo constituída por uma série de conversas, 59 no total, entre o próprio Orta e o seu principal interlocutor, Ruano, um jovem médico também ele formado nas Universidades de Salamanca e Alcalá e acabado de chegar a Goa, em busca de novos conhecimentos. A mesma dá ainda voz a outras figuras da sociedade goesa e aos próprios serviçais do médico português. A forma coloquial escolhida serve múltiplos propósitos incluindo uma melhor efectivação dos processos de comunicação, legitimação e persuasão subjacentes  à obra.

Os Colóquios baseiam-se na compilação de observações e de informações recolhidas pelo autor ao longo dos quase trinta anos, até então tinha vividos em Goa e noutros lugares do Oriente, abrangendo as virtudes médicas de vários produtos de origem vegetal, alguns de origem animal e ainda de algumas pedras preciosas. Os diversos produtos considerados estão organizados alfabeticamente em capítulos distintos não sendo, todavia, esta ordem sempre obedecida. Para cada um deles, Orta apresenta não só os seus usos médicos  e atributos morfológicos e sensoriais, mas também os seus nomes em diferentes línguas, os seus locais de origem e os seus preços em várias terras e mercados. Um dos propósitos do autor é, assim, o de proporcionar um sistema de ordenação da grande variabilidade dos atributos dos produtos naturais do oriente utilizados na prática médica. Outro dos seus objetivos é a consideração de métodos de tratamento utilizados por físicos indígenas, nomeadamente os  “hakins” (muçulmanos) e os “vaydas” (hindus).

Nem todos os produtos abordados nos Colóquios eram então totalmente desconhecidos no Ocidente, mas Orta tem também o propósito de avaliar e clarificar considerações sobre matéria médica de autores antigos e modernos. Nesta época, A Matéria Médica  do médico e botânico Dioscorides continuava a ser a principal obra de referência  nesta área do saber. Com a invenção da imprensa, em 1455, e  a influência do humanismo renascentista, a mesma passou a ser objecto de um renovado interesse, de traduções e de estudos por vários autores incluindo Jean de RuellePier Andrea MattioliAndrés Laguna  e o português Amato Lusitano. Contudo, os comentários de Orta não se restringem a estes autores e incluem, entre outros, referências a Teofrasto, Galeno e Plíneo, o Velho da antiguidade clássica, aos árabes Rasis, Avicena e Averróis, do período medieval, e aos europeus António Musa, Niccolò Leoniceno, Matheolo Senense e Nicolás Monardes, seus contemporâneos. Nas suas observações-  critica, sobretudo, alguns dos autores coevos pelo facto de não procurarem actualizar os seus conhecimentos face à reconfiguração do saber proporcionada pela expansão geográfica, descrevendo mesmo alguns dos autores da sua época como meros imitadores dos gregos. Orta é também crítico de algumas passagens de autores árabes, mas a sua apreciação sobre os mesmos é fundamentalmente positiva. É de realçar a enfâse  dada pelo autor à natureza aberta e dinâmica da construção do conhecimento médico e botânico.

Os Colóquios são uma obra abrangente, apresentando numerosas informações sobre as propriedades médicas do mundo natural asiático. Muito do conhecimento neles patenteado resultou da experiência pessoal do seu autor ao longo da sua vivência na Índia e, em particular, em Goa.  A partir de 1510,  esta cidade passou a ser a  capital do Império Português no Oriente e um  importante centro de intercâmbio comercial e cultural favorável à  aquisição de produtos e saberes com relevância para a prática médica. No entanto, a grande amplitude da origem dos produtos mencionados por Orta, não permitia que as observações directas do autor fossem por si só suficientes na elaboração da obra. A mesma indica que a sua rede de informadores  foi vasta e ecléctica, tendo incluindo 

não somente médicos e boticários, mas também comerciantes, soldados, missionários, viajantes e tradutores oriundos de vários lugares. O médico português remunerou também alguns agentes em tarefas de recolha de plantas e sementes de lugares específicos da Índia. Beneficiou, ainda, de relações de colaboração e amizade que estabeleceu com médicos e eruditos árabes, persas e hindus. Terá igualmente sido favorecido pelo acesso a compilações confidenciais sobre plantas e drogas medicinais da Índia encomendadas por reis e altos  dignitários da coroa portuguesa.

As várias fontes e agentes de informação subjacentes aos Colóquios  contribuem para que, pelo menos em parte, possamos considerar a obra como uma espécie de  “centro de acumulação” de saberes sobre a matéria médica da Índia e territórios adjacentes. Todavia, este é apenas um dos seus atributos uma vez que a obra tem uma natureza multifacetada. 

Uma das características distintivas e, ao mesmo tempo, mais apelativas dos Colóquios são as menções culturais apresentadas nos mesmos e para as quais o formato dialógico eleito pelo autor muito  contribui. Entre outras, a obra alude a costumes locais de Goa, a notícias da China, à situação geográfica da Babilónia e ao jogo de xadrez. Incluem ainda histórias e até fábulas. É ainda significativo que a maioria dos diálogos apresentados na obra decorra na casa de Orta e,  especialmente, à sua mesa. Deste modo, a transmissão a Ruano de conhecimentos sobre as virtudes médicas de plantas, frutas  e especiarias tais como a manga — um dos ingredientes mais frequentes da cozinha Goesa — o coco, o cravo ou o gengibre, é acompanhada da sua percepção directa através dos sentidos (visão, olfacto, paladar e tacto). A alimentação simultânea do corpo e da mente surge, assim, nos Colóquios como um dos métodos didácticos mais eficazes. É ainda na visita a dois dos seus pacientes que, a par de um bom mestre, Orta exibe as suas qualidades no exercício da medicina. Desde logo, é destacada a prontidão com que atende os doentes  quando é chamado e seguidamente o cuidado com que avalia os seus sintomas e dita o tratamento mais apropriado.

A multifuncionalidade dos Colóquios faz crer que a audiência que o autor pretendia atingir fosse também ela diversa. Na dedicatória, Orta indica que o seu trabalho foi sobretudo escrito para a comunidade local de Goa e regiões adjacentes e, em particular, os seus colegas e amigos médicos e boticários, nos quais certamente se incluiria o licenciado Dimas Bosque. Contudo, o número significativo de referências a autores antigos e modernos nela incluído indica que os humanistas europeus seus contemporâneos também fariam parte do público almejado, especialmente os seus colegas portugueses, espanhóis e italianos tais como Amato Lusitano, Andrés Laguna, Nicolás Monardes e Pier Andrea Mattiolipara quem a língua portuguesa não constituiria um obstáculo. Os Colóquios poderiam ainda ser úteis em instituições médicas de Goa como o Real Hospital Militar de Goa e a Santa Casa da Misericórdia desta cidade.  É ainda muito provável que atraíssem uma audiência mais vasta incluindo mercadores e oficiais já que a obra proporciona informações variadas sobre a localização, o preço e as rotas de comércio de muitos dos simples e drogas da Índia. Provavelmente menos significativo, mas nem por isso menos assinalável, é a leitura lúdica e perspicaz que os Colóquios também podiam proporcionar. Seria difícil conciliar todas estas potencialidade da obra se a mesma tivesse sido escrita em latim e não em português. Igualmente de assinalar é o facto de a língua portuguesa estar muito próxima de ser a língua franca da época para os leitores de todas as cidades portuárias em redor do Oceano Índico..

Alguns exemplares dos Colóquios alcançaram, sem demora, a capital do império. Testemunha-o  um dos leitores mais atentos e diligentes da obra de Orta,  Carolus Clusius, que datou de 6 de Janeiro de 1564 o exemplar adquirido em Lisboa. A importância da obra do médico português foi imediatamente reconhecida por Clusius, que reconheceu não só a relevância dos novos conhecimentos médicos e botânicos nela apresentados, mas também admirou a crítica destemida e acérrima de Orta a afirmações de autores antigos e modernos sobre  matéria médica.

A adaptação dos Colóquios por Clusius, com o título Aromatum et simplicium aliquot medicamentorum apud Indos nascentium história , a cargo do famoso impressor Christopher Plantin, foi publicada logo em 1567. O naturalista flamengo reduz a epítome

as conversas da obra de Orta e  omite  as informações que não considera directamente relevantes para o conhecimento médico e botânico. Ordena e clarifica, ainda, partes da obra original e complementa o processo editorial com anotações de sua autoria e algumas ilustrações. A obra de Orta é assim recriada numa nova língua, o latim, num formato mais sóbrio  que prima pela sistematização do conhecimento médico e botânico nela apresentado. O conteúdo informativo é mais alargado e algumas representações visuais são originais. Os dotes editoriais de Clusius, as suas capacidades linguísticas e a sua preocupação constante em avaliar e adicionar novas observações às suas obras tornaram o epítome dos Colóquiosnum dos maiores sucessos da história do livro do século XVI. As suas sucessivas tiragens, todas elas de algum modo reformuladas e melhoradas, apresentando também alterações em algumas das ilustrações nelas patenteadas, vieram a lume em 1574, 1579, 1593 e 1605. A quarta edição de 1593 apresentou, pela primeira vez, não só o epítome dos Colóquios mas também as obras de Cristovão da Costa, Nicolás Monardes e Pierre Belon du Mans. Já a última e quinta edição foi integrada na publicação das obras completas de Clusius, Exoticorum libri decem, quibus animalium, plantarum, aromatum, aliorumque peregrinorum fructuum historiae describuntur.

O epítome dos Colóquios de Clusius passou a ser na Europa a obra de referência do saber médico e botânico inicialmente veiculado por Garcia de Orta e foi com base na mesma que foram obtidas as múltiplas traduções em italiano (Veneza: 1578, 1582, 1582, 1589, 1597, 1605, 1616)  e em francês (Lyon: 1601, 1619), versando a temática dos simples e das drogas da Índia. 

Ao longo dos séculos XVI e XVII, os Colóquios continuaram a ter uma influência

determinante nas obras de outros autores, de entre as quais se destacam o Tratado

delas drogas y medicinas de las Indias Orientales, con sus plantas debuxadas

al bivo de Cristovão da Costa publicado em Burgos, em 1578, e De medicina Indorum libri iv de Jacobus Bontius  publicado em Leiden, em1642. No entanto, em Portugal, durante um  longo período, os Colóquios foram votados a um esquecimento presumivelmente forçado.

Até meados do século XIX, a atenção dedicada a Garcia de Orta no nosso país foi praticamente inexistente. Os primeiros esforços conducentes à reedição da obra estiveram intimamente associados a questões nacionalistas, em particular, ao propósito de legitimar e reforçar os interesses políticos e científicos do império português. Num processo que foi longe de ser linear, os Colóquios acabariam por ser reeditados por Francisco Adolfo de Vernhagen, em 1872. No entanto, o empreendimento não foi considerado satisfatório por vários membros das comunidades científicas e literárias portuguesas. Apenas em 1886, foi publicado o primeiro estudo sobre Orta da autoria do Conde de Ficalho com o título Garcia de Orta e o seu tempo. Foi também da sua responsabilidade a edição comentada dos Colóquios em dois volumes (1891, 1895)que ainda hoje é utilizada como referência. Ficalho desconhecia a ascendência judaica do autor apenas revelada por Augusto da Silva Carvalho, em 1934.

Ao longo do século XX, a nova dimensão de Orta como autor e o seu novo estatuto de herói fundador da medicina portuguesa teve correspondência no significativo número de publicações dedicadas à sua obra. Indubitavelmente, a componente médica e científica dos Colóquios foi a que despertou maior interesse. A formação da grande maioria dos estudiosos era precisamente nestas áreas. Neste período, a historiografia sobre Orta e a sua obra assumiu, em larga medida, um carácter laudatório e foi quase sempre ancorada numa análise literal dos Colóquios. Não deve, no entanto, ser esquecido o valor destas primeiras análises e o contributo de alguns do estudiosos na inventariação de novas fontes históricas relevantes para a história da expansão portuguesa e para o lugar que a inventariação e a

descrição do mundo natural ocupou nestas investigações. Foi essencialmente no século XXI que um conjunto de estudos imbuídos de recentes e mais sofisticadas abordagens historiográficas permitiu atribuir um significado mais complexo e global aos Colóquios e à vida do seu autor.

Garcia de Orta é o médico que, até à data, foi motivo de mais homenagens públicas, que incluem o mural “Garcia de Orta e os médicos portugueses” (1906) de Veloso Salgado, patente na Escola Médica de Lisboa (actual Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa), a estátua de Martins Correia (1953), no Instituto de Higiene e Medicina Tropical, e a estátua de Irene Vilar, no largo Tomé Pires, no Porto. A imagem de Orta teve também  uma larga circulação em selos, notas de vinte escudos  e  moedas. Motivou ainda a designação de jardins, ruas e um hospital em 1991. Os vários tributos contrastam radicalmente com o longo esquecimento a que autor e a sua obra foram votados, tendo contribuído para que a figura de Garcia de Orta  adquirisse um estatuto emblemático como herói da comunidade médica e científica, bem como da própria nação portuguesa.

Palmira Fontes da Costa

Luisier, Afonso (Alphonse Luisier)

Fregnoley, Valais, Suíça, 6 fevereiro 1872 — Caldas da Saúde, Santo Tirso, 4 novembro 1957

Palavras-chave: Brotéria, Botânica, Briologia, Companhia de Jesus.

DOI: https://doi.org/10.58277/ZPTI3206

Nascido na Suíça, a 6 de fevereiro de 1872, Afonso Luisier, S.J. ingressou na Companhia de Jesus no Noviciado do Barro, em Torres Vedras, a 2 de outubro de 1891. A decisão de fazer o noviciado em Portugal prendia-se com o seu desejo de vir a ser missionário na Zambésia, missão que estava sob a alçada dos jesuítas portugueses. Depois de ter completado o noviciado e de ter estudado um ano de retórica, foi professor em Lons-le-Saunier (França) e em Guimarães entre 1894 e 1897. Estudou filosofia e ciências naturais em Lyon (1898), no Noviciado do Barro (1899), no Colégio de São Francisco, em Setúbal (1900), e na Escola Apostólica de Guimarães (1901), e cursou teologia em Innsbruck, Áustria, entre 1902 e 1906, onde foi ordenado sacerdote a 26 de julho de 1906. De regresso à Província Portuguesa da Companhia de Jesus, a que pertencia oficialmente desde o seu ingresso no noviciado, foi destacado para o Colégio de Campolide, em Lisboa, onde foi professor de química, física e história natural até 1910. 

Entre 1902 e 1932, Luisier foi um dos mais profícuos autores da Brotéria, a revista de ciências naturais dedicada à identificação e descrição de novas espécies de animais e plantas, fundada pelos jesuítas portugueses no Colégio de São Fiel, em Louriçal do Campo, Castelo Branco, em 1902. A maioria dos seus trabalhos versava sobre a identificação e descrição de novas espécies de briófitas na Península Ibérica, nas ilhas da Madeira e Açores e no Brasil. Dedicou grande parte da sua carreira a estudar a flora briológica da Madeira, tendo começado por publicar, entre 1917 e 1922, uma série de artigos na Brotéria-Botânica intitulada Les Mousses de Madère. Depois de ter estado doze vezes na Madeira, iniciou uma nova série de artigos intitulada Les Mousses de l’Archipel de Madère et en général des Îles Atlantiques, publicada entre 1927 e 1945. Ao longo da sua carreira, descobriu e descreveu dezoito novas espécies e treze novas variedades de musgos, tendo constituído uma importante colecção de briófitas que, actualmente, se encontra no Instituto Nun’Alvres em Santo Tirso. De acordo com a origem geográfica dos espécimes, esta colecção de musgos divide-se em três secções distintas: Bryotheca Europaea, Bryotheca Atlantica e Bryotheca Exótica. Apesar de ter publicado a maioria dos seus trabalhos na Brotéria, Luisier publicou também alguns artigos no Boletim da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, nos Anais Científicos da Academia Politécnica do Porto, no Boletim da Sociedade Broteriana, na Revista Agronómica e em actas de congressos organizados pela Asociación Española para el Progreso de las Ciencias ou pela sua congénere portuguesa.

No início da sua carreira científica, Luisier correspondeu-se com alguns dos mais conceituados botânicos portugueses da sua geração, como Gonçalo Sampaio (1865–1937), Júlio Henriques (1838–1928) e Joaquim de Mariz (1847–1916). A colaboração com estes botânicos terá começado, pelo menos, em 1902, ano de fundação da Brotéria. Nesse ano, publicou no Boletim da Sociedade Broteriana um catálogo da flora de Setúbal e da Serra da Arrábida, no qual constavam cerca de mil espécies diferentes e para o qual contara com a colaboração destes três botânicos. Tal como no século XIX, o estabelecimento destas redes de correspondência revelou-se fundamental para a circulação de espécimes, herbários, livros e instrumentos e, sobretudo, para a identificação e descrição de novas espécies de animais e plantas. Um exemplo que ilustra bem a importância das redes de correspondência onde se inseria Luisier, para a classificação de novas espécies de plantas, é o da descoberta e descrição do cardo Centaurea luisieri. Colhida por Luisier em 1915, perto de Salamanca, a hipotética nova espécie de cardo viajou de Salamanca para o Porto, onde foi estudada por Gonçalo Sampaio, e daí para Coimbra, para ser analisada por Júlio Henriques, que confirmou a descoberta, após comparação com as suas congéneres presentes nos herbários da Universidade de Coimbra. De regresso ao Porto, o novo cardo foi então descrito nas páginas da Brotéria por Gonçalo Sampaio que o baptizou de Centaurea luisieri, em homenagem ao seu descobridor. 

Com a implantação da República, em 1910, os jesuítas foram expulsos de Portugal, os seus colégios foram encerrados e os seus livros, colecções e instrumentos científicos foram, na sua grande maioria, inutilizados ou expropriados pelo Governo Provisório. Luisier foi um dos três jesuítas estrangeiros que conseguiu reaver parte das suas colecções no exílio. Por intervenção directa do cônsul suíço, recuperou parte das suas colecções de briófitas em abril de 1913. Passou os dois primeiros anos de exílio em Gemeert (Holanda) e Alsemberg (Bélgica), onde continuou os seus estudos de identificação, classificação e descrição de novas espécies de briófitas. Entre 1912 e 1932 esteve exilado em Espanha, primeiro em Salamanca (1912–1915), onde foi superior da escola apostólica, depois em Pontevedra (1916–1918), onde estava instalada a casa de escritores dos jesuítas portugueses e, finalmente, no Colégio de La Guardia (1918–1932), na província de Pontevedra, onde permaneceu até à dissolução da Companhia de Jesus em Espanha. Ao longo do seu exílio em Espanha estudou a flora briológica de Salamanca, tendo publicado em 1924 a obra Musci Salmanticenses, que viria a ser premiada pela Real Academia de Ciencias Exactas, Físicas y Naturales de Madrid. No Instituto Nun’Alvres, onde se instalou entre 1932 e 1957, desenvolveu uma importante actividade pedagógica, sobretudo no ensino das ciências naturais. No ano de fundação deste colégio dos jesuítas em Portugal estabeleceu uma estação meteorológica que, à semelhança do observatório que os jesuítas tinham fundado no Colégio de São Fiel em 1902, pertencia também à rede nacional de postos meteorológicos.

Após a morte de Joaquim da Silva Tavares, S.J. (1866–1931), em setembro de 1931, Luisier assumiu a direção da revista Brotéria. Dadas as dificuldades financeiras em editar uma revista inteiramente dedicada à investigação científica, decidiu então restruturar a revista e unificar as séries científicas Botânica e Zoologia, que então se publicavam alternadamente, numa única série intitulada Ciências Naturais. Entre 1932 e 1957, Luisier continuou a publicar os resultados dos seus trabalhos de classificação sistemática sobre os musgos da Madeira, Açores, Portugal Continental e Brasil. Neste período, publicou ainda alguns trabalhos sobre os artrópodes da Madeira e de Portugal. No caso dos artrópodes da Madeira, o seu trabalho era uma resenha das espécies publicadas por Olav Lundblad, professor na Universidade de Estocolmo que tinha estudado a fauna entomológica da ilha portuguesa. Ao publicar esta resenha, Luisier pretendia suprimir a dificuldade que os botânicos portugueses tinham no acesso à revista Arkiv für Zoologie, da Academia das Ciências da Suécia, onde Lundblad tinha publicado o seu trabalho. Tal como Silva Tavares, Luisier acabaria por publicar na Brotéria, uma biografia de Félix de Avelar Brotero (1744–1828), a quem a revista era dedicada. Esta biografia, mais actualizada e extensa do que as que tinham sido publicadas anteriormente na revista dos jesuítas portugueses, continha também uma lista das principais obras do naturalista, onde se destacavam seis trabalhos inéditos.

Enquanto diretor da Brotéria, Luisier continuou a promover a publicação de trabalhos de autores que já colaboravam com a revista desde os anos anteriores, como os jesuítas Cândido Azevedo Mendes (1874–1943), Camilo Torrend (1875–1961), Longino Navás (1858–1938), Jaime Pujiula (1869–1958) e Johann Rick (1869–1946), pioneiro dos estudos micológicos no Brasil. Neste período estabeleceu ainda novas colaborações com reputados botânicos portugueses como Ruy Telles Palhinha (1871–1957), Carlos das Neves Tavares (1914–1972), António Rodrigo Pinto da Silva (1912–1992), Flávio Resende (1907–1967), Arnaldo Rozeira (1912–1984), Manuel Cabral Resende Pinto (1911–1990) e ainda o geólogo Carlos Teixeira (1910–1982). À semelhança do seu antecessor, Luisier estava particularmente interessado em estabelecer colaborações científicas que continuassem a prestigiar a Brotéria: Ciências Naturais, no contexto dos periódicos científicos portugueses e estrangeiros. Durante o período em que foi dirigida por Luisier, a Brotéria: Ciências Naturais esteve particularmente associada a três organismos públicos: o Instituto Botânico de Lisboa, a Estação Agronómica Nacional e o Instituto Botânico Dr. Gonçalo Sampaio. De entre estas novas colaborações institucionais, a mais relevante, pelo menos do ponto de vista da afirmação e consolidação disciplinar, terá sido a que foi estabelecida com a Estação Agronómica Nacional. Ao publicar alguns dos primeiros artigos de citogenética e de genética de melhoramento de plantas do grupo dirigido por António Sousa da Câmara (1901–1971), Luisier colocava a Brotéria na vanguarda dos periódicos científicos portugueses, e associava a revista a uma das principais linhas de investigação em botânica durante o Estado Novo.

Doutor honoris causa pela Faculdade de Ciências do Porto em 1942, e sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa desde 1933, Luisier foi ainda sócio da Sociedade Broteriana e sócio fundador da Sociedade de Ciências Naturais, da Société Valaisienne de Sciences Naturelles e da Sullevant’s Moss Society. A 6 de fevereiro de 1957, por ocasião do seu 85.º aniversário, foi agraciado com a Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, numa cerimónia presidida por Baltazar Rebelo de Sousa (1921–2002), então Subsecretário de Estado da Educação Nacional. Entre os vários discursos proferidos nesse dia salientaram-se os de Américo Pires de Lima (1886–1966), representante da Faculdade de Ciências do Porto, de António Sousa da Câmara, director da Estação Agronómica Nacional, de Abílio Fernandes (1906–1994), da Sociedade Broteriana, e de Francisco Caldeira Cabral (1908–1992), professor do Instituto Superior de Agronomia, que falava em nome dos antigos alunos. Além de professores das três universidades portuguesas estiveram também presentes nesta homenagem o arcebispo de Braga e o vice-cônsul suíço. 

A 4 de novembro de 1957, seis meses depois de celebrar o seu 85.º aniversário, Afonso Luisier acabaria por morrer nas Caldas da Saúde (Santo Tirso), onde se encontrava desde o seu regresso a Portugal.

Francisco Malta Romeiras

Obras

Luisier, Afonso. “Apontamentos sobre a flora da região de Setubal.” Boletim da Sociedade Broteriana 19 (1902): 172–274.

Luisier, Afonso. “Le Genre Triquetrella en Europe.” Brotéria: Botânica 11 (1913): 135–138.

Luisier, Afonso. “Sur la distribuition géographique de Triquetrella arapilensis Luis.” Brotéria: Botânica 13 (1915): 150–151.

Luisier, Afonso. “Les Mousses de Madère.” Brotéria: Botânica 15 (1917): 81–98; 16 (1918): 29–71; 17 (1919): 17–142; 18 (1920): 5–22; 78–120; 20 (1922): 76–106.

Luisier, Afonso. “Musci Salmanticenses. Descriptio et distributio specierum hactenus in Província geographica Salmanticensi cognitarum. Brevi addito conspectu Muscorum totius Peninsulae Ibericae.” Memorias de la Real Academia de Ciencias Exactas Físicas y Naturales de Madrid 3 (1924): 1–280.

Luisier, Afonso. “Les Mousses de l’Archipel de Madère et en général des Îles Atlantiques.” Brotéria: Botânica 23 (1927): 5–53; 129–145 24 (1930): 18–47; 66–96; 119–40; 25 (1931): 5–20; 123–39; Brotéria: Ciências Naturais 1 (1932): 164–82; 7 (1938): 78–95; 110–31; 11 (1942): 29–41; 14 (1945): 78–94; 112–27; 156–76.

Luisier, Afonso. “Recherches bryologiques récentes à Madère,” Brotéria: Ciências Naturais 5 (1936): 140–44; 6 (1937): 88–95; 8 (1939): 40–52; 12 (1943): 135–44; 16 (1947): 86–91; 22 (1953): 178–91; 25 (1956): 170–82.

Luisier, Afonso. “Mousses des Açores.” Brotéria: Ciências Naturais 7 (1938): 96–98.

Luisier, Afonso. “Hepáticas dos Açores.” Brotéria: Ciências Naturais 7 (1938): 187–189.

Luisier, Afonso. “Artrópodes da Madeira, segundo as investigações do Dr. O. Lundblad.” Brotéria: Ciências Naturais 8 (1939): 18–39; 82–95; 101–12; 9 (1940): 184–88; 10 (1941): 61–69; 133–42; 179–84; 11 (1942): 84–93; 137–44; 177–87; 12 (1943): 29–36; 128–34.

Luisier, Afonso. “Contribuições para a flora briológica do Brasil.” Brotéria: Ciências Naturais 10 (1941): 114–132.

Bibliografia sobre o biografado

Carvalho, José Vaz de. “Afonso Luisier”, Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús, vol. 3: 2440–2441. Madrid e Roma: Universidade Pontificia Comillas, Institutum Historicum Societatis Iesu, 2001.

Neves, Maria Luísa. “Recordando o Padre Luisier—Nos 40 anos do seu falecimento.” Brotéria Genética,18 (1997): 99–101.

Archer, Luís. “Centenário do nascimento do P. Alphonse Luisier, S.J.” Brotéria: Ciências Naturais 41 (1972): 1.

Lima, Américo Pires de. “Rev. Pe. Dr. Alphonse Luisier.” Separata do Boletim da Sociedade Broteriana 32 (1958).

Carcalhaes, José. “Padre Alphonse Luisier.” Brotéria: Ciências Naturais 54 (1958): 3–16.Carvalhaes, José. “Reverendo Padre Alphonse Luisier, S.J.: Homenagem ao cientista e ao mestre.” Boletim Cultural de Santo Tirso 5 (1957): 223–249.